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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.99 Lisboa jun. 2015

 

NOTÍCIA


 

António Gama Mendes. Um geógrafo inquieto, um heterodoxo inconformado

 

 

Rui Jacinto1; Fernanda Cravidão2; António Campar de Almeida3; Norberto Santos4; Lúcio Cunha5

1 Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território. Universidade de Coimbra. E -mail: rui.jacinto@iol.pt
2 Professora Catedrática do Departamento de Geografia da Universidade de Coimbra. Coordenadora e inves­tigadora do Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território (CEG OT). E -mail: cravidao@ci.uc.pt
3 Professor associado da Faculdade de Letras de Coimbra. E -mail: campar@ci.uc.pt
4 Professor associado com agregação no Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de estudos de geografia e Ordenamento do território. E -mail: norgeo@ci.uc.pt
5 Professor Catedrático no Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Coim­bra. E -mail: luciogeo@ci.uc.pt

 

 

A partida prematura de António Gama Mendes (30.12.1948 - 31.12.2014), quando tinha acabado de completar 66 anos, deixa um imenso vazio entre amigos e colegas, tanto da geografia como da Universidade portuguesa. O legado de uma vida regista, de forma inequívoca, a sua competência científica, a sua aptidão pedagógica e a sua estatura acadé­mica, sem contudo traduzir completamente as qualidades intelectuais e humanas do amigo e do geógrafo que acabámos de perder.

Ao longo de mais de 40 anos António Gama integrou o Instituto de Estudos Geográ­ficos, agora Departamento de Geografia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coim­bra, onde desenvolveu o seu trabalho de docente e de investigador com grande dedicação, empenhamento e brio profissional, pondo ao serviço de toda a escola (estudantes, colegas e funcionários) uma humilde simpatia que conjugava com uma invulgar qualidade intelectual, uma elevada capacidade crítica e uma extraordinária bagagem cultural. O seu perfil de uni­versitário revela tanto um profundo conhecedor da geografia Portuguesa e, particularmente, dos temas de teoria e epistemologia da geografia, como um docente que sempre concretizou o que deve ser o ensino universitário: a articulação entre a investigação e o ensino, a prática efetiva da interdisciplinaridade, a generosidade intelectual e a humildade científica, muitas vezes assumidas como missão de vida.

No plano da investigação científica deixa muitas dezenas de trabalhos, em que se incluem estudos originais, trabalhos de colaboração, recensões críticas e traduções. Os temas de sua preferência estão, como acima referido, na teoria e epistemologia da geografia, na articulação da geografia com as restantes Ciências sociais, na geografia Política e, nos últi­mos anos, nos estudos sobre o Lazer. Verdadeiro conhecedor da sua cidade e das suas dinâmi­cas, fez da geografia Urbana o mote para muitos ensinamentos e investigações, que conjugava com a História dos tempos, dos acontecimentos e das personalidades, com que nos surpreendia pelo inesperado detalhe das descrições e dos encadeamentos. Na verdade, “tudo” resumia ao estudo das dinâmicas dos tempos, dos espaços e dos modos, da esquina da rua e da porta da casa, ao Mundo de infinitas nuances, conseguindo leituras, interpretações e exemplos que simplesmente desarmavam qualquer guarda, por mais persistente que fosse.

A perspectiva interdisciplinar levou-o também à colaboração docente em vários cursos fora do Departamento de geografia, nomeadamente em Jornalismo, estudos europeus, eco­nomia e relações internacionais, sempre por convite das respectivas comissões científicas, o que representa um claro testemunho, não só dos seus interesses científicos, mas sobretudo da sua disponibilidade, do seu modo de estar numa instituição Universitária e do reconheci­mento extra-geografia da sua capacidade pedagógica e científica.

O capital afectivo que nos ligava ao António Gama, tecido por décadas de cúmplice camaradagem que transcendia o simples relacionamento pessoal, acentua, agora, o senti ­mento de perda deixado pelo vazio da sua ausência. Na memória dos que partilhámos o seu convívio perduram as singelas flores de pão, os soldados de rolhas de cortiça, os esquilos e elefantes, moldados com simpatia e carinho, depois dum qualquer repasto, quando a conversa se alongava, sem rumo certo, entre geografia, actualidade social, política, futebol ou outras deambulações. Quando oferecia, com discreta candura, o fruto do seu artesanato às crianças ou ao sector feminino ao redor da mesa, deixava transparecer, neste gesto simples, afectuoso e solidário, a sua faceta mais terna e sensível.

Conhecemo-lo há muitos anos e desde logo nos sentimos companheiros, cúmplices e amigos. Durante estes anos (o tempo da crise de 69 para uns, os anos 70 para outros) conver­sámos muito. Sobre tudo e às vezes sobre nada. Ouvíamo-nos quase sempre. Partilhámos muitas cumplicidades. Pessoais. Políticas Académicas. Frequentámos os mesmos bancos e corredores da universidade, trilhámos caminhos que se cruzaram, participámos em jornadas de campo onde se soltavam emoções e as ideias voavam sem amarras. Comungámos utopias e partilhámos desafios em que depositámos fundadas esperança s e que, embora se tenham saldado por algumas derrotas, não deixaram de contar significativas vitórias. A faculdade e a geografia foram a nossa casa comum, espaços vividos com fervor, empenho e convicção que não soçobraram perante outros tantos momentos de incerteza e de desânimo.

Independente e livre-pensador, o António Gama antecipava o futuro ao viver numa permanente insatisfação criativa que o estimulava à constante invenção de novos projectos, viagens e geografias, algumas vezes adiadas, outras nem sempre concretizadas. Nesta via­gem comum de cerca de 40 anos fizemos alguns percursos juntos. Com colegas, com alunos, com amigos. Percorremos o país. Este país que o António Gama conhecia como poucos. Caminhámos pela(s) cidade(s) vezes sem conta. Esta Coimbra que, melhor do que ninguém, mostrava a todos. Através da viagem foram muitos os privilegiados que partilharam o seu conhecimento, o seu entusiasmo e o seu amor à geografia.

Ficaram memoráveis algumas destas viagens. No início dos anos oitenta alguns de nós percorremos a então república socialista da Jugoslávia. O conhecimento que tinha sobre o carso rapidamente se transpôs para o livro que se abria do outro lado da janela do autocarro. A alegria que colocava nas palavras, a capacidade de despertar o interesse dos companheiros de viagem onde os geógrafos eram um pequeno número, mostravam que a sua relação com as Ciências sociais era suficientemente consolidada para continuar, com entusiasmo, a olhar a geografia na sua dimensão total e multifacetada. A lição que deu, em split, sobre as ruínas do palácio de Diocleciano, de onde se advinha, ao longe, a península itálica, testemunhava, já, um dos seus últimos interesses, que foi o da geografia Política, interesse que se foi cons­truindo à medida que ia sendo desafiado pelos rumos que as diferentes geografias mundiais foram (des) construindo...

O António, nome de guerra do António Gama em terras de Castela e Leão, fez dos seus contactos e conhecimento ibéricos o motivo perfeito para os mais diversos e variados péri­plos. Estão ainda afectuosamente presentes os convívios das viagens do que ficou conhecido como o ramo de formação educacional (RFE), num período em que a formação de profes­sores era fulcral nas saídas profissionais na geografia. Sempre disposto a colaborar em toda e qualquer viagem, foi o esteio científico e a bússola das viagens dos futuros professores de geografia que passaram por Coimbra, nos últimos vinte anos.

Incansável no apoio à organização dos itinerários que cada viagem deveria efectuar, sempre utilizou estes momentos de são convívio para transmitir, a todos aqueles que partici­pavam, o seu muito apurado conhecimento do território. Mas, para António Gama, a viagem começava muito antes da partida. Discutir percursos, recolher informação, confirmar visitas, solicitar o apoio de colegas de além-fronteiras, encontrar alojamento para todos – juntando a comodidade do preço com a acessibilidade do lugar – pesquisar o que podia oferecer ao itine­rário elementos de novidade, de modo a tornar inesquecíveis os momentos, eram um nunca acabar de afazeres que tomava para si com uma alegria contagiante. Quando em terras espa­nholas ou na faixa fronteiriça, de um ou do outro lado, usava o seu profundo conhecimento da realidade geográfica de Espanha, mas também da sua História, para mostrar que nesta “jangada de pedra” é mais aquilo que une estes povos do aquilo que os separa.

António Gama tinha interesses diversificados que nunca se limitaram à geografia. A incessante demanda dum conhecimento holístico fizeram-no percorrer múltiplas encruzi­lhadas em que se foi bifurcando a geografia e, a sua outra paixão, as restantes Ciências sociais. Alicerçou, deste modo, um conhecimento sólido e uma informação rigorosa e com­pleta que, por formação e por convicção, o tornaram avesso a dogmas e cartilhas. Heterodoxo inconformado, olhava com igual desconfiança a híper especialização acrítica que viu alastrar à sua volta, quase sempre tão redutora e estreita quanto as demais ortodoxias que, dogmati­camente, tentam impor um pensamento único ou confinar o conhecimento às estritas fron­teiras disciplinares.

Tinha um modo próprio de interpretar, estar e intervir no Mundo, radicado num imagi­nário que mergulha nos idos de sessenta, anos que moldaram o seu pensamento e a maneira diferente de olhar, entender e fazer geografia. Neste, como em outros domínios, foi pioneiro, um inovador bem informado que, sempre um passo à frente, aparecia com a última novidade surgida num livro acabado de publicar. Foi assim que o conhecemos na flor da juventude, quando monitor, professor ou colega nos sugeriu leituras e nos iniciou em debates que ainda não tinham entrado na agenda. Ainda temos connosco nalguns dos livros que não lhe devolve­mos, as indicações de leitura nunca esgotadas, as sugestões de ir onde não fomos, as inquietu­des do seu espírito inquieto. E, agora, a saudade que o tempo se encarregará de serenar.

António Gama marcou com o seu saber e labor um período e uma geração da geografia Portuguesa, particularmente em Coimbra, onde teve uma influência discreta mas profunda, que sempre se situou para além de qualquer pretenso estatuto académico. Sempre acreditou na cooperação pessoal, interdisciplinar e intergeracional como alternativa a uma competitivi­dade pura e dura, que parece esgotar-se num quantitativismo redutor, valor supremo e abso­luto que esmaga qualquer apreciação qualitativa e que não deixa lugar para a mais leve ara­gem humanista, tão necessária para compreender e viver o Mundo de hoje.

Disseminou entre os que dele se abeiravam, com desprendimento e sem cálculo de algum tipo de retorno, informação pertinente e estratégica que granjeou ao longo dum labo­rioso, paciente e solitário percurso pessoal. Um exemplo desta generosidade está na grande quantidade de materiais que, após a sua saída da faculdade, disponibilizou aos colegas. Por exemplo, os dossiers da disciplina de teoria e Metodologia da geografia, disciplina que marcou gerações sucessivas de alunos que davam os primeiros passos pela geografia. Domi­nam textos de geógrafos, sociólogos, antropólogos e economistas. Quase todos comentados! Notas pessoais ou reflexões interrogativas e que em muito os valorizam. Sobretudo para quem os lê! São textos que durante anos repartiu com muitos de nós. a preto e branco. Sim­ples. Muitas vezes a lápis, como se nada que escrevesse fosse definitivo. e é aí que reside a sua maior generosidade.

Na senda de alfredo fernandes Martins e de outros mestres universitários, preocupados com o modo como o estado novo cerceava as liberdades, também António Gama se entre­gou, precocemente e com empenho, a um envolvimento cívico, não isento de riscos e desa­fios pessoais, institucionais e políticos. a democratização da universidade e a sua abertura à sociedade levaram-no a um envolvimento militante no movimento estudantil e a participar, já depois do 25 de abril de 1974, nos órgãos directivos da faculdade de Letras da Univer­sidade de Coimbra.

Este seu empenhamento cívico e político foi o caminho natural e expectável de um conhecedor precoce da realidade cultural e política do tempo que se vivia e do mundo que nos rodeava (da multifacialidade da europa, mas também dos mundos mediterrâneo, orien­tal e africano). a vesso a interpretações simplistas de acontecimentos ocorridos ou de cursos sociopolíticos tomados em algumas dessas regiões mundiais, aproveitava-os sempre para discorrer, com explicações geopolíticas lógicas, baseadas em argumentação sólida e fun­damentada. e aqui podiam perpassar argumentos ora de geografia física que se interpe­netravam com os de geografia Humana, mas também com os antropológicos ou com os históricos, para mostrar que na evolução das sociedades humanas nada acontece por acaso. sem pretensiosismo, com frequência fundamentava as suas explicações em bibliografia que enunciava de cor, chegando por vezes ao rigor de indicar as páginas onde se poderia encon­trar determinada afirmação.

Sabemos que o legado de António Gama permanecerá para sempre na geografia por­tuguesa, ainda que dissolvido na voracidade do tempo que passa e no silêncio da palavra que deixámos de escutar, palavra que nunca se cansou de defender uma geografia renovada e mais culta, sofisticada, cosmopolita e solidária. foi uma luta permanente que travou convic­tamente ao pugnar por uma geografia que, antes de mais, deve estar ao serviço das pessoas e ser comprometida com o Mundo.

Preservar o seu legado e honrar a sua memória também passam por continuar a debater temas e causas em que António Gama depositou tanta esperança.

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