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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.105 Lisboa ago. 2017

 

RECENSÃO


 

Jean Dresch, a atualidade de um geógrafo anti-colonialistai

 

 

Gustavo Teixeira Prieto1; Elisa Favaro Verdi2

1 Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - São Paulo, SP, Brasil. E-mail: gustavofprieto@yahoo.com.br

2 Graduada e Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - São Paulo, SP, Brasil. E-mail: elisafavaroverdi@gmail.com

 

 

No dia 19 de novembro de 2015 ocorreu na Universidade de Paris 8, por organização do Institut Français de Géopolitque (IFG), a conferência de abertura da exposição Jean Dresch, géographe anticolonialiste. Na ocasião, reuniram-se os professores Béatrice Giblin, Yves Lacoste e Mohamed Naciri. Tal evento marcou a disponibilização para o público do Fond Jean Dresch, arquivo de mais de 7 mil documentos, organizado e digitalizado pela Biblioteca Universitária da Paris 8ii, e que consiste no arquivo pessoal do geógrafo Jean Dresch, o qual doou a sua biblioteca à mesma universidade.

Jean Dresch (1905-1994) é considerado por Lacoste (2012) um geógrafo anti-colonialista, pensador e militante das lutas anti-coloniais do norte da África. Nascido em Paris, Dresch estudou na École Normale Supérieure entre 1926 e 1930 e desenvolveu suas pesquisas iniciais nas áreas de Geologia e Geografia Física a partir da orientação de Emmanuel de Martonne (1873-1955). Em 1928, Dresch começou uma pesquisa sobre a geomorfologia dos Pireneus. Na ocasião, Albert Demangeon (1872-1940), ao regressar de uma viagem ao Magreb, comunicou ao jovem estudante a existência de uma bolsa de estudos no Marrocos e convidou-o a desenvolver sua pesquisa no país. Assim, Dresch iniciou seu trabalho sobre a geomorfologia estrutural do maciço de Moulay Idriss e as formas tradicionais de ocupação do solo na região. Em 1930, o geógrafo tornou-se agrégé em História e Geografia e, a partir de 1931, instalou-se na África do Norte, onde permaneceu por dez anos trabalhando como professor no liceu muçulmano de Rabat, Marrocos, e engajou-se intensamente na militância política magrebina (Verdi, 2016).

No período, produziu sua thèse d’État, intitulada Recherches sur l'évolution du relief dans le massif central du Grand Atlas : le Haouz et le Sous, um trabalho de geomorfologia continental, além de uma tese secundária denominada Documents sur les genres de vie de montagne dans le massif central du Grand Atlas, que teve como tema a evolução do relevo do maciço central do Alto Atlas. Os trabalhos de campo para a sua pesquisa e também com os alunos do liceu tiveram forte impacto na formação de Dresch, e o próprio afirmava que foi nesse momento que se deparou com as contradições da colonização francesa (Dresch, 1986).

Entre 1931 e 1936, Dresch militou no Partido Socialista Marroquino e a partir de 1936 foi um dos fundadores do Partido Comunista do Marrocos (PCM). Dresch redigiu diversos artigos de expressivo impacto teórico-político para o periódico L’Espoir, do PCM, denunciando o colonialismo francês, tais como Il faut lutter contre la misère e La colonisation n’enrichit pas les travailleurs marocains, ambos publicados em 1938. Seu posicionamento político de esquerda e de apoio aos movimentos nacionalistas marroquinos foi interpelado em 1940, quando a França ocupada pelos nazis iniciou uma ampla perseguição aos comunistas – tanto na metrópole quanto nas colônias. Na ocasião, Dresch recebeu uma convocação para ou retornar à França ou ser enviado ao campo de concentração de Boudnib, Marrocos. No retorno à metrópole, em 1941, se tornou Docteur ès lettres e ficou encarregado do curso de Geografia da África do Norte, na Sorbonne. Todavia, atravessou um conjunto de perseguições políticas no seu processo de contratação na universidade, mesmo com o apoio de seu mestre De Martonne, reconhecidamente vichysta (Dresch, 1989).

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, Jean Dresch participou ativamente da Resistência Francesa e permaneceu com sua crítica à colonização por intermédio de sua pesquisa. Publicou artigos na área de Geografia Física e também textos no periódico La Pensée do Partido Comunista Francês (PCF), ao qual se filiou após seu retorno à França (Clerc, 2011). Dresch foi professor na Université de Caen (1942-1945), na Faculté des Lettres de Estrasbugo (1946-1948), na École Nationale de la France d’outre-mer (1947-1948) e finalmente, professor no Institut de Géographie da Sorbonne (1948-1977), ocupando as cadeiras de Geografia da Colonização e da África do Norte e de Geografia Física.

Em 1945, Dresch foi designado pelo Ministério das Colônias para investigações e pesquisas sobre trabalho forçado na África colonial, sobretudo nas regiões da Costa do Marfim, Alto-Volta (atualmente Burkina Faso) e Gold Coast (atualmente Gana). O geógrafo produziu descrições da ocupação do solo, análises sobre o crescimento urbano e o campo africano e sobre investimentos de capital nas regiões. Dresch descreveu essa experiência como mais um momento revelador dos limites da colonização e do desenvolvimento específico dos países africanos (Dresch, 1986). Durante a década de 1950, fez visitas e trabalhos de campo pela América Latina, África Central, Oriente Médio, URSS e China, redigindo sobre as práticas nefastas do colonialismo. O artigo de Dresch sobre a guerra da Argélia, denominado Le fait national algérien (1956), foi decisivo para a evolução de uma perspectiva mais próxima do nacionalismo argelino por parte do PCF (Lacoste, 1978). Clerc (2011) afirma que Dresch foi o primeiro dentre os geógrafos franceses a tomar uma posição anti-colonialista no seio da intelectualidade.

O arquivo de Jean Dresch doado à universidade consiste na sua biblioteca pessoal e em diversos outros materiais que refletem a obra e a biografia deste geógrafo: correspondências pessoais; um vasto material fotográfico; manuscritos que incluem uma centena de cadernos de campo, descrições da paisagem, desenhos e croquis; e diversos periódicos de Geografia e outras áreas afins.

Na conferência de abertura, Béatrice Giblin, professora e pesquisadora do IFG, destacou que Dresch foi o organizador da primeira equipe de geógrafos da Centro Experimental de Vincennes, criado em novembro de 1968 após as manifestações de estudantes e trabalhadores de maio daquele ano, da qual participou Yves Lacoste. Giblin também enfatizou a importância de Dresch no momento de fundação da revista Hérodote, em 1976, periódico que teria sido combatido por geógrafos de diversas tendências políticas, tanto da direita quanto da esquerda. Para Giblin, a notoriedade de Jean Dresch frente à corporação de geógrafos fez com que a revista ficasse protegida pela sua autoridade, visto que Dresch fora presidente da União Geográfica Internacional (1972-1976) e diretor do Instituto de Geografia da Sorbonne (1960-1970), além de presidente do Comitê Nacional Francês de Geografia (1966-1978), presidente do comitê de Geografia do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) durante a década de 1960 e membro do comitê científico dos Annales de Géographie ao longo de décadas.

Na sua intervenção, Yves Lacoste, professor emérito da Universidade de Paris 8, esclareceu que Dresch defendeu o projeto de Hérodote que ousava associar e integrar a Geografia Física e a Geografia Humana, o que teria causado diversas polêmicas à época, tanto na universidade quanto na imprensa francesa. No entanto, para Lacoste, o próprio trabalho de Dresch revelaria a possibilidade dessa integração: considerado um geomorfólogo, o geógrafo também dedicou-se à cartografiaiii e à Geografia Econômicaiv. Lacoste enfatizou que este arquivo de Jean Dresch foi doado à Universidade de Paris 8 pois a Universidade de Paris 7, na qual o geógrafo lecionou, não aceitou a doação. Para Lacoste, se tratou de uma recusa política da instituição que não quis associar-se à memória deste notório militante comunista.

Já Mohamed Naciri, professor na Universidade Mohammed V, destacou que Jean Dresch foi um geógrafo engajado na história do século XX, especialmente nas questões e contradições do sistema colonial. Para Naciri, a realização dos trabalhos de campo no Norte de África (Marrocos), foi responsável pela tomada de consciência de Dresch sobre tais contradições, determinantes portanto para a sua trajetória pessoal, política e intelectual. O Fond Jean Dresch seria, assim, a maneira de restituir a memória de um homem da ação, engajado no projeto de uma Geografia militante capaz de superar os antagonismos da dominação colonial. Ainda para Naciri, Dresch assumiu a perspectiva da Geografia Ativa, destacando-se os seus estudos sobre as populações berberes do Magreb e as suas específicas técnicas de trabalho com a terra e sua relação com a natureza. Naciri destacou que Dresch valorizava o trabalho de campo tanto como uma etapa fundamental da pesquisa geográfica quanto como um momento de sociabilidade. Além disso, o trabalho de campo contribuía para a análise concreta das contradições e paradoxos da realidade do lugar.

A exposição sediada na Universidade de Paris 8 evidenciou três aspectos centrais da vida e da obra de Jean Dresch: seu engajamento político e sua militância comunista, o seu apreço pelo trabalho de campo e a produção de uma Geografia que se opunha às determinações da Geografia colonialista. Béatrice Giblin, Yves Lacoste e Mohamed Naciri ressaltaram que a Geografia Física de Dresch fundamentava-se em um humanismo militante preocupado com os problemas sociais. Portanto, distanciando-se de uma Geografia aplicada, a obra de Jean Dresch sustenta que a verdadeira aplicação da ciência é política e ao serviço dos cidadãos. O Fond Jean Dresch revela a atualidade de uma Geografia comprometida com as contradições do subdesenvolvimento, do colonialismo e do neocolonialismo e a prática de um geógrafo preocupado com a integração entre as subdisciplinas da ciência geográfica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

Clerc, P. (2011). Tous colonialistes?Les géographes français et l’idéologie coloniale [All colonialists? French geographers and colonial ideology]. Comunicação no Colóquio Quand l’injustice crée le droit: le procès des insurgés de Cayenne à Nantes en 1931.

Dresch, J. (1989). Jean Dresch, la géographie. [Jean Dresch, geography]. Cahiers pour l’histoire du CNRS, 3(1), 55-69.         [ Links ]

Dresch, J. (1986). Jean Dresch et le Maghreb. [Jean Dresch and the Maghreb]. Revue de l'Occident musulman et de la Méditerranée, Désert et montagne au Maghreb, 41-42, 19-26.         [ Links ]

Dresch, J. (1946). Sur une géographie des investissements de capitaux. L'exemple de l'Afrique Noire. [On a geography of capital investment. The example of Black Africa]. Bulletin de l'Association de géographes français, 177-178, 59-64.         [ Links ]

Lacoste, Y. (2012). Trente-six ans après... [Thirty-six years after...]. In Y. Lacoste (Ed.), La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre (p. 5-52). Paris : La Découverte.         [ Links ]

Lacoste, Y. (1978). Un géographe anticolonialiste, Jean Dresch. [An anti-colonial geographer, Jean Dresch]. Hérodote, 11 : 3-9.         [ Links ]

Verdi, E. F. (2016). Produção geográfica e ruptura crítica: a Geografia uspiana entre 1964 e 1985 [Produção geográfica e ruptura crítica: a Geografia uspiana entre 1964 e 1985]. (Dissertação de Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo.

 

Recebido: março 2016. Aceite: maio 2017.

 

 

NOTAS

i Algumas das reflexões biobibliográficas sobre Jean Dresch apresentadas nessa recensão foram ligeiramente modificadas da dissertação de mestrado de Verdi (2016).

ii Tais documentos digitalizados podem ser acessados através do seguinte sítio eletrônico: https://www.bu.univ-paris8.fr/fonds-jean-dresch

iii De acordo com Yves Lacoste, a cartografia cumpre um papel fundamental no entendimento da Geografia produzida por Dresch. Esse interesse se revela, por exemplo, nos mapas dos gêneros de vida da população rural marroquina em sua tese secundária, na cartografia sobre o trabalho forçado na África subsaariana e também no mapeamento da ocupação nazista e da resistência francesa em Paris durante a Segunda Guerra Mundial.

iv A partir da década de 1940, Dresch empreendeu uma análise acerca da geografia dos investimentos de capital, relacionando aspectos econômicos e políticos para o entendimento da dominação colonial na África (Dresch, 1946).

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