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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.113 Lisboa abr. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis18769 

COMENTÁRIO DE AUTOR

O crescimento da mobilidade e turismo em Portugal: solução ou problema? O caso do novo aeroporto de Lisboa

Mobility and tourism growth in Portugal: solution or problem? the case of the new Lisbon airport

Mobilité et croissance touristique au Portugal: solution ou problème? le cas du nouvel aéroport de Lisbonne

Movilidad y crecimiento del turismo en Portugal: solución o problema? el caso del nuevo aeropuerto de Lisboa

António Ferreira1

1Investigador Sénior, Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Rua Dr. Roberto Frias, s/n, 4200-465, Porto, Portugal. E-mail: acf@fe.up.pt


 

RESUMO

Este ensaio põe em causa as políticas portuguesas de apoio ao crescimento do turismo e às grandes infraestruturas de transportes que tornam por sua vez o crescimento continuado da economia viável. O aeroporto de Lisboa é apresentado como exemplo. O ensaio utiliza para esse efeito uma metodologia hipotético-dedutiva construída em redor do conceito de imotilidade, definido como a possibilidade de não viajar como bem coletivo a ser cultivado pelas políticas públicas. O ensaio começa por demonstrar que - apesar de estarem associadas a importantes vantagens económicas - as políticas de apoio ao turismo e mobilidade intensivos são problemáticas de um ponto de vista da sustentabilidade, bem-estar social e resiliência. Demonstra depois que o debate em Portugal sobre turismo e a mobilidade está a ser desqualificado de um ponto de vista democrático, uma vez que alternativas possíveis estão a ser postas de parte sem a devida reflexão e aprovação coletiva. É assim proposto como urgente um debate inclusivo de larga escala sobre que futuro a sociedade portuguesa deseja para si mesma, considerando explicitamente que acessibilidades, competências, significados simbólicos e condições materiais devem ser promovidos.

Palavras-chave: Imotilidade; crescimento económico; turismo; aeroportos; democracia.


 

ABSTRACT

This essay challenges contemporary Portuguese policies aimed at promoting tourism growth and the development of large transport infrastructures that make continuous economic growth possible. It considers the new Lisbon airport as an example. It uses a hypothetic-deductive methodological approach based on the concept of immotility to deliver its argument. Immotility is defined as the possibility of not travelling as a common good to be endorsed by public policies. The essay begins by demonstrating that - even though they are associated with important economic benefits - policies aimed at promoting intensive tourism and mobility are problematic in terms of sustainability, well-being and resilience. After this, the essay argues that the Portuguese debate about tourism and mobility is undemocratic as possible alternatives are being excluded without the necessary collective reflection and approval. It is therefore considered urgent to open an inclusive large-scale debate about which future Portuguese society wants to pursue, while explicitly addressing which accessibilities, skills, symbolic meanings, and material conditions should be promoted.

Keywords: Immotility; economic growth; tourism; airports; democracy.


 

RÉSUMÉ

Cet essai conteste les politiques portugaises contemporaines visant à promouvoir la croissance du tourisme et le développement de grandes infrastructures de transport qui permettent une croissance économique continue. Il considère le nouvel aéroport de Lisbonne comme un exemple. Il utilise une approche méthodologique hypothétique-déductive basée sur le concept d’immotilité. L’immotilité est définie comme la possibilité de ne pas voyager comme un bien commun à cultiver par les politiques publiques. L’essai commence par démontrer que - même si elles sont associées à d’importantes avantages économiques - les politiques visant à promouvoir le tourisme intensif et la mobilité sont problématiques en termes de durabilité, de bien-être et de résilience. Il démontre ensuite que le débat au Portugal sur le tourisme et la mobilité est disqualifié d’un point de vue démocratique, car les alternatives possibles sont écartées sans considération et approbation collective. Il est donc proposé comme urgent un débat inclusif à grande échelle sur quel future la société portugaise veut pour elle-même, considérant explicitement quelles accessibilités, compétences, significations symboliques et conditions matérielles devraient être promues.

Mots clés: Immotilité; croissance économique; tourisme; aéroports; démocratie.


 

RESUMEN

Este ensayo pone en tela de juicio las políticas portuguesas de apoyar el crecimiento del turismo y a las grandes infraestructuras de transporte que, a su vez, hacen viable el crecimiento continuo de la economía. El aeropuerto de Lisboa es presentado como ejemplo. Para este propósito, el ensayo utiliza una metodología hipotética-deductiva construida alrededor del concepto de inmotilidad, definida como la posibilidad de no viajar como un bien colectivo para ser cultivado por las políticas públicas. El ensayo comienza demostrando que, a pesar de estar asociado con importantes ventajas económicas, las políticas para apoyar el turismo y movilidad intensivos representan problemáticas desde el punto de vista de la sostenibilidad, el bienestar social y la resiliencia. Posteriormente, se demuestra que el debate en Portugal sobre turismo y movilidad está siendo descalificado desde un punto de vista democrático, ya que se descartan posibles alternativas sin la debida reflexión y aprobación colectiva. Por lo tanto, se propone como urgente un debate inclusivo a gran escala sobre lo que la sociedad portuguesa del futuro quiere para sí misma, considerando explícitamente que tipo de accesibilidades, competencias, significados simbólicos y condiciones materiales deberían ser promovidos.

Palabras clave: Inmotilidad; crecimiento economico; turismo aeropuertos; democracia.


 

I. Introdução

As políticas em voga em Portugal têm uma vocação muito forte para a mobilidade internacional. Isto é particularmente visível na aposta feita no turismo. É atualmente aceite que Portugal se tornou num dos destinos turísticos mais desejados na Europa e que isto tem vindo a desempenhar um papel muito positivo na recuperação económica do país e das suas cidades. Justifica-se assim o investimento em grandes infraestruturas de mobilidade como, por exemplo, o novo aeroporto de Lisboa. De facto, e como iremos ver, a aposta na mobilidade em geral e no turismo em particular está associada a benefícios de monta de um ponto de vista económico, tal como expresso em crescimento da economia e criação de emprego. Contudo, autores mais críticos têm salientado os custos ambientais, sociais e urbanísticos desta opção estratégica focada no turismo, bem como a necessidade de se pensar medidas para os reduzir (Machete, 2011; Tulumello, 2016; Mendes, 2018). Alguns dos custos mais frequentemente realçados são as emissões de carbono associadas à atividade turística, bem como a gentrificação e ou a turistificação das cidades portuguesas, particularmente Lisboa e Porto.

O presente ensaio alerta para um problema sobre o qual as vozes críticas ainda não se manifestaram com suficiente clareza e energia: a dependência da mobilidade intensiva subjacente à aposta no turismo. Os sistemas de transportes contemporâneos são na verdade altamente vulneráveis e estão a levantar uma variedade de problemas, particularmente de natureza ambiental, mas também social (Urry, 2004; 2008). Emerge, assim, a necessidade premente de repensar as políticas públicas portuguesas por forma a que, pelo menos, algumas das fragilidades geradas pelo presente modelo de desenvolvimento orientado para o crescimento económico possam ser reparadas. É preciso, também, perguntar à sociedade civil se Portugal deve, ou não, promover o turismo e as infraestruturas que o tornam possível em larga escala, em vez de tornar esse um debate técnico conduzido quase exclusivamente por políticos, especialistas e tecnocratas - uma tendência alarmante na Europa da (pós?) austeridade (Papa & Lauwers, 2015; Varoufakis, 2018). Para este efeito, este ensaio recorre ao conceito de “imotilidade”, inicialmente desenvolvido por Ferreira, Bertolini, e Næss (2017). Este conceito enaltece a possibilidade de não viajar como um bem público para além do imperativo do crescimento económico promovido pela mobilidade.

O ensaio é de natureza teórica e tem como propósito-chave promover o debate. Adota uma metodologia hipotético-dedutiva de carácter exploratório, destinada a salientar os contornos do problema sobre o qual se debruça. O problema prende-se com a excessiva dependência do turismo e mobilidade que é promovida pelas políticas públicas portuguesas. Isto é feito com o intuito de manter o crescimento económico continuado. O problema também se prende com a falta de discussão democrática, aberta e inclusiva sobre o assunto.

O ensaio segue a seguinte estrutura. Começa por apresentar a noção de imotilidade e os fatores chave de avaliação da sua bondade: impactos ambientais e sociais, implicações urbanas e no uso do solo, e implicações na resiliência. De seguida, apresenta as componentes da imotilidade: acessibilidade, competências, significados simbólicos e materiais. Na secção seguinte, uma breve discussão sobre o novo aeroporto de Lisboa mostra como o foco na promoção da mobilidade como motor de crescimento económico leva a debates excessivamente técnicos. Esta tecnicidade aliena a questão política de fundo e bloqueia a participação da sociedade civil. O ensaio termina com algumas reflexões críticas e uma proposta de ação.

II. Motilidade versus imotilidade

As sociedades contemporâneas tornaram-se altamente dependentes da mobilidade de pessoas e bens, o que trouxe uma panóplia de vantagens económicas, sociais e culturais de grande relevância. Podem ser referidas como exemplos destas vantagens o crescimento económico, a criação de emprego, o maior e melhor acesso a variados bens e serviços e o desenvolvimento de mentalidades mais abertas, conhecedoras e cosmopolitas. Contudo, esta dependência expressa-se também de maneiras menos positivas, por exemplo na necessidade de emigrar para países com melhores condições económicas para encontrar trabalho (um ponto que toca profundamente a sensibilidade e memória portuguesas); na necessidade de se fazer diariamente extenuantes deslocações casa-trabalho; ou na necessidade de fazer longas viagens ocasionais para se manter algum contacto com familiares e amigos que a mobilidade levou para longe. Esta dependência também se expressa nos produtos que consumimos, pois estes são frequentemente oriundos de geografias distantes. Produtos locais são muitas vezes difíceis de encontrar ou têm um preço superior aos demais. Reconhecendo estas tendências, o termo “motilidade” foi proposto precisamente para sublinhar que - e cada vez mais - a mobilidade é em si mesma uma forma de capital social e económico (Kaufmann, Bergman, & Joye, 2004; Viry & Kaufmann, 2015) sem a qual indivíduos e comunidades podem ver-se em condições muito difíceis. Contudo, manter-se altos níveis de dependência de mobilidade é problemático por variadas razões. Quatro razões em particular devem ser mencionadas.

- Impactos ambientais negativos causados pela utilização crescente de meios de transportes. Por um lado, notáveis inovações estão a contribuir para as tecnologias de transportes serem cada vez mais eficientes e menos destrutivas para o meio ambiente. Os exemplos possíveis destas inovações são inúmeros - pensar, por exemplo, nas melhorias feitas nos combustíveis, na eficiência energética de motores, e na gestão dos sistemas de mobilidade - e todos com significativo potencial em termos de sustentabilidade. Contudo, por outro lado, estas inovações têm o potencial de aumentar a utilização das tecnologias de transportes para além dos ganhos de eficiência e sustentabilidade alcançados - um fenómeno conhecido como Paradoxo de Jevons (Alcott, 2005; Sorrell, 2009). As emissões crescentes do sector dos transportes a despeito destas inovações sugerem que é precisamente esse o caso (ver IEA, 2018).

- Interação de transportes e uso do solo. Múltiplos estudos têm vindo a demonstrar que os sistemas de transportes contribuem para moldar os padrões territoriais de desenvolvimento urbano. Por sua vez, estes padrões contribuem para moldar os sistemas de transportes de forma recíproca (Wegener & Fürst, 1999; Geurs & van Wee, 2004; Wegene, 2014). Um caso extremo desta interdependência é dado por Los Angeles (e não de uma forma positiva): a aposta no automóvel privado permitiu a suburbanização extensiva do território. Ora isto tornou os residentes de Los Angeles cada vez mais dependentes do automóvel e mais inclinados a promover processos de suburbanização. Trata-se assim, neste caso, de uma interação problemática porque associada a uma variedade de efeitos negativos: uso acrescido do automóvel, alto consumo de energia, poluição crescente, altos custos em infraestruturas e em serviços públicos, destruição de recursos naturais e perda do sentido de comunidade (Ewing, 1997). A situação é agravada pela posse e uso do automóvel favorecer a construção de estradas e vice-versa (Dupuy, 1999). A recente aposta em transportes aéreos ao nível global está a ter um efeito semelhante, mas a uma escala mais vasta. À medida que um número crescente de aeroportos são construídos e expandidos como resposta à procura crescente de serviços de transporte aéreo, um número também crescente de indivíduos adapta os seus modos de vida à experiência cada vez mais acessível de viajar regularmente de avião. Isto, por sua vez, leva os sistemas urbanos globais a reconfigurarem-se de forma harmónica e sinérgica com estas tendências de mobilidade global (Freestone, 2009). Com base nestas tendências que se reforçam a si mesmas, o crescimento do número de passageiros de transportes aéreos nas últimas décadas tem sido quase exponencial[i]. Espelhando isto, e a despeito das inovações tecnológicas que têm vindo a ser promovidas e implementadas, os impactos ambientais da aviação não são negligenciáveis e estão a crescer de forma acelerada (Lee et al., 2009; Cames, Graichen, Siemons, & Cook, 2015; Graver, Zhang, & Rutherford, 2019). De notar, contudo, que esta realidade específica da aviação é idêntica à realidade do sector dos transportes em geral. Soluções para estes desafios provavelmente não virão da indústria de transporte aéreo, a qual - de acordo com McManners (2016) - apresenta pouca motivação para resolver os problemas que está a causar, apesar das ações que têm vindo a ser implementadas pelas organizações internacionais e europeias ligadas ao setor[ii]. O autor do presente ensaio vê-se obrigado a concordar com McManners, uma vez que mesmo as iniciativas em vigor destinadas a reduzir os impactos ambientais da mobilidade aérea não têm um foco específico na redução tanto da procura como da oferta da mesma. Estão, em vez disso, orientadas para a redução dos impactos da mobilidade aérea (que se prefere crescente) através de uma combinação de inovações tecnológicas com medidas de mercado. Estas iniciativas têm assim uma probabilidade não negligenciável de induzir mobilidade aérea acrescida. Isto sucede devido ao Paradoxo de Jevons (Alcott, 2005; Sorrell, 2009).

- Impactos sociais negativos. A mobilidade é tipicamente conceptualizada nas sociedades contemporâneas como uma expressão de autossuficiência e liberdade do indivíduo emancipado (Bauman, 1995). Contudo, quando se torna obrigatório manter-se níveis de mobilidade crescentes para simplesmente se manter os padrões de qualidade de vida que se tinha anteriormente (uma realidade cada vez mais comum), a dependência da mobilidade torna-se num problema com importantes custos para a qualidade de vida (Rosa, 2003; 2015; Bauman, 2007). Uma variedade de investigadores tem demonstrado os impactos negativos na saúde humana que a mobilidade dita passiva acarreta, isto é, aquela experienciada quando se viaja em meios motorizados que não exigem dispêndio de esforço físico pelo passageiro. Doenças cardiovasculares e obesidade são exemplos bem conhecidos destes impactos (Khreis et al., 2016; Nieuwenhuijsen & Khreis, 2019). É também necessário salientar que, uma vez que níveis de mobilidade crescente são insustentáveis e, portanto, estão necessariamente para além das capacidades planetárias, apenas uma parcela privilegiada da população consegue aceder a eles ou posicionar-se de maneira a beneficiar deles. Isto gera formas muito problemáticas de exclusão e desigualdade social derivadas de acesso diferencial a meios de transporte e aos seus aspetos positivos e negativos (Lucas, 2004; Preston & Rajé, 2007; Anciaes, Jones, & Mindell, 2016).

- Impactos negativos na resiliência. Manter os níveis atuais de mobilidade de pessoas e bens requer um sistema de transportes sem precedentes em matéria de complexidade. Este sistema é na verdade bastante frágil. Esta fragilidade tem vindo a ser demonstrada de múltiplas formas no passado recente, por exemplo através das consequências das greves no sector dos transportes, de falhas no abastecimento de combustível, ou da nuvem de cinzas criada pelo vulcão Eyjafjallajökull (Noland, Polak, Bell, & Thorpe, 2003; Birtchnell & Büscher, 2011; ;Guiver & Jain, 2011). Isto significa que a dependência da mobilidade crescente - a qual tem vindo a ser deliberadamente cultivada - expõe as sociedades contemporâneas a fragilidades também crescentes.

Pelas razões expostas acima surge a noção de “imotilidade” como importante contributo para o pensar das políticas públicas (Ferreira et al., 2017). Imotilidade é o oposto de motilidade: consiste em conceptualizar-se a possibilidade de não viajar como um bem público. A primeira intenção associada à promoção da imotilidade é reduzir a dependência crescente da mobilidade e todos os efeitos negativos que daí resultam (Urry, 2008; Banister, Anderton, Bonilla, Givoni, & Schwanen, 2011). A segunda é convidar indivíduos e comunidades a usufruir mais do seu contexto local e a cultivarem a prosperidade e o bem-estar em vez da competitividade e do crescimento económico (Hines, 2000; Matos, 2012).

III. A imotilidade e as suas quatro componentes

Os conceitos e reflexões apresentados na secção anterior permitem concluir que a imotilidade é uma condição essencial para implementar formas de localismo bem-sucedidas. Isto sucede por duas razões. A primeira diz respeito à viabilidade: por definição, o localismo só pode ser bem-sucedido se as pessoas puderem, efetivamente, conduzir a maioria das suas atividades quotidianas dentro de uma área geográfica relativamente restrita. Isto requer a reestruturação das economias regionais por forma a que estas sejam capazes de providenciar o máximo número possível de bens e serviços requeridos pelas populações locais que as dinamizam (Hines, 2000) - este ponto será retomado abaixo. A segunda diz respeito à aceitabilidade: em termos democráticos, o localismo só pode ser bem-sucedido se os cidadãos estiverem interessados em conduzir a maioria das suas atividades dentro dessa mesma área geográfica (a dimensão da área geográfica a considerar varia naturalmente com a natureza da temática em questão - pode assim tratar-se do bairro, da cidade, da região, do país, etc.). De facto, aceitabilidade social é um fator-chave para políticas de mobilidade bem-sucedidas (Banister, 2008).

A noção de imotilidade tem quatro componentes: acessibilidade, competências, significados simbólicos e materiais (Ferreira et al., 2017). Estes componentes resultam da articulação das ideias promovidas por dois grupos de autores. Com o propósito de oferecer alguns esclarecimentos sobre a genealogia do conceito de imotilidade e a escolha destas componentes, algumas das ideias essenciais destes dois grupos de académicos são apresentadas de seguida.

O primeiro grupo de autores é liderado por Vincent Kaufmann (Kaufmann, 2002; 2015; Kaufmann et al., 2004; Kaufmann, Schuler, Crevoisier, & Rossel, 2004). Para este autor e seus colegas, a motilidade (isto é, a mobilidade como forma de capital social e individual) é um conceito e valor fundamental das sociedades contemporâneas. Por exemplo, Viry, Ravalet, e Kaufmann (2015) demonstram a importância que a mobilidade teve durante a crise económica pós-2008. À medida que posições de trabalho eram terminadas nas cidades e regiões afetadas pela crise, os indivíduos com maior capacidade para viajar rapidamente encontraram novos postos de trabalho noutras cidades ou regiões mais prósperas. Aqueles que, por alguma razão, não demonstraram essa capacidade de mobilidade ficaram expostos a condições pessoais severas.

O exemplo acima serviu para justificar os três elementos chave necessários para a promoção ou manutenção da motilidade, tal como conceptualizada por estes autores: acessibilidade a meios de mobilidade, competências de mobilidade e apropriação de alternativas em variados contextos geográficos (Kaufmann et al., 2004).

Esta abordagem proposta por Kaufmann e colegas levanta uma crítica fundamental a políticas públicas excessivamente focadas na promoção da mobilidade. Este foco pode facilmente desviar recursos e atenção pública da implementação de medidas capazes de promover a prosperidade e a resiliência das economias locais. Agravando esta situação, à medida que as condições de mobilidade são melhoradas em larga escala, a probabilidade é que ocorra uma reorganização espacial de oportunidades de natureza centralizadora. Um exemplo desta forma de reorganização sucede quando postos de trabalho se concentram nas cidades e regiões mais centrais e acessíveis de uma determinada área geográfica à medida que melhores redes de transportes são estabelecidas nessa mesma área - sobre este tema geral, consultar o trabalho clássico de Janelle (1969). Segundo esta linha de raciocínio, a promoção da mobilidade é um potencial catalisador de crises em zonas periféricas e não, tal como comummente aceite, um fator de resiliência e desenvolvimento das periferias. Ferreira et al. (2017) partem deste tipo de preocupações na sua reflexão sobre a necessidade de se dar maior importância à imotilidade nas políticas públicas, isto é, a possibilidade de não viajar como bem coletivo.

O segundo grupo de autores que teve um papel chave na estruturação do conceito de imotilidade é liderado por Elizabeth Shove (Shove, 2010; Shove, Pantzar, & Watson, 2012). Para estes, existe nas políticas públicas contemporâneas uma excessiva preocupação com as atitudes, comportamentos, e escolhas feitas por indivíduos isoladamente. As políticas públicas tornam-se, por consequência, demasiado focadas em tentar influenciar as atitudes dos indivíduos por forma a que as escolhas feitas pelos mesmos sejam as desejadas. Esta lógica pode, e tem vindo a ser, bastante perniciosa, argumentam os autores. Considere o leitor o seguinte exemplo hipotético, o qual revela a essência da crítica proposta por Shove e colaboradores.

Com a intenção de promover o uso de produtos locais de uma determinada região, campanhas de sensibilização e marketing a favor desses produtos são promovidas pelas autoridades locais. Essas mesmas autoridades, contudo, e em nome do crescimento económico derivado da livre circulação de pessoas e bens, promovem também a construção de infraestruturas de mobilidade. Estas infraestruturas permitem que produtos altamente competitivos vindos de outras regiões entrem nos mercados locais. Como resultado, os residentes são encorajados a comprarem produtos locais que podem ser não apenas de pior qualidade quando comparados com os produtos oriundos de outras regiões, como mais caros. As campanhas de sensibilização referidas têm assim não apenas alta probabilidade de insucesso. Estas são também um fator acrescido de descontentamento social. De facto, à medida que os cidadãos são convidados a pensar que os seus produtos locais devem ser consumidos preferencialmente, as condições objetivas do mercado tornam o seu consumo difícil.

Com base na contradição fundamental evidenciada pelo exemplo hipotético acima, foi proposto por Shove e colegas que é preciso repensar as políticas públicas prestando mais atenção às condições sistémicas estruturantes que moldam as práticas sociais em geral. Isto deve ser feito em vez de se concentrar o foco nas atitudes e comportamentos dos indivíduos em particular - os quais muitas vezes estão à mercê das condições sistémicas em efeito.

Três elementos analíticos são propostos por estes autores para se analisar as práticas sociais e tomar decisões sobre políticas públicas destinadas a moldá-las através de intervenções nas condições sistémicas. Estas são: materiais no sentido mais geral (por exemplo, tecnologias, infraestruturas, mas também matérias primas), competências mobilizadas no exercício das práticas sociais, e significados simbólicos associados às coisas, pessoas, locais e às práticas sociais em si.

A articulação das contribuições destes dois grupos de autores (isto é, Kaufmann e colegas bem como Shove e colegas) levou a uma síntese crítica por parte de Ferreira et al. (2017). Surge assim a ideia da imotilidade como algo a ser promovido de forma sistémica, o que requer atenção a ser dada a quatro componentes: acessibilidade, competências, significados simbólicos e materiais, como já mencionado anteriormente. Iniciativas destinadas a promover modos de vida caracterizados pela imotilidade devem, assim, prestar atenção de forma integrada a estas quatro componentes. Estas são explicadas em mais detalhe abaixo. Esta explicação utiliza exemplos associados ao conceito de imotilidade para o tornar mais tangível:

- Acessibilidade. A emergência e manutenção de modos de vida caracterizados pela imotilidade requer acesso-por-proximidade em vez de acesso-por-mobilidade aos bens, serviços e contactos considerados necessários e ou desejáveis (Ferreira & Batey, 2007). Assim, padrões de uso do solo que miscigenam habitação, serviços, emprego, produção de produtos e lazer devem ser promovidos. Isto torna possível ter-se acesso ao que é necessário ou desejado através de pequenas deslocações a pé ou de bicicleta. É de sublinhar que os benefícios em termos de convivialidade, saúde pública e proteção do ambiente desta forma de acessibilidade-por-proximidade possibilitada por meios ativos de transporte são muito significativos (Frank, Engelke, & Schmid, 2003; te Brömmelstroet, Nikolaeva, Glaser, Nicolaisen, & Chan, 2017; Nieuwenhuijsen & Khreis, 2019).

- Competências. Um dos desafios práticos associados à imotilidade resulta do pressuposto de as comunidades terem de funcionar de uma forma bastante autossuficiente. Caso contrário, torna-se necessário promover a mobilidade de pessoas, bens ou serviços entre áreas geográficas distantes para colmatar deficiências ao nível local. Com isso, perder-se-ia a noção de imotilidade. A imotilidade requer, portanto, que as comunidades locais tenham as competências necessárias para dar resposta a uma variedade de problemas associados a todos os sectores de atividade. A imotilidade é, por isso, uma noção que põe fundamentalmente em causa os princípios da vantagem comparativa propostos por David Ricardo. Segundo este economista clássico, diferentes zonas geográficas têm benefício em especializar-se na produção dos bens e serviços para os quais estão melhores equipadas e onde são, portanto, mais competitivas. Ao defender estas ideias, o bem conhecido economista clássico faz referência explícita a Portugal na sua obra On the Principles of Political Economy and Taxation.

“If Portugal had no commercial connexion to other countries, instead of employing a great part of her capital and industry in the production of wines, with which she purchases for her own use the cloth and hardware of other countries, she would be obliged to devote a part of that capital to the manufacture of those commodities, which she would thus obtain probably inferior in quality as well as quantity.” (Ricardo, 1817, p. 157-158).

Importa notar que, segundo Reis (2018), uma das consequências para Portugal da especialização na produção de bens e serviços de baixo valor acrescentado e reduzido teor tecnológico tal como o vinho (outros exemplos: produção de cortiça, oferta de turismo) tem sido uma perda sistemática de competitividade face a países que apostaram em indústrias altamente qualificadas - nomeadamente, aquelas que desenvolvem a maquinaria e tecnologias básicas necessárias para produzir vinho e cortiça! Mas o problema é mais profundo: tal como criticado por Hines (2000), a contínua promoção da competitividade entre regiões e países é, na verdade, uma forma de guerra económica velada. Esta guerra tem como consequência necessária muitos destas regiões e países tornarem-se vítimas e perdedores contra outros que se afirmaram como mais competitivos. Infelizmente, e tal como Hines nota, a ideia de que promover a competitividade urbana, regional e nacional é desejável tornou-se um mantra inquestionado da política económica contemporânea. A aposta na promoção de competências vastas e abrangentes ao nível local associada à imotilidade tem o potencial de mudar, pelo menos um pouco, esta ordem dominante caracterizada pela hostilidade mascarada como política económica.

- Significados simbólicos. O contexto cultural atual foi muito condicionado pela ideia de mobilidade como forma de expressão do indivíduo emancipado (Bauman, 1995). Esta ideia está bem evidente na indústria cinematográfica contemporânea e nos seus grandes sucessos comerciais, desde Avatar a Titanic. Isto naturalmente representa um elemento bloqueador de políticas centradas na imotilidade. Se este entendimento cultural não obtiver respostas quando confrontado com as dúvidas e questões que a proposta de se viver, trabalhar e consumir localmente levantam, com certeza que o debate sobre imotilidade não pode encontrar suficiente ressonância na população. Contudo, alguns passos importantes foram dados na análise e resolução desta problemática. Estes passos mostram que a ideia de localismo tem, na verdade, quando considerada sob certos ângulos, forte adesão. A literatura académica sobre participação pública e autodeterminação ao nível local, tanto relativamente ao futuro do ambiente urbano, como das organizações de trabalho (Healey, 1990; 2007; Laloux, 2014, entre outros), mostra que indivíduos podem encontrar na possibilidade de moldarem o seu futuro pessoal e coletivo um significado simbólico tão ou mais poderoso como aquele que encontram no imaginário associado com a mobilidade e a liberdade que resulta supostamente da mesma. Contudo, outras formas de se encontrar significados simbólicos potenciadores de imotilidade podem ser encontradas, nomeadamente na ressonância que as pessoas frequentemente sentem com a identidade de um determinado território. Esta ressonância pode ser espelhada, por exemplo, na forte ligação subjetivamente sentida (muitas vezes sob a forma de um sentido de pertença) com eventos tradicionais, com a paisagem cultural tradicional e o património construído, com a gastronomia e com a memória coletiva dos lugares, entre outras dimensões possíveis da identidade local (Roca & Mourão, 2001; Pollice, 2010; Rosa, 2018).

- Materiais. Finalmente, importa mencionar a relevância das matérias primas, produtos, tecnologias e coisas em geral, e o papel que estas podem ter na promoção da imotilidade. Aqui, tal como nas componentes anteriores, as possibilidades são muito vastas. Porém, uma ideia forte surge relativamente a esta componente: todos os materiais em sentido lato que requerem mobilidade (por exemplo, géneros alimentares produzidos em geografias distantes) ou que induzem mobilidade (por exemplo, automóveis, aeroportos, autoestradas) são, em princípio, desalinhados com a ideia que se pretende aqui cultivar. Em oposição a estes, todos os materiais em sentido lato que tornam indivíduos e comunidades independentes da mobilidade (por exemplo, quintas urbanas, lojas de bairro, centros culturais dinamizados pelos residentes locais) têm potencial relevância (Hines, 2000).

IV. O caso do novo aeroporto de Lisboa

Estamos agora preparados para articular uma breve reflexão sobre o futuro de Portugal e a importância de se discutir a implementação neste país de políticas orientadas para a motilidade ou, inversamente, para a imotilidade. Esta secção não pretende ser exaustiva, mas apenas mostrar como a aposta no turismo em particular e na motilidade em geral tem limitações e riscos que não devem ser ignorados - especialmente quando se ultrapassam patamares de investimento potencialmente comprometedores. É necessário, assim, discutir este tema de forma aprofundada e esclarecida quanto antes.

Apesar deste ensaio ter um teor propositadamente crítico e algo provocador para que melhor possa suscitar debate, é importante notar, em nome do rigor, que esta aposta no binómio mobilidade-turismo tem naturalmente vantagens muito significativas. Estas não podem, nem devem ser subestimadas. Exemplos destas vantagens, tal como já referido, são a criação de atividade económica, a geração de emprego e a internacionalização da sociedade portuguesa que se tem tornado assim mais cosmopolita e ciente das mentalidades globais. Contudo, esta mesma aposta - e, como veremos, muito devido à forma como tem sido posta em prática - tem levado também ao afunilamento da discussão pública em torno de questões técnicas. Estas são apresentadas como do domínio da competência exclusiva dos peritos da mobilidade, da economia e do turismo. Ora isto não apenas constitui um problema para a democracia, como também tem a probabilidade de tornar as políticas públicas portuguesas menos informadas.

Ainda a título de introdução desta temática, e fazendo um contraponto com o que outros países têm vindo a fazer, é relevante referir que - tal como anunciado na primeira página do “de Volkskrant” de 16 de Outubro de 2019 - a Holanda, um país que se destaca pela sua criatividade em matérias relacionadas com políticas públicas, está a pensar descontinuar uma variedade de voos turísticos a partir do aeroporto de Schiphol. A intenção por detrás desta iniciativa é reduzir as emissões de carbono produzidas por estes voos, aos quais o estado holandês reconhece pouco valor económico. Na mesma linha de ideias e país, a Universidade de Utrecht lançou uma medida destinada a reduzir as deslocações em geral, e as por avião em particular, feitas tanto pelos empregados como pelos estudantes da universidade[iii].

Antes de chegarmos a Portugal, analisemos ainda o que tem sido referido na literatura académica internacional sobre o tema. Esta literatura aponta para importantes vantagens e desvantagens associadas à construção e expansão de aeroportos. Em termos de vantagens, e para além dos esperados benefícios em termos de expansão de atividades turísticas, existem também vantagens em termos de visibilidade e marketing. Isto sucede porque os aeroportos contribuem para melhor colocar as cidades nos rankings globais (Derudder & Witlox, 2005). De um ponto de vista de geração de emprego, Brueckner (2003) propôs uma regra de algibeira frequentemente mencionada: um crescimento na ordem de 10% em embarques numa área metropolitana está associado a aproximadamente 1% de crescimento de postos de trabalho no sector dos serviços dessa mesma área. Pode, assim, ser concluído que um novo aeroporto em Lisboa poderá contribuir de forma não negligenciável para a promoção da atividade económica e da competitividade da área metropolitana como um todo.

Em termos de desvantagens, a literatura internacional menciona que a construção e expansão de aeroportos tem forte probabilidade de aumentar a poluição atmosférica, o ruído, e a congestão nas redes de transportes; bem como contribuir negativamente para o desenvolvimento dos padrões de uso de solo - os quais tendem a ficar mais dispersos e desestruturados (para uma revisão mais completa, consultar Freestone, 2009). Os aeroportos estão também associados a importantes riscos. Estes dizem respeito não apenas à segurança tanto em terra como no ar, mas também àqueles relacionados com a estabilidade social e económica. Isto acontece porque a indústria aeronáutica está exposta a uma série de variáveis exógenas ao seu controlo. Estas podem facilmente pôr em causa a viabilidade da indústria. Considerar, por exemplo, condições atmosféricas desfavoráveis e mudanças climáticas, terrorismo e epidemias globais, pico do petróleo e problemas logísticos de abastecimento energético, entre outras possibilidades. Por estas razões, Kesselring (2009) propõe que os aeroportos simbolizam e na verdade materializam a essência da “sociedade da mobilidade de (alto) risco”.

Considerando as possibilidades existentes de inovação tecnológica capazes de promover sustentabilidade e eficiência na indústria aeronáutica, e contrabalançando os prós e contras da mesma, Freestone (2009) conclui que o crescimento continuado de aeroportos é - e com grande certeza - uma estratégica intrinsecamente insustentável e indesejável. Torna-se assim construtivo pensar a necessidade de limitar o crescimento dos aeroportos, bem como do número e frequência de voos permitidos. Este raciocínio vem espelhar uma tendência crescente na literatura da ciência económica, que propõe que é necessário limitar o crescimento económico em geral uma vez que as desvantagens de o fazer estão claramente a exceder as vantagens (Kallis, 2011; 2018; Kallis, Kerschner, & Martinez-Alier, 2012; Matos, 2012; D’Alisa, Demaria, & Kallis, 2015; Jackson, 2017; Raworth, 2017; Weiss & Cattaneo, 2017). De notar que este é um tema de grande relevância tanto para a política de transportes como para a política económica, uma vez que o conceito de imotilidade contraria o próprio funcionamento e natureza do sistema capitalista global (Gomes, 2009).

Consideremos agora Portugal e o caso específico do novo aeroporto de Lisboa. Neste debate, a questão política de se Portugal deve, ou não, apostar na motilidade em geral e no turismo em particular não parece fazer parte dos tópicos da discussão. Em vez disso, parece ponto absolutamente assente que Portugal precisa de promover desenvolvimentos no sector dos transportes porque, caso contrário, o país corre o risco de estrangular o crescimento económico a ser gerado pelo turismo. Foi esta, precisamente, a posição oficial da Confederação do Turismo de Portugal. Podemos encontrar o seguinte texto no seu sítio digital, do qual é de sublinhar o tom em que é escrito:

“O presidente da Confederação do Turismo de Portugal (CTP) insistiu hoje na necessidade de resolver o problema da sobrelotação do aeroporto de Lisboa, questionando o Governo sobre o que está à espera para avançar com a solução do Montijo.

“Sim Sr. primeiro-ministro, temos que voltar ao tema do aeroporto. Neste momento o aeroporto de Lisboa não serve a procura. De que esperamos para avançar com a solução do Montijo?”, disse Francisco Calheiros na abertura da IV Cimeira do Turismo Português, que se realiza hoje em Lisboa e conta com a participação de mais de 400 pessoas, no dia em que se assinala o Dia Mundial do Turismo.

Para Francisco Calheiros, não é difícil chegar ao estatuto de melhor destino do mundo, “o difícil é permanecer como o melhor destino do mundo” e para isso é necessário Lisboa ter um aeroporto com capacidade para receber.

“A economia nacional neste momento não é sustentável sem o turismo. [Sr. Primeiro-Ministro] peço que nos crie condições para dar continuidade ao trabalho que temos feito”, disse o responsável referindo que o país perde atualmente um milhão de turistas anualmente devido à sobrelotação do aeroporto.”” (CTP, 2018).

Como se vê explicitamente no exemplo acima, também parece ser ponto absolutamente assente que o crescimento económico tem de ser promovido de forma continuada e sem perder oportunidades para tal (ou, neste caso, turistas). Sem reconhecer quaisquer nuances relacionadas com os prós e contras do crescimento continuado da mobilidade aérea, do turismo, e ou da atividade económica, as questões que se têm vindo a colocar estão essencialmente centradas na localização a escolher para o novo aeroporto e o tipo de modelo técnico que o mesmo deve adotar (Partidário & Coutinho, 2011; Correia & Silva, 2015; Silva, Gonçalves, Correia, & Marreiros, 2015; Matos, Pereira, & Reis, 2016)[iv].

Notar que isto não é uma crítica aos estudos conduzidos por académicos portugueses sobre esta matéria, mas ao facto de haver uma enorme escassez de reflexões que problematizam a questão de fundo. Existem naturalmente algumas exceções, sendo de assinalar o trabalho de Gonçalves e Marreiros (2014), os quais, contudo, confirmam o argumento defendido aqui. Os autores consideram questionável que alguma vez tenha sido provado que existe de facto a necessidade de construir um novo aeroporto em Lisboa. Porém, a ideia de que este novo aeroporto deve ser construído persiste.

Esta lacuna no debate é problemática porque leva à alienação da questão essencial que está a montante de todo o processo: deve Portugal manter, aumentar ou reduzir o uso de transportes aéreos para a promoção do turismo em particular e da motilidade em geral como motores da economia? Na resposta a esta questão é necessário ter em consideração que muito tem sido dito a favor do turismo como motor de desenvolvimento em Portugal. Olhando para os dados objetivos publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), ficamos a saber que o turismo representou 13,7% do PIB em 2017, tendo aumentado 14,5% relativamente a 2016. A mesma fonte menciona que o emprego no sector do turismo representou 9,4% do emprego nacional em 2017 (INE, 2018). Dados calculados pelo Turismo de Portugal (2019) indicam um crescimento dos proveitos globais na ordem dos 10,2% de 2018 para 2019, totalizando 229,6 milhões de euros nesse ano.

É importante reconhecer que o turismo é uma indústria com preocupações crescentes em termos das competências profissionais que promove e em termos das perspetivas para o futuro que pretende oferecer aos seus trabalhadores - considerar, por exemplo, e no caso português, o novo projeto da Tourism International Academy a ser promovido no Estoril[v]. Contudo, e apesar destes desenvolvimentos positivos, é necessário um debate profundo sobre esta indústria e os princípios que a devem reger para garantir que esta leve a uma transformação qualitativa para melhor da economia e sociedade portuguesas. Tal como alertado por Reis (2018), o foco não deve ser colocado simplesmente na quantidade de atividade económica promovida por um dado sector, mas sobretudo na qualidade dessa atividade. Este alerta é importante. Como já referido, o turismo está a trazer às cidades portuguesas uma variedade de vantagens económicas, mas também uma variedade de problemas bem conhecidos na literatura académica há quase duas décadas, nomeadamente exclusão de residentes, monofuncionalização social e económica associada a uma forte descaracterização dos centros históricos e a perda subsequente de resiliência económica derivada da falta de alternativas ao turismo (Russo, 2002; Mendes, Amílcar, Carreiras, & Guimarães, 2016; Mendes, 2018).

Notar que inovações recentes nos transportes aéreos claramente aumentaram a sua capacidade e reduziram os seus custos para os passageiros, bem como promoveram a emergência de plataformas online tais como Airbnb potenciadas por redes sociais como o Instagram. Estas inovações estão a trazer a cidades como Lisboa transformações sem precedentes: Lisboa é hoje uma cidade mais turistificada do que Madrid e mesmo Barcelona (Baptista, Nofre, & Jorge, 2018). O que acontecerá a Lisboa se um aeroporto com ainda mais capacidade for construído? Devemos aspirar a esse futuro focado no crescimento económico induzido pela mobilidade e turismo?

Estas questões de fundo carecem de discussão séria pois Portugal continua a tecnocratizar as suas decisões políticas. Tal como alertado por Matos et al. (2016), tem-se observado em relação ao novo aeroporto de Lisboa “uma parca e esparsa mobilização por parte da sociedade civil em torno das questões em disputa na controvérsia”. Ora isto não é de estranhar, tendo em conta - e tal como referem os mesmos autores - a dominância de mecanismos de avaliação tecnocrática utilizados pelo sistema de planeamento português. Estes têm vindo a estar focados primeiro nas alternativas para a localização do aeroporto (e não na questão de fundo de se o aeroporto deve ou não ser construído) e, segundo, têm vindo a tentar basear a decisão de localização em critérios quantitativos (supostamente) objetivos e científicos. Isto bloqueia a intervenção da sociedade civil de forma efetiva, pois o cidadão comum não está preparado para participar em debates de alta complexidade técnica baseados em métricas abstratas e em argumentos apresentados como matérias de especialidade. De notar aqui a análise de fundo oferecida por Muller (2018) sobre os perigos e desvantagens da dominância de métricas nos processos de tomada de decisão e de avaliação conduzidos nas sociedades contemporâneas. Este autor propõe que a dominância destas métricas (especialmente as geradas de forma dita científica) resulta da falta de confiança na pessoa humana como agente de decisão capacitado pela reflexão, senso comum, experiência e honestidade. Isto parece de alguma forma ressoar com a literatura académica sobre a situação política portuguesa, onde a falta de capital social e de confiança nos decisores parece ser um problema chave da governança (Teles, 2012). A agravar este problema surge um outro: a resistência do sistema de planeamento português a mudar-se a si próprio (Oliveira & Breda-Vázquez, 2011).

V. Conclusão

O presente ensaio apresentou uma visão crítica sobre a promoção continuada do crescimento do turismo em Portugal. Utilizou para tal uma perspetiva analítica baseada na noção de imotilidade (Ferreira et al., 2017). Apresentou para o efeito um quadro de avaliação baseado em quatro fatores (impacto ambiental, social, urbanístico e no uso do solo, e resiliência) e identificou quatro componentes para ação: acessibilidade, competências, significados simbólicos, e materiais. O ensaio espera assim estimular discussão sobre que modelo para o futuro Portugal quer adotar em matérias relacionadas com o turismo e a mobilidade (e, em última análise, com a promoção continuada do crescimento económico). É feita ainda uma chamada de atenção sobre a tendência tecnocrática adotada na discussão pública sobre assuntos cruciais para o futuro do país. Esta tendência deveria ser questionada com a maior energia. É preciso assim considerar que alternativa(s) Portugal poderá ou deverá adotar caso escolha não investir no turismo e na motilidade. Esta(s) alternativa(s) teria(m) mais alcance se explicitamente discutisse(m) as várias componentes analíticas apresentadas acima, e que se repetem abaixo:

- Que acessibilidades, que competências, que significados simbólicos e que materiais quer a sociedade portuguesa ver materializados na sua visão para o futuro? São estes fundamentalmente alinhados com a ideia de motilidade ou, ao invés disso, existe a vontade de abraçar (alguns aspetos relacionados com) a imotilidade?

- Que implicações têm estas escolhas (ou, alternativamente, que implicações se querem obter por via destas escolhas) no meio ambiente, nos padrões de uso do solo em geral e nas cidades em particular, no tecido cultural e social da sociedade portuguesa, e na resiliência de Portugal face a condições económicas e ambientais adversas?

Sem mais acrescentar, termino assim este ensaio na esperança que ele contribua para gerar um debate mais alargado e inclusivo sobre estas matérias.

 

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Agradecimentos e financiamento

O autor gostaria de agradecer sinceramente aos/às excelentes revisores/as da revista Finisterra, pelo tempo e atenção dedicados à revisão deste ensaio.

Este trabalho foi financiado pelo projeto POCI-01-0145-FEDER-016431 - apoiado pelos Fundos Europeus Estruturais de Investimento (FEEI) através do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização - COMPETE2020 e por fundos nacionais concedidos pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P.

 

Recebido: outubro 2019. Aceite: fevereiro 2020.

 

Notas

[i]Para visualizar graficamente este crescimento desde 1970, consultar a seguinte página online divulgada pelo World Bank: https://data.worldbank.org/indicator/IS.AIR.PSGR

[ii]Entre estas iniciativas em vigor podemos mencionar:

- Programa de Compensação de Emissões da IATA: www.iata.org/en/programs/environment/carbon-offset

- Programa de Redução de Emissões da União Europeia: https://ec.europa.eu/clima/policies/transport/aviation_en

- Programa CORSIA da International Civil Aviation Organization: www.icao.int/environmental-protection/CORSIA

[iii]Para informações adicionais sobre esta iniciativa destinada a reduzir a mobilidade aérea pelos empregados e estudantes da Universidade de Utrecht, ver www.uu.nl/en/organisation/sustainable-uu/travel-differently. De facto, a mobilidade por avião associada a atividades académicas está a ser crescentemente criticada (ver, por exemplo, Caset, Boussauw, & Storme, 2018).

[iv]Isto é particularmente irónico quando considerado sob a luz do trabalho de Padeiro (2018). Este autor demonstra que a rede de autoestradas da Área Metropolitana de Lisboa - quando comparada com as demais áreas metropolitanas europeias - está sobredimensionada em cerca de 35% (no caso do Porto, o valor chega aos 42%). Portugal expõe-se, desta forma, ao risco de associar o sobredimensionamento de autoestradas ao sobredimensionamento de aeroportos.

[v]Para mais detalhes sobre esta academia, consultar: www.turismodeportugal.pt/pt/Media/Notas_Imprensa/Paginas/tourism-international-academy-vai-nascer-estoril.aspx

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