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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.97 Lisboa maio 2014

 

RECENSãO

 


Seca e crises da água. Questões de ciência, tecnologia e gestão

 

 


Sarah Ferreira1
1 Doutoranda do Programa interuniversitário Território, Risco e Políticas Públicas oferecido em conjunto pelo instituto de investigação interdisciplinar/CES da Universidade de Coimbra, pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território/CEG da Universidade de Lisboa, e pelo Departamento de Ambiente e Ordenamento Universidade da Universidade de Aveiro. Orientação da dissertação de doutoramento: M. Queirós, IGOT-UL e A. Cézar Leal, UNESP. E-mail: sarahmalta@ymail.com

 

O ano de 2013 revelou-se fundamental pela campanha mundial levada a cabo pelas nações Unidas e Organização Meteorológica Mundial, para a preparação e gestão do risco de seca. O dia mundial de combate à seca, celebrado em 17 de Junho, constitui um incentivo simbólico que marca a vontade das instituições internacionais em apoiar a construção de uma comunidade global preparada para a seca e resiliente à escassez de água. No contexto destas iniciativas, a difusão de boas práticas alicerçadas na inovação e no conhecimento científico são fundamentais, pelo que a divulgação de trabalhos científicos, como o publicado em 2005 por Donald Wilhite, revelam o compromisso da academia com o estudo do tema e a ação sobre o mesmo.

O livro Drought and Water Crises: Science, Technology, and Management Issuesi é uma obra coletiva editada por Donald A. Wilhite, climatologista fundador do Centro nacional de Mitigação da seca da Universidade de Nebraska-Lincoln, centro académico onde exerce a sua atividade desde 1979. Este livro é um dos frutos desta árdua e longa pesquisa sobre a seca, na busca pelo suprimento de algumas lacunas do conhecimento sobre este tipo de risco. A obra agrupou uma série de artigos que retratam estudos e experiências vivenciadas em diferentes regiões do globo procurando compreender e analisar as complexidades relacionadas com as ciências, tecnologias e gestão do risco da seca face à crescente ameaça de crise da água.

A obra é norteada por uma série de perguntas que, para Wilhite, não foram explicadas nesses anos de estudos sobre a seca, e que podem na sua essência, ser resumidas através da seguinte questão abrangente: “qual a dificuldade em aplicar os avanços científicos e tecnológicos na gestão efetiva da seca-”. No sentido de contribuir para a minimização desta dificuldade, o livro divide-se em quatro grandes eixos, apresentando inicialmente uma visão geral da seca com um enfoque quer no seu contexto natural, como social. Seguidamente discorre acerca dos progressos e limitações da ciência e tecnologia para a compreensão e gestão da água e da seca. São depois apresentados alguns estudos de caso, onde se podem averiguar boas práticas na gestão do risco de seca e, por fim, o editor integra e conclui os pontos que foram abordados nos diversos artigos apresentados. O primeiro eixo é composto por um único capítulo escrito pelo editor em parceria com Buchanan-Smith, que trabalha na ajuda humanitária há cerca de 20 anos, com grande experiência em operações de minimização dos impactos da seca. Os autores destacam três fatores diferenciadores da gestão do risco de seca, são eles: a morosidade dos processos de atuação e difícil determinação temporal e espacial do fenómeno, a dificuldade na definição de um conceito universal de seca e sua atuação silenciosa que dificulta ações precisas e confiáveis para o sistema de aviso e alerta. Estes três pontos tornam a gestão da seca um desafio maior, pois requer um complexo sistema de mitigação e resiliência, pautados em estimativas confiáveis para os sistemas de alerta, assim como numa compreensão das características da vulnerabilidade da população que vive em áreas com alta probabilidade de ocorrência de desastres relacionados com a seca.

Na discussão do segundo eixo, há um aprofundamento de metodologias, conceitos teóricos e técnicas capazes de auxiliar na mitigação dos impactos da seca. é constituído por oito capítulos, sendo que os três primeiros se debruçam sobre a temática voltada às questões relacionadas com os avanços e limitações das ciências meteorológicas e da produção de indicadoresii que auxiliam na detecção e monitorização da seca. Como Michael et al. afirmam no capítulo três, o sistema de monitorização da seca ainda está na sua “infância” e regista-se uma carência de dados demasiado relevante, dificultando a compreensão do clima passado e do sistema meteorológico futuro. Assim, estes autores destacam a necessidade de quebra do atual ciclo “hidro-ilógico” da águaiii, através da monitorização da seca e das reservas de água, uma vez que os tomadores de decisão precisam de tempo e de registos bem documentados sobre secas anteriores.

Os últimos capítulos deste segundo eixo abordam diversas questões de planeamento e gestão do risco; o quinto capítulo apresenta dez passos efetuados por alguns estados norte americanos para tornar as capacidades institucionais ligadas ao planeamento da seca mais robustas, capazes de gerar planos proativos da gestão da seca. O capítulo seis mostra alguns exemplos dessa gestão proativa da seca, através das lições aprendidas na austrália, áfrica do Sul e EUA, destacando a necessidade do cumprimento de quatro componentes que, segundo Wilhite e seus colaboradores, são fundamentais para a eficácia na redução de risco de seca:

(1) a disponibilidade de informação oportuna e fiável para a tomada de decisões; (2) políticas e arranjos institucionais que estimulem a comunicação, avaliação e aplicação das informações disponíveis; (3) estruturas de gestão de risco adequadas, e (4) ações efetivas e consistentes por parte dos decisores. Este eixo ainda busca abordar a questão da seca e gestão da água na agricultura. Na sequência, o sétimo capítulo aborda a importância da conservação da água como instrumento fundamental na mitigação da seca, ao apresentar alguns métodos de conservação da água como a reparação de vazamentos e incentivo à diminuição no consumo das atividades da indústria e comércio, ou um maior controle da evaporação, através de um manejo da irrigação eficiente. O oitavo capítulo destaca alguns métodos de cultivo e irrigação em áreas secas, sendo os mais utilizados, a irrigação suplementar, indicada para áreas de sequeiro onde a carência de água é esporádica, e o aproveitamento de águas pluviais para os ambientes mais secos.

O capítulo nove busca discutir a vulnerabilidade social à seca, relacionando-a com os efeitos da mudança climática global, onde se questiona o modo como as adaptações às alterações climáticas estão a ser efetivadas e se salienta a necessidade da conexão das fronteiras científicas, multiescalares e institucionais, o que pode auxiliar o estabelecimento de uma rede policêntrica que proporcione a equidade e complementaridade no processo de tomada de decisão. Para Polsky e Cash estas instituições “transfronteiriças” devem possuir três características fundamentais: saliência (ser relevante para órgãos de decisão ou públicos), credibilidade (necessidade de competência técnica, sustentada por cientistas reconhecidos) e legitimidade (ao atuar de modo justo no processo de produção de informação, considerando os valores adequados, preocupações e perspectivas de diferentes atores). Estes três valores, devido à sua subjetividade, acabam por destacar a percepção que os atores sociais têm das instituições, e este facto auxilia na efetivação da governança do risco de seca e em decorrência disto, a minimização da vulnerabilidade das comunidades à seca, perante as alterações climáticas.

A terceira parte do livro contém quatro estudos de caso que mostram diferentes ações ligadas às boas práticas na gestão da seca, os dois primeiros capítulos deste eixo tratam da gestão integrada de bacias hidrográficas transfronteiriças entre os estados Unidos e o Canadá. O terceiro capítulo do eixo aborda os métodos utilizados pela China para o desenvolvi- mento de uma política nacional de combate ao risco da seca. O capítulo seguinte mostra as dificuldades de absorção das novidades e avanços científicos pelo setor agrícola australiano, causadas sobretudo pelas limitações do sistema de previsão meteorológica que, até recentemente, apresentava com frequência lapsos que foram descredibilizando o sistema de aviso e alerta; isto aliado à barreira relativa à compreensão da linguagem utilizada na divulgação destes instrumentos, acabou por gerar grande desconfiança nesta ferramenta por parte dos agricultores. Como último estudo de caso deste eixo, surge uma análise da política de combate à seca espanhola e uma crítica à carência de sistemas de previsão meteorológica na região mediterrânica.

A quarta parte apresenta algumas considerações finais do editor, mostrando que a atual preocupação com assuntos relacionados com a seca se deve à quantidade de países e regiões afetadas por este risco e que as políticas para combater as alterações climáticas dão destaque à necessidade de adaptação às situações de escassez de água; para o autor, este interesse na compreensão e mitigação dos efeitos negativos da seca deve-se ao aumento nas últimas décadas dos volumes financeiros perdidos sobretudo em quebras de colheitas que têm como causa fundamental a seca. Desse modo há que incentivar medidas proativas de combate à seca, visto que as tradicionais medidas reativas acabam por mascarar a importância e necessidade da governança da seca, e as capacidades adaptativas que a população pode gerar com o envolvimento popular. Mas ressalta que é necessário continuar a desenvolver ferramentas e a levantar dados para que esta capacidade adaptativa seja estruturada em bases científicas robustas. Neste ponto destaca-se a necessidade da criação de um sistema de comunicação capaz de quebrar as referidas barreiras e introduzir a prática desses novos métodos de preparação para os períodos de seca; assim, admite-se que a ênfase no combate aos efeitos negativos da seca está na adaptação doméstica e às falhas no diálogo entre leigos e técnicos – grandes obstáculos neste processo.

As considerações finais, tecidas pelo editor, reforçam a complexidade do problema e a importância do estudo da seca e da escassez de água no cenário contemporâneo, propósito bem abordado no decorrer do livro que, através de capítulos independentes mas interligados do ponto de vista temático, contribui para a discussão sobre os avanços tecnológicos ligados à prevenção da seca e ao desenvolvimento de políticas públicas, que auxiliem a gestão eficiente deste risco.

Trata-se de uma obra bastante completa que discute cientificamente o tema do risco da seca, e que recorre ao conhecimento empírico sobre esta ameaça em várias partes do mundo, contribuindo inequivocamente para a reflexão e apoio na resolução dos desafios da seca – acentuada pela dificuldade na aplicação dos avanços científicos na gestão da seca e da água –, e fundamental para a melhoria genuína dos efeitos negativos deste problema complexo concebido pela carência de água.

D. Wilhite considera a seca como o mais complexo de todos os perigos naturais. Os progressos lentos no planeamento da preparação para a seca e o fraco desenvolvimento de políticas nacionais e internacionais de combate e assistência às crises da água, são um reflexo dessa complexidade. Por estas razões, a obra revela-se atual e pertinente, às quais acrescem os alertas das nações Unidas, da Organização Meteorológica Mundial e do IPCC, entre outras, sobre os aumentos de temperatura e incertezas quanto à quantidade, distribuição e intensidade de precipitação, frequência, gravidade e duração das secas. O desenvolvimento de sistemas de alerta precoce e um melhor e mais informado acompanhamento da seca através de políticas de preparação para a mesma, são uma necessidade urgente para todos os países e regiões propensos à seca, dados os seus efeitos devastadores para as populações e as economias.

 

NOTES
iWilhite D A (2005) Drought and water crises: science, technology, and management issues. Taylor & Francis, Florida, EUA.
iiTodavia, naquela secção foram analisados alguns dos sistemas de indicadores de seca mais utilizados nos eUa: o Palmer Drought Severity Index (PDsi), o Palmer Hydrologic Drought Index (PHDi) e o Surface Water Supply Index (sWsi).
iiiO ciclo “hidro-ilógico” da seca caminha da época das chuvas (1.ª etapa) que marca a apatia da gestão pública (2.ª etapa), seguida pelo inicio da estiagem (3.ª etapa) que ainda carrega consigo fortes indícios de despreocupação pública até que se toma consciência da seca (4ª etapa), para que, finalmente, haja interesse na resolução do problema (5.ª etapa) e por fim, gera-se o pânico (6.ª etapa) que é “aliviado” com a chuva (1.ª etapa) que retoma o ciclo.

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