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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.99 Lisboa jun. 2015

 

NOTÍCIA


 

Professor doutor Fernando Manuel da Silva Rebelo (1943-2014)

In Memoriam

 

 

Luciano Lourenço1; Lúcio Cunha2

1Professor associado com agregação, do Departamento de geografia da faculdade de Letras da Univer­sidade de Coimbra e investigador do Centro de estudos de geografia e Ordenamento do território e do núcleo de investigação Científica de incêndios florestais. E-mail: lucianol@fl.uc.pt
2Professor Catedrático no Departamento de geografia da faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E-mail: luciogeo@ci.uc.pt

 

 

O Doutor Fernando Rebelo, Professor Catedrático jubilado do Departamento de Geo­grafia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nasceu em espinho, a 16 de Setembro de 1943 e fez os seus estudos primários e secundários no Porto.

Em 8 de Fevereiro de 1966, licenciou-se em geografia pela faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com 17 valores, após a defesa de uma Dissertação intitulada “Vertentes do rio Dueça”, que, no ano seguinte, veio a ser publicada no Boletim do Centro de Estudos Geográficos de Coimbra.

Após uma breve passagem pelo ensino secundário particular, em Leiria, nos anos lectivos de 1964/65 e de 1965/66, iniciou a sua carreira docente universitária no dia 1 de Junho de 1966, como assistente eventual da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, carreira logo interrompida pela prestação do serviço militar obrigatório (de 12 de Setembro de 1966 a 30 de Novembro de 1969). Nessa época (anos lectivos de 1967/68 e 1968/69), voltou a desempenhar funções no ensino secundário particular, em Lisboa.

Doutorou-se em geografia física pela Universidade de Coimbra, em 24 e 25 de Julho de 1975, com a classificação de “aprovado com distinção e louvor”, por unanimidade dos membros do júri, na sequência da defesa da Dissertação intitulada Serras de Valongo – Estudo de Geomorfologia (publicada pela FLUC, como suplemento da Biblos) e de um Projecto de investigação intitulado “Os Processos erosivos actuais no Litoral norte e Centro de Portugal”.

Professor auxiliar, além do quadro, da faculdade de Letras da Universidade de Coim­bra desde 28 de Novembro de 1975, prestou provas públicas para Professor extraordinário da mesma faculdade nos dias 6 e 7 de Novembro de 1978 e, sendo aprovado, veio a tomar posse do lugar no dia 1 de Fevereiro de 1979. Extinta a categoria de Professor extraordinário (Lei 19/80, de 16 de Julho), passou a Professor Catedrático, em 4 de Março de 1982.

Entre 1 de Outubro de 1986 e 24 de Setembro de 1996 foi Vice-Reitor da Univer­sidade de Coimbra. Foi eleito reitor da mesma Universidade no dia 6 de Maio de 1998, cargo em que foi investido a 24 de Junho de 1998. Reeleito no dia 20 de Maio de 2002, tomou posse no dia 24 de Junho seguinte, tendo renunciado ao cargo no dia 13 de Novem­bro do mesmo ano.

Dedica-se, depois, à docência no Departamento de geografia, actividade que, aliás, nunca deixou de exercer enquanto desempenhou funções reitorais e que manteve até à sua jubilação, em 16 de Setembro de 2013, um dia em que muitos de nós o acompanhámos e que culminou com o lançamento de um livro em sua homenagem sobre riscos naturais, antró­picos e Mistos, temática que o apaixonou nos últimos anos de vida e em que, apesar de jubi­lado, continuava a trabalhar. Neste livro tivemos o ensejo de publicar a listagem das muitas obras de sua autoria que, dado o seu elevado número, não cabe aqui referir.

A sua área de especialidade era a geografia física e, em particular, a geomorfologia, ciência a que muitos contributos deu, particularmente em termos de geomorfologia Dinâ­mica, através de brilhantes lições e de numerosos trabalhos publicados. Manda, no entanto, a verdade que se diga que, do ponto de vista da investigação científica, Fernando Rebelo, não foi apenas um geomorfólogo, embora tenha desenvolvido a maior parte do seu trabalho nesta área da ciência geográfica. Por força das exigências de serviço, quando iniciou a carreira universitária foi responsável pela docência de várias disciplinas de quase todas as áreas de geografia física, mas também de algumas disciplinas de geografia Humana e, sobre estas deixou, não apenas a memória dos seus ensinamentos brilhantes, mas também escritos cien­tíficos relevantes, como os textos dos anos 70 que documentam o afluxo de trabalhadores à cidade de Coimbra.

A sua vasta actividade pedagógica, exercida ao longo dos 45 anos em que perma­neceu no Departamento, traduziu-se na leccionação de 26 disciplinas e seminários, além da regência das disciplinas de etnografia e/ou geografia de Portugal no Curso anual de Lín­gua e Cultura Portuguesa para estrangeiros, no âmbito das quais realizou inúmeras viagens de estudo, especialmente na região Centro, e colaborou em diferentes cursos de outras universidades. As suas metódicas exposições, muito organizadas e didácticas, cativaram todos aqueles que tivemos o privilégio de o ter como professor nos primeiros anos das nossas licenciaturas. Depois, nos anos seguintes, a atitude do mestre era diferente, incen­tivando-nos a iniciar a investigação científica aplicada a temas concretos, que acom­panhava e orientava de perto.

Foram muitas as gerações de alunos, com idades e culturas bem diferenciadas, que durante todos estes anos foram marcadas por este grande vulto da geografia portuguesa, asso­ciado a uma personalidade de trato fácil e grande disponibilidade, a que se aliava o carácter afável do grande pedagogo que foi o Doutor Fernando Rebelo.

Viajante incansável, realizou numerosas viagens de estudo por todo o território portu­guês, incluindo todas as ilhas dos açores e da Madeira, bem como por praticamente toda a Europa e por muitos outros países de África, Ásia e América. Nunca guardou para si as aprendizagens feitas nestas viagens, sempre realizadas com uma perspectiva geográfica, uma vez que, depois, aproveitava algumas das aulas para partilhar com os seus estudantes as experiências vividas. Através da imagem, com os seus famosos slides, ultimamente substi­tuídos por não menos cuidadas apresentações em Powerpoint, com excelentes fotografias, dava a conhecer outras paragens, com contextos geográficos diferentes, tendo mesmo dado à estampa algumas delas, como as que constam do livro Viagens pelo Brasil. Impressões de um Geógrafo, Memórias de um Reitor, publicado em 2006.

Falar de Fernando Rebelo é, talvez, falar do último geógrafo pertencente à geração dos chamados geógrafos completos. Completo na vida universitária, onde percorreu quase todas as tarefas e cargos possíveis, completo na leccionação por que foi responsável (em pratica­mente todas as áreas da geografia), completo pela investigação que desenvolveu (em quase todas as áreas da geografia física, mas também em geografia Humana e em brilhantes sín­teses sobre a geografia de Portugal), completo por desenvolver estudos mais teóricos, por vezes mesmo de carácter epistemológico, e inúmeros estudos de caso quase sempre desen­volvidos com um preocupação de aplicação, completo, finalmente, porque ao brilho das suas aulas, juntava a competência científica e a elegância dos seus escritos, bem como a eloquên­cia das palestras e conferências que muito frequentemente proferia.

Coimbra e o Mondego foram sempre território privilegiado para a investigação geo­morfológica de Fernando Rebelo. No nº 100 da revista Memórias e Notícias, Publicação do Museu e Laboratório Mineralógico e geológico da Universidade de Coimbra (1985) escreve um trabalho sobre a geomorfologia da área de Coimbra que ainda hoje é referência obri­gatória para enquadramento dos estudos de geomorfologia urbana que respeitem Coimbra. Voltará ao tema mais tarde, em artigos publicados nos Cadernos de Geografia (1999) e na Revista da Ordem dos Engenheiros (2002).

Em 1990, publica nos Cadernos de Geografia um texto sobre a “Contribuição da geo­grafia física para a inventariação das potencialidades turísticas do Baixo Mondego”. Ainda que preocupado com o conjunto dos aspectos ligados à natureza no Baixo Mondego, as formas de relevo, pela sua importância na construção da paisagem, pelo seu valor icónico e cultural, pelo seu significado pedagógico, são tratadas como verdadeiras peças do património natural, num trabalho que antecede em alguns anos os abundantes trabalhos sobre geopatri­mónio, geossítios e geomorfossítios que aparecem no âmbito da Geografia e da Geologia no final do século passado. Já antes, Fernando Rebelo tinha participado num conjunto de obras destinadas à promoção dos recursos turísticos da região Centro, de Coimbra, de Aveiro e da Lousã, apelando sempre à importância da geografia física, e particularmente da geomor­fologia, na promoção turística dos territórios.

Outra referência importante, até pela polémica que, na altura, envolvia o tema, foi a publicação dos resultados de um projecto sobre a importância da geomorfologia como con­tributo para a datação das gravuras do Côa, primeiro nos Cadernos de Geografia (1996) e depois na Revista Finisterra (1997).

Na sequência do projecto de investigação que apresentou a provas de doutoramento, a investigação científica de Fernando Rebelo no campo disciplinar da geomorfologia foi pau­tada, sobretudo, pelo pormenor nas escalas de trabalho e por uma perspectiva de aplicação. Talvez, por isso, foi fácil a passagem para o tema de eleição da sua investigação durante os últimos vinte anos: o do estudo dos riscos naturais. Riscos geomorfológicos, naturalmente, mas também riscos hidrológicos, risco sísmico, incêndios florestais e teoria dos riscos.

Por isso, de entre as suas obras, porventura a mais conhecida é o livro sobre Riscos Naturais e Acção Antrópica, com duas edições, uma em 2001 e outra em 2003, e que consti­tui referência obrigatória em qualquer trabalho que verse sobre ciências cindínicas. Sobre o tema viria ainda a publicar mais dois livros: Uma experiência europeia em riscos naturais (2005) e Geografia Física e Riscos Naturais (2010).

Querendo ou não, Fernando Rebelo fez e deixa escola! Basta pegar num qualquer número dos Cadernos de Geografia ou da Territorium, revistas que criou e que ajudou a promover, para encontrar referências suas em quase todos os trabalhos de quase todos nós. Sobre a Geomorfologia da região de Coimbra e sobre o Mondego, sobre cristas quartzí­ticas, sobre relevo granítico, sobre a importância do frio no modelado das vertentes, sobre processos erosivos actuais, sobre o litoral, sobre as montanhas, sobre planícies aluviais! Mas também, e sobretudo, sobre teoria do risco, sobre riscos sísmicos, geomorfológicos e hidrológicos, sobre incêndios florestais, sobre erosão hídrica. De facto, sobretudo as deze­nas de investigadores de geografia física das escolas de Coimbra, do Porto e do Minho têm em Fernando Rebelo uma referência científica incontornável, que ajudará a perpetuar o saber geográfico e geomorfológico deixado pelo professor, pelo orientador, pelo investi­gador, pelo amigo! As centenas de trabalhos de investigação publicadas nos últimos anos pelas dezenas de investigadores que aprenderam com Fernando Rebelo sobre geomor­fologia, sobre riscos naturais, sobre epistemologia da geografia física aí estão para o demonstrar.

Apesar de jubilado, o Doutor Fernando Rebelo continuou a vir frequentemente ao Departamento de geografia e a colaborar na realização de diversas actividades do Depar­tamento e do CEGOT, acompanhando o grupo e incentivando-o a progredir e a melhorar.

Condensar em meia dúzia de linhas os traços da personalidade e da vasta obra de Fernando Rebelo não é fácil. Foram dezenas as reuniões científicas que organizou e perde-se a conta daquelas em que participou, bem como das conferências que proferiu em Portugal e no estrangeiro. Orientou 15 teses de doutoramento e mais de 20 teses de mestrado ou de apti­dão pedagógica e capacidade científica. Participou em diversos projectos de investigação científica e em actividades administrativas de vária índole.

Esta sua intensa vida académica, de professor, cientista e gestor universitário, foi reco­nhecida de várias formas, designadamente através da atribuição da qualidade de sócio Hono­rário por muitas instituições e organismos, bem como foi merecedor de diversos prémios, homenagens e distinções, de que se referem apenas duas: a Grã Cruz da Ordem Estadual Renascença do Piauí, que recebeu no Brasil; e A Grã Cruz da Ordem de Mayo al Mérito, que lhe foi atribuída na Argentina. Ao deixar-nos prematuramente, quando ainda muito tinha para dar à geografia e à Universidade de Coimbra, Fernando Rebelo leva com ele a referência de uma geração de geógrafos, a dos chamados geógrafos “completos”, por ter trabalhado, como os mestres que o antecederam, tanto em geografia física como em geografia Humana, como refe­rimos já. Sobre a vida e a obra de alguns destes mestres deixou testemunho na publicação que intitulou A Geografia Física de Portugal na vida e obra de quatro professores uni­versitários – Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins, Pereira de Oliveira (2008), quatro ilustres geógrafos portugueses, três deles eminentes professores e mestres, no sentido vernáculo do termo, da Universidade de Coimbra e, no caso do Doutor Orlando ribeiro, também com passagem pela Universidade de Coimbra antes de ingressar na Uni­versidade de Lisboa.

Ora, com o desaparecimento do decano da geografia de Coimbra, a 9 de Outubro de 2014, a geografia portuguesa ficou muito mais pobre. Igualmente mais pobre ficou a Univer­sidade de Coimbra, pois perdeu um dos seus reitores e um dos seus mais brilhantes pro­fessores, que ajudou a promover e a divulgar pelos quatro cantos do mundo a instituição que serviu com muita dedicação.

Lembramos, pois, com saudade, o professor e o cientista, mas também o colega e o amigo que, tantas vezes e com tantos de nós, colaborou em trabalhos académicos, de ensino e de investigação, uma obra que perdurará no tempo e que não deixará de ser uma referência para qualquer estudioso de geografia física, de geomorfologia, bem como da temática dos riscos e das suas manifestações.

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