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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.109 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.18055/Finis15751 

COMENTÁRIO DE AUTOR


 

Catarina Ramos, Eclética e Integradora

 

 

Ana Ramos-Pereira1

1Professora Catedrática e Investigadora Efetiva do Centro de Estudos Geográficos do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, R. Branca Edmée Marques, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: anarp@campus.ul.pt

 

 

O saber deve ser como um rio, cujas doces águas, grossas, copiosas, transbordem do indivíduo e se espraiem, estancando a sede dos outros. Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades.

Gilberto Freyre

No dia 25 de abril de 2018, Catarina Ramos deixou-nos. Referi-me a ela como uma geógrafa eclética e integradora porque todo o seu percurso académico foi marcado pela incorporação de saberes e pela aproximação de colegas e amigos. A Geografia ficou mais pobre e a comunidade académica também.

Relembrar a Catarina Ramos implica recuar ao ano letivo de 1976-77, em que, após um serviço cívico na área da Medicina, ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Aí fez todo o seu percurso académico escolar, com a obtenção do grau de bacharel, em 1979, e de licenciada em Geografia, em 1981. Cedo, durante a licenciatura de cinco anos, se destacou pela qualidade e rigor dos seus trabalhos, tendo sido contratada como Assistente Estagiária, em 1981, após a experiência de ter sido monitora durante dois anos. O percurso como docente iniciou-se com o apoio a disciplinas da área da Geografia Física, mas também, e por convite do Prof. Carlos Alberto Medeiros, à disciplina de Geografia de Portugal, de conteúdo integrador, e que viria a marcar o seu percurso futuro. Foram, aliás, os Professores Carminda Cavaco e Carlos Alberto Medeiros, com quem veio a trabalhar, que a convidaram a integrar uma Linha de Ação do Centro de Estudos Geográficos (hoje Grupos de Investigação) designada Estudos de Geografia Humana e Regional.

O seu primeiro trabalho científico, “O Comércio Externo Português nos Anos 70”, publicado em 1981 pelo CEG, constitui um contributo da investigação levada a cabo no quadro da referida Linha de Ação.

Nesse mesmo ano tinha já encetado a sua colaboração na Linha de Ação Estudos de Geografia das Regiões Tropicais do CEG, no domínio da Biogeografia, sob a orientação da Profª Maria Eugénia Moreira, e cujo resultado foi publicado em Moreira-Lopes M. E. e Colaboradores (1981) - Vegetação de Portugal, II - Plantas Cultivadas, também publicado pelo CEG.

O seu gosto pela Geografia Física, o seu brilhante percurso enquanto aluna e os temas que se propunha estudar acabaram por a encaminhar para outra das grandes áreas da Geografia, passando a integrar a Linha de Ação de Geografia Física, por proposta de Prof. A. de Brum Ferreira, em 1983. Esta fase culminará em 1985 com a conclusão de quatro anos do Mestrado em Geografia Física e Regional (Área de especialização em Climatologia Sinótica), com a dissertação "Tipos de Anticiclones e Ritmo Climático de Portugal”, sob a orientação daquele professor, e também publicada pelo CEG.

A pesquisa constante de novos temas, aliando os vários domínios da Geografia Física levaram na a investigar sobre bacias hidrográficas, relacionando Geomorfologia e Climatologia, mas com a preocupação do território e das gentes que o habitam e onde o perigo das cheias e inundações não deve ser menosprezado. A investigação que desenvolveu, ao longo de vários anos, porque implicou trabalho de campo e de laboratório, iria permitir-lhe obter o grau de doutora em 1995, com a dissertação “Condições Geomorfológicas e Climáticas das Cheias da Ribeira de Tera e do Rio Maior (Bacia Hidrográfica do Tejo)”.

O domínio da Hidrogeografia (designação há muito usada em países anglo-saxónicos) foi introduzida no seio da Geografia pela Catarina Ramos, que alargou a sua investigação ao estudo dos recursos hídricos e do seu uso sustentável, tema central de uma disciplina que criou no seio da licenciatura, e também dos perigos e riscos hidrológicos, tendo sempre presente o ordenamento do território.

A investigação em Hidrogeografia iria prosseguir e constituiu o tema da Agregação em Geografia Física, em março de 2009, em que apresentou o programa da unidade curricular do 2º ciclo “Dinâmica Fluvial e Ordenamento do Território”, e proferiu uma lição subordinada ao tema: “Cheias: causas, consequências e medidas mitigadoras”.

Este percurso científico, atravessando diversos domínios da Geografia, foi responsável pelo seu ecletismo, mas também pelo seu vasto e profundo conhecimento dos temas variados que tratou.

Aliás, o ecletismo ficou também patente na docência, onde, ao longo de 37 anos, lecionou 40 unidades curriculares e 13 módulos em todos os níveis de ensino e em diversas Faculdades da Universidade de Lisboa, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa), na Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior Técnico), na Universidade de Coimbra, na Universidade Aberta, na Universidade do Porto, na Universidade Lusófona do Porto, na Universidade do Minho e na Universidade de Aveiro.

A sua dedicação à docência e aos seus alunos é, no dizer da própria Catarina Ramos, o resultado do seu “gosto pelo ensino e formação geográfica; pelo grande investimento pessoal necessário para a lecionação de temas de domínios muito diferentes, como a Geografia Física (nas suas componentes de Climatologia, Biogeografia, Hidrologia e Geomorfologia), Geografia Humana, Geologia (nas suas componentes de Geodinâmica Interna, Petrografia e Petrologia); Riscos Naturais e Ordenamento do Território; e também pelas necessidades de serviço docente no Departamento de Geografia da FLUL, e posteriormente no IGOT-UL” (CV apresentado aquando da agregação). O ensino da Geografia Física e especialmente da Geografia Física de Portugal ministrado por Catarina Ramos marcou gerações de geógrafos, pelo seu saber, pelo rigor dos documentos que fornecia aos alunos (de campo ou de gabinete), pela vivacidade com que transmitia os conhecimentos e que resultavam do seu gosto por ensinar e, ainda, pela disponibilidade que sempre dispensou aos alunos.

A investigação da Catarina não se resumiu aos trabalhos de investigação para a obtenção de graus académicos. Sempre no quadro da investigação do CEG, de que se tornou investigadora em 1979 e integrou a Direção (1986-88), criou com a signatária, em 1995, um Núcleo de Investigação/Grupo de Investigação (as designações foram acompanhando o passar do tempo) DILIF/SLIF - Sistemas Litorais e Fluviais: Dinâmicas, Mudanças Ambientais e Ordenamento do Território.

No âmbito desse Grupo de Investigação e de uma colaboração que prestou ao Grupo Riskam, Catarina Ramos participou em vários Projetos de Investigação nacionais e europeus, sempre relacionados com a temática central da sua investigação – a Hidrogeografia. Colaborou nos seguintes projetos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e no início pela JNICT: Metodologias de Avaliação da Reserva Ecológica Nacional nos Planos Diretores Municipais (MAREN); Abordagem Interdisciplinar da Avaliação do Risco de Cheia - Hidrologia, Geomorfologia e Sedimentologia das Bacias do Douro, Tejo e Sado (IDAFRE); Geologia e Arqueologia da Planície Aluvial do Tejo ao Longo do Tempo (GEOTARIF); DISASTER - GIS database on hydro-geomorphologic disasters in Portugal: a tool for environmental management and emergency planning; FMI 5000 - Environmental changes: Fluvio-marine interactions over the last 5000yrs. Participou ainda no Projeto Esquema de Desenvolvimento do Espaço Comunitário (EDEC) e no Projeto SECOA – Solutions for Environmental Contrasts in Coastal Areas, financiados pela European Commission. A atividade de investigação no seio das várias equipas de investigação que se associam para cada um dos projetos permitiu a Catarina Ramos trabalhar com um elevado número de investigadores de universidades portuguesas e estrangeiras contribuindo para o aprofundamento e consolidação da sua já vasta bagagem científica.

O reconhecimento do seu saber foi testemunhado pela sociedade de diversas formas. Foi consultora científica do Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território e do Ministério da Educação. Foi responsável, tendo assegurado a coordenação, dos projetos de consultoria Definição e Delimitação da Reserva Ecológica Nacional da Área Metropolitana de Lisboa (REN-AML), financiado pela Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT) e o Projeto Definição e Delimitação da Reserva Ecológica Nacional da Região do Oeste e Vale do Tejo (REN-OVT), financiado pela Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT). Colaborou ainda no projeto Territórios de Foz Côa, incluído no projeto museológico de Foz Côa, financiado pelo Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico, do Ministério da Cultura.

Na sua atividade científica contam-se ainda o papel de árbitro científico de várias publicações, a organização de numerosas reuniões científicas nacionais e internacionais e a pertença a várias associações nacionais e estrangeiras, nomeadamente à Commission on Water Sustainability (anterior designação: Study Group on Environmental Change and Extreme Hydrological Events) da International Geographical Union (IGU).

Deixei propositadamente para o fim o papel que a Catarina Ramos teve na fundação e instalação do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT/UL). Esta aventura, em que todos nos envolvemos, nasceu de uma reunião na salinha 7 (como era designada a sala de reuniões do CEG na Faculdade de Letras). Aí ficou patente o desejo dos presentes (e que depois se alargou a todos os docentes e investigadores do CEG) de autonomizar a Geografia, cujos caminhos de investigação se afastavam dos praticados na Faculdade. A Profª Teresa Barata Salgueiro, única catedrática de Geografia em funções, no então departamento de Geografia da Faculdade de Letras, abraçou o projeto de criação do IGOT e, juntamente com Catarina Ramos e Eduarda Marques da Costa, lançaram mãos à obra.

A atividade desenvolvida pela Catarina Ramos enquanto membro da Comissão Instaladora foi um trabalho árduo, muito consumidor de tempo e nem sempre desprovido de tensão, como se compreende quando se está a criar algo de novo e que nem sempre é bem compreendido. Foi posteriormente subdiretora do IGOT/UL, entre 2009 e 2012. O seu entusiamo e a sua capacidade de trabalho levaram a Diretora do IGOT a propor-lhe um louvor (Louvor n.º 163/2012), publicado em Diário da República 2.ª série — N.º 64 — 29 de março de 2012, “pelas altas qualidades demonstradas no exercício das suas funções e os relevantes serviços prestados na Direção do IGOT – UL”(…).” Ao longo destes três anos merecem salientar-se publicamente a sua excecional competência e dedicação ao Instituto no desempenho das múltiplas atividades, que esta fase de instalação e organização inicial do Instituto foi exigindo e as elevadas qualidades reveladas no seu exercício”.

Concluo esta evocação, cuja seleção de temas é da minha inteira responsabilidade e nunca pretendeu ser exaustiva. Catarina Ramos estará na nossa memória.

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