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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.101 Lisboa abr. 2016

 

RECENSÃO


 

Passado, presente e futuro das serras do norte de Portugal: duas análises geográficas

 

 

Suzanne Daveau1

Professora catedrática reformada. E-mail: sdaveau@sapo.pt

 

 

I. INTRODUÇÃO

Durante o último meio século, a repartição territorial da população e das atividades foi sofrendo profundas modificações em Portugal, pode até dizer-se verdadeiras mutações, tão acentuadas e rápidas que os livros clássicos descrevendo o país a um largo público, tal o Atlas de Portugal (1941 e 1958) ou a Geografia de Portugal (3 edições, de 1949 a 1960) de Amorim Girão, ou Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico de Orlando Ribeiro (8 edições, de 1945 a 2010), são apenas hoje referências históricas. Mesmo os manuais mais recentes, como o Portugal de B. Freund (1979, 1981), o de F. Guichard (1990), a Geografia de Portugal de C. A. Medeiros (1987 e 1996) ou As Regiões Portuguesas de J. Gaspar (1993), continuam a não realçar o aspeto que se tornou recentemente um dos mais graves problemas do país: o desequilíbrio entre o Interior esvaziado e envelhecido, e as duas Margens litorais, ocidental e meridional, que concentram cada vez mais a população e as atividades económicas. Para sintetizar o problema, basta lembrar que os 7 distritos interiores, de Vila Real até Beja, cobrindo um pouco mais de metade da superfície “continental” do país, reuniam ainda 22 % da população portuguesa em 1960, mas conservam hoje apenas 11 % – e gravemente envelhecida.

Ocorreram, portanto, durante os últimos decénios, estas drásticas “mudanças na paisagem”, tão eficazmente retratados pelo sensível e bem informado filme Além de Nós: Mudanças na Paisagem, que Anabela Saint-Maurice elaborou para a RTP 1 em 2010, ao percorrer e registar o país de norte a sul na companhia de alguns participantes ou testemunhos da profunda transformação. Muitos lugares do interior dão hoje a impressão algo desesperante de um abandono irreversível.

Ora, no decénio 1960-70, importantes estudos tinham sido consagrados a diversas regiões rurais do Norte de Portugal, sob a forma de dissertações de licenciatura ou de doutoramento – a maior parte deles tendo sido sumariados na Finisterra. Citam-se os artigos de B. Freund (nº 9, 1970), R. F. Moreira da Silva (22: 1976), P. Bordalo Lema (24, 1977) e S. Daveau (37: 1984) sobre as obras de P. Bordalo Lema (1980), R. F. Moreira da Silva (1981) e F. Guichard (1983). Estes valiosos testemunhos permitem hoje, a propósito desta parte do país, estabelecer comparações precisas com a situação atual e colocar assim, numa base sólida, propostas eficazes de luta contra a desorganização e o abandono das regiões interiores.

Infelizmente, alguns destes autores já não puderam, por morte ou por doença, retomar o estudo dos espaços que tinham estudado tão eficazmente. Por isso mesmo, convém destacar as obras recentes de dois deles, que tiveram a feliz ideia de retomar o estudo das regiões percorridas e estudadas na juventude, inserindo assim a sua fisionomia e os seus problemas atuais numa perspetiva já meio secular.

 

II. O GERÊS VISTO POR ROSA FERNANDA MOREIRA DA SILVA

Foi em 1965 que a geógrafa encetou investigações de Geografia agrária no Noroeste de Portugal, ao esclarecer, na dissertação de licenciatura, a decisiva influência que a prática de certa modalidade de sucessão fundiária – a doação da propriedade a um dos filhos – teve na área rural situada a norte da cidade do Porto. Tendo alargado este estudo ao conjunto das Planícies e Colinas minhotas, defendeu em 1981 uma tese de doutoramento de grande novidade e originalidade, publicada de forma resumida em 1983 (Silva, 1983). Mas, desde 1981, tinha começado a interessar-se também pela drástica influência que a brutal vaga de emigração dos anos 1960 teve sobre o povoamento e a utilização socioeconómica das serras minhotas, apresentando em 1981, como “dissertação complementar”, um importante estudo difundido na forma de relatório policopiado, com 62 páginas e 12 figuras: A Emigração e o Futuro das Aldeias da Serra Amarela.

Estudou duas aldeias situadas no sopé da Serra, que lhe permitiram ilustrar claramente os efeitos associados da emigração e da rutura do isolamento secular. Na aldeia de Germil, com 183 habitantes em 1950 e 155 em 1970, uma estrada tinha sido aberta em Maio de 1979, tendo-se já erguido, no ano seguinte, 10 casas novas e verificado sensível alteração dos modos de vida, tradicionalmente ligados à pastorícia serrana. Mas, na aldeia da Ermida, com 190 habitantes em 1950 e 110 em 1970, onde a abertura de uma estrada era apenas prevista para o outono de 1980, o ambiente socioeconómico continuava dominado pelo isolamento – de modo que a Ermida aparecia como um sítio muito favorável para estudar e tentar orientar a drástica evolução que se podia prever.

Tendo sido, desde 1973, a responsável pela criação e o desenvolvimento do Departamento de Geografia na Faculdade de Letras na Universidade do Porto, Rosa Fernanda Moreira da Silva foi prosseguindo as suas investigações nas serras minhotas, fixando o seu interesse principal no maciço montanhoso do Gerês, a imponente mole que culmina a mais de 1500 metros e separa sobre 30 km Portugal da Galiza. Como ela própria reconheceu, foi a liberdade trazida pela aposentação, em 2004, que lhe permitiu dedicar-se mais livremente à investigação e publicar, em 2011, a obra-prima que é o sumptuoso album (Silva, 2011) que consagrou ao Gerês, oferecendo aos geógrafos e, mais ainda, aos habitantes da região, um instrumento aliciante e sólido, permitindo tomar consciência das virtualidades de um espaço marcado por episódios históricos diversificados e nem sempre felizes, em difícil desequilíbrio atual, mas de tal riqueza paisagística e tão próxima das regiões mais ativas do Norte de Portugal, que parece impossível que não consegue recuperar, em breve, novo equilíbrio e prosperidade.

Este album está preenchido por magníficas fotografias a cor, sendo a maior parte da autora, por excelentes mapas concebidos e preparados também por ela, de leitura fácil para qualquer leigo, e por um texto sempre rigoroso e bem informado, que a sua formação inicial de pedagoga metodóloga torna eficiente e convincente. A região está retratada nos mais diversos aspetos, desde os da Natureza (formas do relevo, clima, cobertura vegetal) até aos que o homem lhe imprimiu ao longo da História (implantação de mosteiros, fixação e defesa da fronteira, assento das aldeias, formas de exploração dos diversos recursos serranos).

Na segunda parte, descrevem-se com mais pormenor as profundas mutações que afetaram a região desde meados do século XIX (a intervenção dos Serviços Florestais, as explorações mineiras, o impacto das grandes albufeiras que inundaram os fundos de vales, destruindo terras férteis em proveito da industrialização litoral, a transformação das paisagens agrárias, a recente revolução demográfica). Apresentam-se, com mais pormenor ainda, alguns sítios mais significativos: as Caldas do Gerês, cuja longa história é ilustrada por uma rica coleção de postais e de mapas, o lugar de peregrinação de S. Bento da Porta Aberta, as albufeiras e o seu possível uso turístico, as paisagens de transição que prologam a leste o Gerês.

Este album constitui assim uma notável obra de referência, aliciante e acessível a qualquer leitor, que pode informar eficazmente os habitantes da região e torná-los capazes de defender os interesses locais, mas que será também muito útil para os técnicos vindos de fora, que podiam encontrar-se incertos, frente a uma região de tão variada aparência e complexa estrutura.

Muito é de desejar que obras do mesmo tipo sejam elaboradas para outros diversos recantos, igualmente carregados de História e que constituem o atual desprezado Portugal interior, ignorado dos turistas e das empresas que os arrebanham, servindo apenas de refúgio para idosos meio esquecidos, sobrevivendo em aldeias isoladas entre campos vazios ou caoticamente colonizados por empresas vindas de fora. Convém portanto assinalar-se que acaba de ser oferecido a Portugal outro excelente estudo, devido, este, a um geógrafo alemão.

 

III. O BARROSO VISTO POR BODO FREUND

Na coleção Daten, Fakten, Literatur zur Geographie Europas, o nº 12 está consagrado às “Consequências a Longo Prazo das Migrações de Trabalho na Periferia Sul Europeia. O Caso do Barroso” (Freund, 2014). Escrito em alemão, o estudo está, no entanto, perfeitamente acessível a quem não domina esta língua, por estar provido, não apenas de substanciais e claros resumos em português, inglês e francês, mas também dum glossário que reúne, nas mesmas línguas, todo o vocabulário usado na abundante, valiosa e aliciante ilustração, que transmite ao leitor o essencial das observações do autor.

Bodo Freund contou, num livro que me foi recentemente dedicado (Freund, 2015), como, sendo então jovem aluno em Geografia da Universidade de Frankfurt am Main, decidiu, em 1965, vir estudar a vida rural no Norte de Portugal, por ter encontrado alguns dados acerca da sobrevivência, nesta longínqua terra, de modalidades comunitárias da exploração da terra. Defendeu e publicou em 1970 a sua tese de doutoramento, Estudos da Geografia Agrária e do Povoamento na Terra de Barroso, no Norte de Portugal (Freund, 1970). Elaborou então os preciosos documentos que são as plantas detalhadas da utilização do solo em diversas freguesias, levantadas por ele sobre a ampliação de fotografias aéreas americanas datando de 1958.

Tendo decorrido quatro decénios, ele teve a paciência, em 2007, de refazer o mesmo levantamento de pormenor nalgumas freguesias, produzindo assim imagens muito significativas das profundas modificações entretanto ocorridas, tanto no uso do solo e na produção agrária, como na construção e ocupação das casas. Numerosas fotografias da paisagem e dos habitantes, tiradas pelo autor tanto outrora como hoje, completam estes documentos cartográficos, ilustrando com vivacidade as profundas modificações paisagísticas e ocupacionais sofridas pela região.

Do substancial resumo em português, extraem-se ainda algumas indicações sobre a finalidade e as características deste importante estudo. O autor tentou estabelecer se os efeitos a longo prazo do ciclo da emigração foram do tipo “recuperação por via de diminuição demográfica” ou “espiral de decrescimento”. Ele notou que, mesmo depois de fechado o período da emigração, a população continua hoje a decrescer, por ter diminuído a proporção das mulheres jovens. Se o número de casas aumentou, elas têm uma taxa de ocupação muito baixa. Quanto à estrutura agrária, mudou mas não melhorou: não houve alargamento das explorações porque os proprietários instalados no estrangeiro não querem vender nem alugar as terras. Grande parte delas está nas mãos de reformados, que produzem apenas para o próprio consumo ou para receber subsídios da União Europeia. Hoje, tanto a população como a economia regional continuam fundamentalmente dependentes de receitas oriundas do exterior e uma melhoria da situação local parece ainda afastada, “porque a juventude encara o trabalho fora da região como única hipótese para uma vida aceitável”.

 

BIBLIOGRAFIA

Freund, B. (1970). Siedlungs- und agrargeographische Studien in der Terra de Barroso /Nordportugal, frankfurter Geographische Hefte, 48, Frankfurt Am Main, 1970. A obra foi parcialmente resumida num artigo em francês, Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, 9, 84-102.         [ Links ]

Freund, B. (2014). Langfristige Effekte der Arbeitsmigration in der südeuropäischen Paripherie. Das Beispiel Barroso/Nordportugal, 12. Leipzig: Leibniz-Institut Für Länderkunde.         [ Links ]

Freund, B. (2015). Cinquenta anos de visitas a Portugal – cinquenta anos de laços amigáveis com Suzanne Daveau. In M. F. Alegria (Coord.), GEOgrafias de SUZANNE DAVEAU (147-170). Lisboa: Centro de estudos Geográficos.         [ Links ]

Silva, R. S. M. (1983). Contrates e mutações na paisagem agrária das planícies e colinas minhotas. In J. Azevedo (Dir.), Estudos Contemporâneos. Comunidades Rurais (9-115). Centro de estudos Humanísticos, 5. Porto: secretaria de estado da Cultura.         [ Links ]

Silva, R. S. M. (1981). Paisagem Agrária das Planícies e Colinas minhotas, Contrastes e Mutações. Tese de Doutoramento. Faculdade de Letras – Universidade do Porto. Porto.

Silva, R. S. M. (2011). O Gerês: de Bouro a Barroso. Singularidades patrimoniais e dinâmicas territoriais. Porto: Edições Afrontamento.         [ Links ]

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