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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.93 Lisboa jun. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL


 

Patrimônio e território urbano em cartas patrimoniais do século XX

 

Heritage and urban territory; The 20thcentury main patrimonial letters

 

Patrimoine et territoire urbain au sein des cartes patrimoniales du XXeme siècle.

 

 

Everaldo Batista da Costa1

1Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: everaldocosta@unb.br

 

 

RESUMO

Vive-se a era da visibilidade suprema dos bens culturais e naturais do mundo, ou seja, uma época em que as cidades antigas espalhadas pelo planeta são refuncionalizadas em nome do desenvolvimento econômico local com o chamado turismo cultural. Porém, faz-se necessário a retomada do processo histórico que desemboca na atual concepção de patrimônio cultural, no seu aspecto universal que se particulariza na dialética entre a cultura e a mercadoria, que rebate diretamente no território urbano entendido em sua totalidade. Este trabalho, síntese de uma pesquisa mais ampla, traça um breve marco de análise sobre a consagração do patrimônio cultural, de sua noção monumental a patrimônio mundial, na tentativa de desvendar a abordagem territorial urbana vigente. Para isso são consideradas, neste estudo, as principais cartas patrimoniais do século XX: Carta de Atenas (1931), Carta de Veneza (1964), Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972), Declaração de Amsterdã (1975).

Palavras-chave: Monumento, patrimônio cultural, cidade histórica, território urbano, cartas patrimoniais.

 

ABSTRACT

There is currently an extreme visibility of the world’s cultural and natural heritage; a time in which ancient cities around the planet are given new roles on behalf of local economic development, the so called cultural tourism. However, it is necessary to consider the historical process that led to the current conception of cultural heritage in its universal aspect and distinguish the dialectic between culture and commodity, which impacts on the comprehension of urban territory in all its aspects. This paper summarizes a wider research and analyses the consecration of the cultural heritage to the invaluable notion of world heritage. We search to understand the effective urban territorial approach through the 20th century main patrimonial letters: Letter of Athens (1931), Letter of Venice (1964), Convention for the Protection of the Cultural and Natural Heritage (1972) and the Amsterdam Declaration (1975).

Keywords: Monument, cultural heritage, historical city, urban territory, patrimonial letters.

 

RÉSUMÉ

On vit à l’âge de la visibilité suprême des biens culturels et naturels du monde, soit à une époque où les villes anciennes du monde entier sont remises en fonction au nom du développement économique local par le soi-disant « tourisme culturel ». Toutefois, il faut reprendre le processus historique dans son aspect universel, qui se particularise dans la dialectique entre culture et marchandise; cette dialectique se reflète sur le territoire urbain, entendu dans son intégralité. Ce texte esquisse un cadre pour l’analyse de la consécration du patrimoine culturel, de la notion de patrimoine monumental à celle de patrimoine mondial, dans une tentative de dévoiler l’approche territoriale urbaine existante. Pour cette étude, nous avons considéré les principales cartes patrimoniales du XXème siècle: Carte d’Athènes (1931), Carte de Venise (1964), Convention Relative à la Protection du Patrimoine Mondial Culturel et Naturel (1972), Carte d’Amsterdam (1975).

Mots-clés: Monument, patrimoine culturel, ville historique, territoire urbain, cartes patrimoniales.

 

 

I. INTRODUÇÃO

Como objetos de culto contemporâneos, os bens culturais são tratados como patrimônio material e imaterial, objetos de culto tangíveis e intangíveis, no contexto mais amplo da reprodutibilidade técnica, da arte e no bojo do avanço do capitalismo. Integrantes da cultura erudita e popular, material e imaterial, importa entender que os bens culturais são social e historicamente produzidos e apropriados pelos homens, que lhes dão forma, conteúdo, função e sentidos diversos, de acordo com as épocas e as necessidades do instante passageiro. O reconhecimento das formas de apropriação dos bens culturais é fundamental para se conhecer as operações humanas sobre o meio natural, o ambiente construído e para o entendimento da organização social; ou seja, a análise geográfica da apropriação da natureza ou dos objetos pretéritos ajuda-nos a compreender os momentos distintos da produção e “valorização do espaço”, de acordo com cada momento histórico (Moraes e Costa, 1996; Moraes, 2000).

Segundo Meneses (1986), o estudo dos bens culturais precisa ir além do nível da corporeidade dos objetos. A cultura material ou imaterial, os artefatos ou as manifestações precisam ser entendidos como produtos e vetores de relações sociais; para o autor, a significação dos artefatos é oriunda de sua condição de trazerem embutidas propriedades que decorrem das formas segundo as quais os homens se organizam em sociedade, produzem seus territórios, historicamente.

A palavra patrimônio é empregada com certa frequência, no cotidiano. Choay (2006) esclarece que essa bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo, sendo requalificada, na atualidade, por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, cultural, etc.) que fizeram dela um conceito nômade, seguindo, hoje, uma trajetória distinta e retumbante. Entretanto, tornou-se relevante, no âmbito das ciências humanas (incipientemente, na Geografia), a construção desse termo enquanto categoria de pensamento: patrimônio cultural, arquitetônico, histórico, artístico, natural e imaterial; além da recente consagração do chamado Patrimônio Cultural da Humanidade ou Patrimônio Mundial.

A categoria patrimônio, tal como é concebida na atualidade, nem sempre conheceu fronteiras bem delimitadas. Na concepção de Gonçalves (2003), a noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade, apesar de, hoje, estar ligada a bens de natureza ideológica, moral, religiosa, política, jurídica, estética, psicológica e, inclusive, natural; são distintos valores atribuídos ao ambiente, aos objetos e às práticas sociais que, no limite, simbolizam a apropriação da natureza, a espacialização da sociedade ou a organização de espaços urbanos, ao longo da história.

Logo, por abranger a questão da produção do espaço, sobretudo o urbano, tanto pretérito quanto contemporâneo, e por ser envolvido pelo que consideramos uma dialética da construção destrutiva que pasteuriza a sociedade e o lugar, por enredar simultaneamente preservação e mercantilização contraditoriamente, julga-se pertinente tratar da consagração do Patrimônio Mundial partindo do processo histórico de ampliação da noção de patrimônio e dos significados atribuídos a essa materialidade ao longo do tempo. Será nas cidades, sobretudo, que os bens culturais são metamorfoseados em mercadorias mundiais (desl)localizadas favorecedoras da transformação material e simbólica do próprio território que os guarda.

Considera-se, neste artigo, a dialética preservação-mercantilização, que envolve construção-desconstrução e uso-troca que se operacionalizam na simultaneidade consagradora do próprio patrimônio. Essa dialética ocorre no movimento entre a tentativa de resgate, democratização, preservação e valorização dos bens culturais, no caso do Patrimônio Cultural da Humanidade, dirigido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e a intensa mercantilização dos núcleos urbanos tombadosi, catalisada pela indústria cultural por via do turismo. Tal análise possibilita entender a lógica contemporânea que encerra as cidades antigas (o consagrado Patrimônio Mundial) inseridas na totalidade-mundo, onde a indústria cultural – através da atividade turística – contém e está contida em tal totalidade que rebate sobre variados territórios urbanos, distintamente em cada continente, estabelecendo uma “geografia desigual do patrimônio mundial” (Costa, 2009).

Cabe um breve parêntese para o esclarecimento da noção de totalidade com a qual trabalhamos neste texto, noção que é “uma das mais fecundas que a filosofia clássica nos legou, constituindo em elemento fundamental para o conhecimento e análise da realidade. Segundo essa ideia, todas as coisas presentes no Universo formam uma unidade. Cada coisa nada mais é que parte da unidade, do todo, mas a totalidade não é uma simples soma das partes. As partes que formam a totalidade não bastam para explicá-la. Ao contrário, é a totalidade que explica as partes (...). Eis porque se diz que o todo é maior que a soma de suas partes (...). A totalidade é o conjunto de todas as coisas e de todos os homens, em sua realidade, isto é, em suas relações, em seu movimento” (Santos, 2002: 115-116).

Martins (2006) chama a atenção para a importância de se caracterizar a relação singular-particular-universal no âmbito da investigação científica, afirmando-a como requisito para a compreensão do objeto em suas múltiplas relações e, acima de tudo, para superação de falsas dicotomias (do tipo indivíduo-sociedade), muito presente nas ciências humanas. De acordo com Martins (2006: 12), se preterida a função mediadora da particularidade, as relações acabam sendo consideradas na “centralidade de pólos aparentemente dicotômicos, perdendo-se de vista as formas pela qual ocorre a concretização da universalidade no vir-a-ser da singularidade, mediada pela particularidade”.

Logo, é no movimento entre o particular e o universal que se aponta, neste artigo, o processo de consagração do patrimônio cultural em âmbito global, no percurso histórico de denominação dos monumentos à forja do Patrimônio Mundial, no qual se incluem cidades brasileiras como Diamantina, Ouro Preto e Congonhas, em Minas Gerais, Salvador, na Bahia, São Luiz do Maranhão e Brasília, a primeira cidade moderna consagrada como patrimônio da humanidade, por exemplo.

 

II. A CONCEPÇÃO MONUMENTAL DO PATRIMÔNIO

Palavra de origem latina, “patrimoniunsignificava entre os antigos romanos “tudo o que pertencia ao pai, ‘pater’ ou ‘pater familia’, pai de família” (Funari e Pelegrini, 2006). Esse sentido de pertencimento mantem-se; o patrimônio continua sendo aquilo que pertence a alguém, individual ou coletivamente; entretanto, deve-se considerar, na análise, o pertencimento ao grupo, à coletividade, à nação ou à humanidade, na construção identitária do país ou na configuração estrutural dos mais diversos espaços (Costa, 2009). Contudo, nem sempre as materialidades antigas, símbolos de organização socioespacial pretérita que subsistem ao tempo, foram concebidas como patrimônio, patrimônio histórico ou, para usar o conceito mais recente, patrimônio cultural.

Daí a busca, neste artigo, de forma objetiva, da origem da noção de patrimônio. Veja-se, primeiramente, a idéia de monumento histórico. Sant’anna (2003) considera que o monumento histórico vincula-se a um saber e a uma sensibilidade que se enraízam no presente com vistas no passado. No Renascimento, essa idéia reportava-se aos edifícios da Antiguidade Clássica, vistos como exemplos de modelo de arte que deveria naquele momento ser documentado, mais para se conhecer e admirar, menos para se preservar. Assim, a noção de monumento estava ligada à contemplação da arte e da arquitetura sem a devida preocupação quanto à preservação.

Le Goff (2003) dá indicações de que a memória coletiva se aplica diretamente ao monumento como material; julga como principal característica do monumento o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas− um legado à memória coletiva.

“A palavra latina monumentum remete à raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (menimi). O verbo monere significa “fazer recordar”, de onde “avisar”, “iluminar”, “instruir”. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo a suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação (...). Mas, desde a Antiguidade romana, o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu, pórtico etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte. O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva).” (Le Goff, 2003: 526).

A seleção dos monumentos que, no Renascimentoii, recaía sobre os objetos da Antiguidade Clássica, valorizando sistemas construtivos e estilos arquitetônicos greco-romanos admiráveis, se estende, após a Revolução Francesa, a edifícios do passado Medieval, quando se passam a valorizar obras de arte que testemunhavam o saber humano e o processo histórico, obras que deveriam ser, então, preservadas. Nesse sentido, Sant’anna (2003) considera que, na França pós-revolucionária, os monumentos históricos estavam mais ligados ao campo da representação, sendo preservados com fins políticos para se unirem grupos social e culturalmente heterogêneos, forjando uma identidade com vista a um projeto de nação; “a expressão ‘monumento histórico’ é assinalada em 1790 para designar tudo o que podia ilustrar a história nacional, arquitetural, estátuas e vitrais (...) e, de fato, algumas operações confirmam que o sentimento patrimonial aparece no fim do antigo regime.” (Mohen, 1999: 279-280).

Essa política patrimonial estende-se, no início do século XX, ao Brasil, quando o governo do presidente Getúlio Vargas cria, na década de 1930, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), no intuito de fortalecer, naquele momento, o ideal de Estado-nação e de um país que buscava, a todo o custo, inserir-se no espectro mais amplo da modernidade. O barroco da antiga zona da mineração portuguesa no Brasil constitui-se no símbolo primeiro da cultura nacional, caso de Ouro Preto (fig. 1), Diamantina (fig. 2) e Congonhas do Campo (fig. 3), para citar as cidades desta antiga zona da mineração consagradas como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.

 

 

 

 

 

 

Na França, berço do conceito patrimônio, sua apreensão e significado evoluíram pouco a pouco, do final do século XIX aos dias de hoje, passando da ideia de monumento histórico (isolado), para a preocupação com o tecido urbano, com o centro histórico das cidades, surgindo assim, de acordo com Scifoni (2003), o conceito de patrimônio ambiental urbano. Isso nos indica que, apesar do termo monumento ainda ser empregado por muitos estudiosos, não se pode considerá-lo sinônimo de patrimônio cultural. Para Choay (2006: 12), os monumentos históricos já não representam senão parte de uma herança que não pára de aumentar, com a inclusão de novos tipos de bens e com a ampliação do quadro cronológico e as áreas geográficas no interior das quais esses bens se inscrevem. A denominação monumento, atualmente, é pouco utilizada, exceção feita aos bens já classificados no passado ou, para usar o termo conhecido da legislação brasileira, tombados. Essa denominação pode, também, induzir a pensarmos em escala de grandiosidade: seriam sempre artefatos gigantescos diante dos quais sentiríamos, ao contemplá-los, uma sensação de atordoamento, de pequenez ameaçada de esmagamento; ocorre ambas as coisas, ou seja, ao lado de conjuntos imponentes e monumentais, há peças pequenas, de proporções modestas (Camargo, 2002: 27).

Mas, é sob a égide do ideário iluminista, durante a consolidação das grandes nações européias, que se fortifica a noção de patrimônio, quando a concepção de nação ainda se encontrava atrelada à idéia de posse de um território e também de uma cultura (e, conseqüentemente, dos seus bens representativos), como aponta Nigro (2001). Em plena Revolução Francesa, em meio às violências e lutas civis, cria-va-se uma comissão encarregada da preservação dos monumentos nacionaisiii, com o objetivo de proteger os bens que representavam a incipiente nação francesa e sua cultura (Funari e Pelegrini, 2006). Esses autores apontam que a legislação protetora do patrimônio nacional francês tardaria ainda algumas décadas, pois a primeira lei data do fim do século XIX, tendo sido completada por uma legislação mais ampla no início do século XX. As disposições legais, na França, limitavam os direitos de propriedade privada, em benefício do patrimônio nacional, trajetória seguida por outros países, como o Brasil, através do tombamento.

O patrimônio, naquele momento, passa a ser entendido como um bem material concreto: edifícios, castelos, igrejas, objetos de alto valor material e simbólico para a nação (Funari e Pelegrini, 2006). Isso indica que os valores passariam a ser compartilhados por todos, seriam comuns e se consubstanciariam em coisas concretas. Os bens determinados como patrimônio passam a ser os que simbolizam excepcionalidades, raridades e história viva, representantes da trajetória da nação em construção. São criadas, além das novas legislações que envolvem o patrimônio em âmbito francês, serviços de proteção ou instituições patrimoniais, formando uma administração patrimonial, no decorrer do século XIX, na França.

Mohen (1999), ao analisar L’aparition de la notion de patrimoine, faz uma crítica severa ao fato de os monumentos a serem preservados se resumirem a edifícios, estátuas, vitrais e vários outros objetos excepcionais que ilustravam e precisavam a história nacional, num contexto delimitado, na França revolucionária. Para o autor, desde aquele momento, deveria ter se pensado o sentido patrimonial num contexto mais amplo, de forma a reagrupar os fatos de civilizações e não somente os da história nacional. Contudo, a formulação administrativa da noção de patrimônio progride lentamente e só se tem uma concepção de patrimônio representativo da humanidade, em meados do século XX, como será analisado posteriormente.

No entanto, é sobre o bem isolado, local, representante da construção de uma nacionalidade, que se canalizam os primeiros esforços em favor da preservação do patrimônio – hoje em dia tratado como patrimônio cultural. Estabelecendo uma noção mais ampla do patrimônio histórico, as reavaliações dos conceitos e práticas preservacionistas colocaram em voga o uso do conceito de patrimônio cultural, dada a abrangência do que passa a ser considerado como cultural, nos dias de hoje.

Em suma, a noção de patrimônio, como é entendida hoje, evoluiu lenta e gradualmente. Parte da ideia de monumento enquanto objeto isolado a ser contemplado e preservado, até a concepção mais recente, que cobre de maneira complexa diversos bens, todos os tesouros do passado, materiais e imateriais. Fica claro, dessa maneira, que a expressão patrimônio cultural, enquanto conjunto do que é transmitido consciente e inconscientemente pelos homens, depois de seu aparecimento sobre a Terra, tem sua origem no Século das Luzes, adquirindo força jurídica durante o século XIX, enquanto patrimônios nacionais criados paralelamente à construção das nacionalidades de vários países europeus, “légitiment l’identité de ces pays et en symbolisent la richesse, l’originalité et la beuté.” (Mohen, 1999: 38).

Considera-se, assim, que os bens culturais da humanidade são os representantes máximos da saga e da sede de conquista dos Homens sobre a Terra, do próprio processo de valorização do espaço; representam a busca, nos mais díspares rincões dos continentes, da dominação de classes e do enriquecimento pela exploração de territórios conquistados, transformados, dominados e revalorados.

 

III. A ABORDAGEM TERRITORIAL URBANA NAS CARTAS PATRIMONIAIS

Os processos de monumentalização e patrimonialização ocorrem através da tomada de elementos da paisagem. Tais elementos são fetichizados, sacralizados, dotados de valores próprios como se fossem autônomos, imutáveis; independentes, também, do próprio contexto ambiental em que se inserem – e o território, aqui, é entendido na dimensão politicocultural que o delineia.

De acordo com Meneses (1996: 50), “o monumento é sempre algo que seu entorno não é”. Dessa forma, ao se destacar, o monumento assume, isoladamente, significados dispersos no território do qual faz parte, significados estes tratados distintamente nas principais cartas patrimoniais internacionais, ao longo do século XX. É nesse sentido que se entende como problemática a Carta de Atenas, no tocante à sua proposta de preservação do bem isolado, questão que se altera nas cartas subsequentes, como será analisado.

1. A Carta de Atenas(1931)

Segundo Nigro (2001), a Carta de Atenas, de 1931, seguindo preceitos urbanísticos modernos, constitui o primeiro documento significativo que destaca a necessidade de salvar monumentos de sua destruição. Contudo, elaborada no entre guerras, período de grande preocupação com os conflitos bélicos e com o rápido crescimento urbano, a Carta de Atenas apresenta um conceito de patrimônio extremamente restritivo e seletivo, ao tratar o monumento isolado em prejuízo ao conjunto urbano. Coforme Funari e Pelegrini (2006: 21-22):

“A ênfase no patrimônio nacional atinge seu ápice no período que vai de 1914 a 1945, quando duas guerras mundiais eclodem sob o impulso dos nacionalismos. Alguns exemplos (...) mostram como mesmo os vestígios mais distantes, no tempo e no espaço, podiam ser lidos como parte da construção da nacionalidade. (...) os italianos usavam os vestígios dos romanos para construírem uma identidade calcada nesse patrimônio, restaurado, glorificado, exaltado como exemplo do domínio do mundo pelos romanos e seus herdeiros (...) na Alemanha nazista (...) usavam-se vestígios dos germanos, considerados antepassados dos alemães, encontrados em territórios de outros países, como a Polônia, para justificar reivindicações territoriais e invasões militares.”

Fruto do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM)iv, o Congresso de Atenas – que dá origem à Carta – teve como tema a cidade funcional com a ocupação racional do solo urbano. Nos estudos de Funari e Pelegrini (2006), Silva (2003) e Telles (2000), fica claro que o referido congresso discutiu o estabelecimento de cidades que funcionassem para o conjunto de suas populações, distribuindo entre todos as possibilidades de bem estar decorrentes de avanços técnicos. Essa cidade funcional deveria atender a quatro necessidades do ser humano− habitação, lazer, trabalho e circulação − o que representa o reconhecimento da urgência de adoção de medidas socioterritoriais de planejamento significativas para a época, na busca da cidadania.

Contudo, a Carta de Atenas põe em voga diretrizes (discutíveis) para a preservação de patrimônio e no próprio trato com o território das cidades. Nega-se, na Carta, o valor da manutenção dos centros históricos, dos conjuntos urbanos. Esse documento propunha a preservação de edifícios isolados, construções significativas, memória do passado, ao passo que quarteirões e edificações diferentes dos objetivados seriam devastados e suas áreas transformar-se-iam em campos verdes. Segundo Nigro (2001), o caráter monumentalista perdura como hegemônico até a disseminação das renovações urbanas, no pós-guerra, quando surge e se difunde a noção de preservação dos centros históricos das cidades. Esse processo guarda a valorização de lugares representativos de formações sociais nacionais.

Ao desconsiderar o centro histórico como um todo, representatividade de um sistema de objetos pretéritos estabelecidos no espaço enquanto totalidade dinâmica, e valorizar objetos isolados, o edifício consagrado, fica claro que essa Carta tinha um caráter um tanto restritivo em termos de preservação e valorização da sociedade e da própria formação territorial. Lamas (2000), ao tratar da Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, estabelece um longo discurso sobre a Carta de Atenas, concluindo que a conservação integral de sítios históricos não é aflorada nem de leve no documento, restringindo-se à salvaguarda de edifícios isolados, ainda sob reserva de serem expressão de uma cultura anterior.

A Carta de Atenas evidencia, na década de 1930, um período amplo da construção do que hoje nos é apresentado como patrimônio cultural, que se inicia com a formulação das primeiras diretrizes legislativas de preservação de monumentos, na França dos séculos XVIII e XIX, logo disseminadas para outros países, sobretudo da Europa e das Américas.

Considerando que todas as dimensões do espaço citadino apresentam marcos da trajetória de uma sociedade que produz espacialidades notórias, significativas e representantes do longo processo de sua formação política, econômica e cultural, por que privilegiar a preservação de monumentos específicos isoladamente (por mais que tenham um valor simbólico irreplicável) em detrimento do conjunto? Ao longo de séculos, tem-se ampliado a noção de monumento histórico para patrimônio histórico, por fim, patrimônio cultural (que envolve uma gama de objetos, ritos e significados, nos dias de hoje). Passa-se de um reducionismo objetivo a uma abrangência focalizada; identifica-se, pouco a pouco, no pós-guerra, a valorização da noção de conjunto e território urbano mais amplo e a superação da noção de arquitetura como obra de arte independente e isolada, dada a disseminação das renovações urbanas que se processam no período. Integra-se o centro histórico na dinâmica da cidade. Considera-se que a partir do espaço urbano, em sua totalidade, podemos decifrar o mundo atual e sua complexidade. Para se apreenderem as dinâmicas urbanas contemporâneas, os significados do patrimônio face à urbanização avassaladora, tanto nas metrópoles quanto nas chamadas cidades históricas ou cidades antigas, faz-se mister considerá-las em sua globalidade dinâmica e mutante (esse é o esforço desta análise: compreender, no presente, as cidades-patrimônio em sua totalidade territorial).

Choay (2006) acredita que a demora (quatro séculos entre a invenção do monumento histórico e a cidade histórica) para se inserir parte do território urbano (o centro histórico) na perspectiva da conservação (derrocada da concepção monumentalista de preservação) deve-se, de um lado, à questão da escala, à sua complexidade, à longa duração de uma mentalidade que identificava a cidade a um nome, a uma comunidade, a uma genealogia, e a uma história de certo modo pessoal, mas que era indiferente ao seu espaço; de outro lado, à ausência, antes do início do século XIX, de cadastros e documentos cartográficos confiáveis, à dificuldade em descobrir arquivos relativos aos modos de produção e às transformações do espaço urbano ao longo do tempo. Frente a essas dificuldades apresentadas por Choay (2006) que contribuíram, provavelmente, para o retardo na preservação do conjunto urbano histórico num todo, cabe lembrar que o progresso técnico modela nosso mundo, rearticula relações e reproduz o espaço geográfico enquanto totalidade dinâmica. Devido a essa complexidade que transforma e dá novos sentidos ao território que conforma as cidades e, por assim dizer, que consagra o patrimônio, deve-se considerar a análise conjunta dos processos históricos, das estruturas estabelecidas, do movimento das formas e dos conteúdos incorporados pelas materialidades ao longo do tempo. Nesse movimento, a interpretação das novas funções dos objetos geográficos – e do patrimônio – oferece uma dimensão das transformações socioespaciais através do trabalho humano, nas cidades em sua totalidade.

Pelo forte caráter nacionalista, sagrado, prestigioso e elitista relativo à posse do patrimônio, coroado na Carta de Atenas, as noções de monumento histórico e patrimônio histórico começaram a sofrer duras críticas. A partir da década de 1960, segundo Nigro (2001), surgiram vários questionamentos e reavaliações no campo preservacionista. Nesse período, a busca de conceitos e de práticas de preservação se intensificam globalmente, favorecendo a patrimonialização e, assim, a difusão dos lugares do patrimônio. É neste contexto que, em trabalho anterior, foi proposto o conceito de patrimonialização global,

“O primeiro e salutar ponto que destacamos diz respeito ao conceito que propomos de patrimonialização global, que definimos como sendo o brusco movimento universal de espetacularização e banalização pela cenarização progressiva dos lugares promovido pela dialética Estado-mercado sobre a base das técnicas, da ciência e da informação; em síntese, é um processo de ressignificação dos lugares em escala planetária. Há uma verdadeira corrida mundial das governanças urbanas e dos Estados para a inserção dos bens culturais de médias e pequenas cidades antigas espalhadas pelo planeta, na rede internacional do turismo.” (Costa, 2011: 31).

Esse processo desenvolve-se a partir de uma série de elementos que foram trazidos para junto dos debates e práticas preservacionistas do século XX e galgam força no século XXI, de forma a contestar a égide tradicional do patrimônio, ou seja, o caráter reducionista e elitista da preservação, também marcante no Brasil, e que diz respeito ao próprio trato com o tecido urbano. A principal razão do surgimento dessa série de contestações advém do grande distanCIAMento entre as instituições de preservação e os sujeitos sociais para as quais, teoricamente, suas atividades deveriam estar dirigidas: os habitantes. “O primeiro aspecto corresponde à não participação direta e efetiva da população nas decisões promulgadas pelas instituições públicas preservacionistas (...). Já o segundo aspecto remete ao questionamento sobre quais bens culturais estão sendo selecionados pelas instituições públicas preservacionistas para ‘representar’ o patrimônio cultural da sociedade” (Nigro, 2001: 19).

2. A Carta de Veneza (1964)

A Carta de Veneza (1964) aparece como um divisor de águas entre a noção monumentalista e a de conjunto do patrimônio, focando os territórios do patrimônio já em uma perspectiva de gestão. Esse documento enfatiza a possibilidade do patrimônio adquirir função útil à sociedade. A Carta inova ao esclarecer que os conjuntos urbanos históricos podem ser adaptados às necessidades modernas, onde a revitalização do monumento propicia seu uso a despeito de sua função original, ou seja, permite sua refuncionalização (UNESCO, 1965). A década de 1960, com a Carta de Veneza, representa o marco simbólico inicial do processo de mercantilização do patrimônio (abrangendo a preservação, conservação e mercantilização dos conjuntos), em nível mundial.

Elaborada na década de 1960, a Carta de Veneza, conseqüência do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, representa um documento chave da atualidade em termos de ampliação da preservação de patrimônio no território urbano. Em seu primeiro artigo, a Carta define o termo monumento e diz que ele se estende não somente às grandes criações, mas, igualmente, às obras modestas que adquirem, com o tempo, um significado cultural (nesse ponto, o documento apresenta uma concepção mais ampla do que seria monumento).

A Carta compreende a criação arquitetônica isolada, mas também o sítio, urbano ou rural, que representa um testemunho de uma civilização particular, de uma trajetória significativa, ou de um acontecimento histórico (aqui, fica evidente a noção de conjunto e ampliação da preservação para uma maior porção do território urbano). O patrimônio adquire, nesta Carta, dimensões temporal e espacial ao afirmar que o monumento é inseparável da história e do meio em que se situa. Quanto à necessidade de restauração, ou apenas de conservação, o documento coloca que a restauração deve ocorrer em caráter excepcional, e objetiva revelar o valor histórico e estético do bem; baseia-se no respeito à matéria antiga e a documento autêntico; a restauração deve parar quando começam as problemáticas, de acordo com o documento. Termina afirmando que as restaurações devem ser precedidas e acompanhadas por estudos históricos e arqueológicos do edifício. Quanto à preservação dos centros históricos, a Carta de Veneza reitera que esses devem ser objeto de cuidados especiais para salvaguardar sua integridade e assegurar seu saneamento, manutenção e valorização; essa vem em contraponto à Carta de atenas, que desconsiderava a preservação dos centros históricos das cidades, valorizando monumentos isolados, numa visão reducionista do patrimônio e do território urbano.

A Carta de Veneza, ao asseverar, em seu Art. 1º, que “A conservação e a restauração dos monumentos visam a salvaguardar tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico”, fica patente que o testemunho histórico deve ser apreendido no jogo de forças e de relações que produziram esse mesmo bem, de forma que, para além do objeto patrimonializado, faz-se primordial a compreensão da formação do território que o guarda.

No seu Art. 6º, afirma que “A conservação de um monumento implica a preservação de uma ambiência em sua escala. Enquanto sua ambiência subsistir, será conservada, e toda construção nova, toda destruição e toda modificação que possam alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas”. Fica assim clara a preocupação com a ambiência, entendida como totalização do bem patrimonial, ou seja, para além da obra de arte e no contexto da dinâmica histórica que a produziu e a reproduz. Essa análise ultrapassa a crítica à banalização do patrimônio cultural turístico. Deve-se apontar para a lógica moderna das novas ações que remetem a formas de manutenção da vida cotidiana nas cidades antigas que “sobrevivem” no território e seu ordenamento presente, junto à revaloração da paisagem urbana histórica.

Em resumo, se a Carta de Atenase a Carta de Veneza foram precursoras dos princípios internacionais que presidiram a conservação, a restauração e a preservação dos bens culturais – e, por assim dizer, a monumentalização e a patrimonialização –, foi na Convenção do Patrimônio Mundial que tais princípios ganharam visibilidade mais notória e foram aplicados, a partir daí, ao tratado patrimônio cultural da humanidade, agora, consagrado, no cerne de uma patrimonialização global.

3. Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972)

É em 1972 que a UNESCO, através da “idea de salvaguardar el patrimonio humano, la riqueza monumental de la humanidad” (Morel, 1996: 80), formaliza a defesa do Patrimônio Mundial. A mundialização dos valores e das referências ocidentais das práticas patrimoniais difundidas pelos aparatos globalizantes acarreta, desta maneira, na Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, adotada em 1972, através da 17ª Conferência Geral da UNESCOv, consolidando a noção de Patrimônio Mundial (Costa, 2009).·

“As instituições previstas na Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, compõem a estrutura de uma autoridade internacional de proteção,vi cuja função principal é conferir plena execução à própria Convenção, promovendo a inscrição de bens culturais na Lista do Patrimônio Mundial ou na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo e prestando assistência internacional.” (Silva, 2003: 77).

De acordo com Morel (1996: 80), os objetivos do Comitê do Patrimônio Mundial, estabelecido pela Convenção são os seguintes:

1) Identificar e propor os lugares de interesse natural e cultural que devem ser protegidos pela Convenção do Patrimônio Mundial, inscrevendo-os na Lista do Patrimônio Mundial;

2) Difundir, por todo o mundo, a existência deste patrimônio e procurar despertar, na opinião pública, a consciência de sua responsabilidade, respeito à salvaguarda de cada um dos bens que constituem esta Lista;

3) Proporcionar ajuda técnica ao fundo do patrimônio mundial para preservar, de todos os modos possíveis, aqueles bens, quando os recursos dos países integrantes são insuficientes.

Inaugurando um novo momento da política patrimonial em nível internacional, a Convenção amplia, sobremaneira, a noção de patrimônio cultural, considerando (UNESCO, 1972: 02):

Os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pinturas monumentais, elementos ou estruturas de características arqueológicas, inscrições, grutas e grupos de elementos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência.

Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em razão de sua arquitetura, de sua unidade, ou de sua integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência.

Os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas de sítios arqueológicos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Assim, conforme os documentos consultados, afere-se que as novas orientações, produzidas em âmbito internacional, são marcantes para reconsiderar a prática de patrimônio que vinha sendo implementada, inclusive no Brasil, no que diz respeito ao trato com o patrimônio, o território e o tecido urbano. Isso indica que os debates críticos sobre as políticas de patrimônio restritivas e elitistas impostas há décadas, sobretudo nos países europeus e americanos, contribuíram para a ampliação da noção de patrimônio e da sua preservação, ao ser considerado o valor do conjunto como um todo, o que simboliza a valorização do espaço urbano no qual se estabelecem os objetos a serem reconhecidos por seu valor histórico, artístico e, sobretudo, cultural.

Nas décadas que sucedem às duas Grandes Guerras Mundiais, a transformação da noção de patrimônio se expande pelo mundo todo. Conforme Choay (2006), no Japão, a valorização de seu patrimônio se dá a partir da década de 1870, no contexto da abertura Meiji; os Estados Unidos foram os primeiros a proteger seu patrimônio natural, dando pouca importância em conservar o patrimônio edificado, cuja proteção é recente e começou por levar em consideração as residências individuais das grandes personalidades nacionais; a China, por sua vez, que ignorava esses valores, começou a abrir e a explorar sistematicamente o filão de seus bens culturais a partir de 1970. A autora deixa claro que na primeira Conferência Internacional para Conservação dos Monumentos Históricos, que aconteceu em Atenas, em 1931, só participaram europeus. A segunda, em Veneza, em 1964, contou com a participação de três países não europeus: a Tunísia, o México e o Peru. Quinze anos depois, oitenta países dos cinco continentes assinaram a Convenção do Patrimônio Mundial.

Paradoxalmente, é nesse momento de ampliação da noção de patrimônio e da tentativa de sua democratização (lenta e gradual, a partir da década de 1960, com a Carta de Veneza e a Convenção do Patrimônio Mundial), que ganha relevo a apropriação estratégica dos núcleos urbanos tombados brasileiros, acompanhando a lógica proposta pelas cartas patrimoniais supracitadas. A partir daquele momento, algumas cidades históricas brasileiras passam a viver a nova lógica de urbanização ligada à indústria cultural que, segundo Scarlato (2003), transforma o antigo em velho e o novo em modelo das virtudes do progresso.

Há que fazer um breve parêntese para esclarecer que, apesar de este artigo estar focado no patrimônio edificado, o domínio patrimonial não se limita mais a edifícios isolados ou apenas à “pedra e cal”, como se convencionou chamar o patrimônio arquitetônico; os órgãos preservacionistas contam com uma legislação que reconhece aglomerados de edificações ou a malha urbana como um todo, dependendo de cada caso, além dos diversos tipos de manifestações populares, o chamado patrimônio imaterial ou patrimônio intangível. Existe uma dicotomia entre patrimônio material e imaterial que, ao nosso entender, minimiza o simbolismo da arte, da história e da cultura conjugadas; devemos tomá-los (bens materiais e imateriais, dialeticamente) como complementares; dão conjunção ao patrimônio cultural.

Cabe mencionar, ainda, que o ocidente só começou, verdadeiramente, a considerar a questão do patrimônio imaterial com a Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO de 1972, onde países do chamado Terceiro Mundo reivindicaram a elaboração de estudos para a apropriação, em nível mundial, de um instrumento de proteção às manifestações populares de valor cultural. Assim, em 1989, uma resposta é dada a essa reivindicação, por meio da Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, aprovada em Conferência Geral da UNESCO; no Brasil, o registro do patrimônio imaterial, se dá a partir do ano 2000, por meio do Decreto 3.551, de 4 de Agosto do mesmo ano (Sant’anna, 2003).

Fica claro que, no ocidente, o patrimônio esteve por longo tempo ligado aos objetos construídos; a preservação foi vinculada à prática constituída de operações voltadas para seleção, proteção, guarda e conservação do patrimônio edificado. Só na segunda metade do século XX as manifestações populares começaram, gradualmente, a serem vistas como bens patrimoniais em si, sem que a matéria fosse necessária para lhes darem corpo. É digno de nota, de acordo com Sant’anna (2003), que essa prática de preservação não tem origem primária na Europa, mas em países Asiáticos e no então chamado Terceiro Mundo, cujo patrimônio, em grande medida, é constituído das criações populares, menos importantes na materialidade, sendo vinculadas diretamente ao conhecimento popular, a práticas populares e processos culturais. No Oriente, mais importante que conservar os objetos do passado, testemunhos de processos históricos e culturais pretéritos, é preservar e transmitir o saber que produzem, buscando e permitindo a permanência desse savoir-faire no presente.

Contudo, ao tratar do patrimônio cultural, uma noção atual, mais ampla de patrimônio, que abrange a superposição de conceitos e práticas culturais envolvidas na trajetória de sua “construção” ao longo do tempo – sobretudo o edificado, a análise não se desvencilha, por um lado, do mistério imaterial que o ronda, do invisível que o permeia, de sua força memorial, seu conteúdo significativo escondido em suas formas e, por outro lado, a análise também não se desvencilha das transformações do seu valor simbólico, dos novos sentidos a ele atribuído, através de sua apropriação estratégica pela indústria cultural. Deve-se olhar para a arquitetura (formas), para a pedra e cal, resgatando, através dos registros existentes, as relações e práticas sociais de época (processo histórico) corporificados no território, para assim termos uma verdadeira noção do papel atual do patrimônio cultural (conteúdo) na produção socioespacial contemporânea.

4. A Declaração de Amsterdã (1975)

Outra importante carta patrimonial do século XX, que trata da temática, é a Declaração de Amsterdã, elaborada em 1975, após o Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu, organizado pelo Conselho da Europa. Segundo Funari e Pelegrini (2006), essa Declaração introduziu orientações para viabilizar a implantação de políticas de conservação integrada, inaugurando uma abordagem pautada pela noção de integração do patrimônio à vida social e conferindo ao poder público municipal a responsabilidade de elaborar programas de conservação e aplicar os recursos financeiros angariados para esses fins. O documento recomendava, ainda, o envolvimento da população nos processos de preservação, “de modo a garantir maior observância dos valores ligados à identidade microlocal e a evitar a evasão dos habitantes em virtude de especulação”, evidenciando a importância do processo de democratização do patrimônio (Funari e Pelegrini, 2006: 33).

Na Declaração de Amsterdã considera-se que “patrimônio compreende não somente as construções isoladas de um valor excepcional e seu entorno, mas também os conjuntos, bairros de cidades e aldeias que apresentem um interesse histórico e cultural” (Cury, 2004: 200). Ela, instiga a reflexão sobre a busca da totalidade urbana, o entendimento do patrimônio cultural para além do objeto em si ou do objeto monumental atrativo. E continua afirmando que “a conservação do patrimônio arquitetônico deve ser considerada não apenas como um problema marginal, mas como objetivo maior do planejamento das áreas urbanas e do planejamento físico-territorial”.

Apesar de enunciar esta preocupação da busca pelo patrimônio na totalidade urbana, pode-se considerar que a Declaração de Amsterdã representa um prelúdio às consequências advindas da apropriação desmedida dos núcleos urbanos tombados, ao esboçar uma das mais graves problemáticas oriundas da mercantilização desenfreada das cidades históricas: a expulsão do habitante do centro da cidade, com a valorização do espaço que acarreta em especulação econômica e imobiliária superiores ao nível de vida dos moradores do lugar, como ocorre, hoje, em Ouro Preto e Tiradentes, no estado de Minas Gerais, no Brasil. Assim, ao mesmo tempo que indica o caminho da preservação e da conservação em uma perspectiva holística, o documento anuncia a possibilidade da mercantilização do acervo para sua própria sobrevivência. Em certa medida, a Declaração resgata a Carta de Veneza e ratifica as proposições da Convenção do Patrimônio Mundial. Sobre a globalidade da preservação o documento indica que:

“Nossa sociedade poderá, brevemente, ser privada do patrimônio arquitetônico e dos sítios que formam seu quadro tradicional de vida, caso uma nova política de proteção e conservação integradas desse patrimônio não seja posta em ação imediatamente. O que hoje necessita de proteção são as cidades históricas, os bairros urbanos antigos e aldeias tradicionais, aí incluídos os parques e jardins históricos. A proteção desses conjuntos arquitetônicos só pode ser concebida dentro de uma perspectiva global, tendo em conta todos os edifícios com valor cultural, dos mais importantes aos mais modestos, sem esquecer os da época moderna, assim como o ambiente em que se integram. Essa proteção global completará a proteção pontual dos monumentos e sítios isolados.” (Cury, 2004: 201).

Inevitavelmente, aqueles que se debruçam no estudo do patrimônio cultural arquitetônico ou edificado, sobretudo, devem buscar referência na Declaração de Amsterdã, ao reconhecer a integralidade da correlação entre planejamento físico-territorial e preservação e conservação patrimoniais, não como elemento secundário, mas como correlação indispensável. O inventário das construções antigas e mais recentes no bojo do conjunto urbano, a delimitação de zonas de proteção (ou áreas de entorno de preservação), a busca da totalidade urbana enquanto patrimônio cultural ou a cidade como monumento são elementos para o que se entende, neste trabalho, como preservação integrada e correlação entre patrimônio e território.vii

 

IV. O PATRIMÔNIO E SUA RELAÇÃO COM O TERRITÓRIO

Vimos que o século XX é marcado pelo questionamento e por mudanças instituídas internacionalmente no campo do patrimônio cultural, onde aparecem como significativas demarcações os Congressos que dão origem à Carta de Atenas (1931), à Carta de Veneza (1964), à Convenção do Patrimônio Mundial (1972) e à Declaração de Amsterdã (1975), marcos referenciais da ampliação da noção de patrimônio em nível mundial, ao longo do século XX. Fato é que esses não são os únicos “eventos” que envolvem a preservação de patrimônio em nível internacional, mas são quatro expoentes da evolução da noção de patrimônio que traçam limites especiais do que deveria ou não ser preservado nos territórios urbanos ordenados por longo processo histórico. É de grande significado, em nossa análise, o reconhecimento do processo de consagração do patrimônio mundial, promovido pela UNESCO, o que demandou o estabelecimento de inúmeras diretrizes e encontros internacionais no pós-guerra.

De monumento, a patrimônio histórico, centro histórico, patrimônio cultural, que por sua vez é reconhecido como material e imaterial ou mesmo patrimônio mundial; Choay (2006) oferece subsídios ao entendimento dessa ampliação progressiva do campo patrimonial, ao considerar três formas de ampliação do patrimônio (que amarra a discussão deste item): a tipológica, a cronológica e a geográfica. Ampliação que rebate diretamente sobre a configuração territorial urbana.

Identifica-se, ao longo das últimas décadas, uma tendência crescente de se instituir bens cada vez mais diversificados como patrimônio, conformando sua ampliação tipológica. A preservação não se restringe mais a edifícios religiosos, castelos e vitrais, mas se estende a obras da chamada arquitetura menor ou popular, às casas térreas, sobrados, bens ligados a práticas culturais, religiosas, de lazer, à etnologia rural e urbana.

As políticas preservacionistas não se limitam mais a objetos da Antiguidade Clássica ou da Idade Média, enquanto períodos significativos da história da humanidade, mas abarcam todos os períodos relevantes da formação territorial das nações, estabelecendo sua ampliação cronológica. Pode ser dada como exemplo a capital federal brasileira, Brasília, datada da década de 1960, a primeira cidade moderna do planeta inscrita na Lista do Patrimônio Mundial, onde o denominado Plano Piloto, idealizado pelo arquiteto Lúcio Costa, segue os princípios básicos da Carta de Atenas de 1931. Pode ser considerado outro bom exemplo de ampliação cronológica, a cidade histórica mineira São João Del Reiviii(fig. 4), que apresenta, em seu núcleo urbano tombado, marcos de períodos históricos distintos da formação territorial brasileira, do Brasil Colônia à República Velha (mineração, Comércio de Abastecimento, expansão ferroviária e instalação de indústrias têxteis, no Brasil), de forma que essa cidade, diferentemente de outras cidades do ouro do Brasil Setecentista, apresenta um núcleo urbano tombado extremamente complexo, com arquitetura representada pelo auge do barroco em Minas (meados do século XVIII), seguida pelo rococó (última fase do barroco, no início do século XIX), e atingindo o estilo eclético e protomoderno (fim do século XIX e decorrer do XX). Distintos estilos preservados, datados de períodos históricos diversos, indo de encontro às diretrizes inicialmente impostas pelos órgãos preservacionistas brasileiros, que tinham apenas na arquitetura barroca do período colonial o símbolo da construção do “Brasil-nação” e da própria formação do território brasileiro (Costa, 2009).

 

 

“Trazido para o Brasil pelos jesuítas, instalou-se em Minas com a urbanização provocada pela mineração. Em território mineiro assumiu características peculiares, retratando no urbano o poder temporal, através das edificações civis-administrativas, e do poder religioso, com as igrejas representadas pelas ordens religiosas. Caracteriza-se por um estilo de formas exuberantes e ‘pela pompa litúrgico-ornamental’ (...). O objetivo de permear de espírito cristão a razão de Estado faz que a teoria da legitimidade da dissimulação seja sustentada por toda uma literatura política e religiosa, assumindo as características de elaborar um complexo de normas que deviam garantir a estabilidade e a defesa da ordem (...). Tortuosidade, ambiguidade, complicação do sentir e da expressão, como características do barroco, são instrumentos de ação que fazem do barroco uma verdadeira, uma suprema forma de arte.” (Ávila, 1980:33)

Ao longo do século XX, identifica-se também a ampliação geográfica do patrimônio, onde as políticas preservacionistas apresentaram uma tendência crescente de discussão sobre a ambiência do bem tombado, em que se parte da preservação do objeto isolado (monumento), para a preservação do conjunto (bairros, vilarejos, cidades, sítios naturais e arqueológicos).

A ampliação geográfica do patrimônio não pode ser entendida apenas no tocante ao que deveria ser preservado localmente, se um objeto isolado ou o con- junto urbano como um todo. Torna-se pertinente dar outra dimensão para o entendimento dessa ampliação espacialmente consagrada.

Como já se afirmou, a gênese inicial da noção de patrimônio esteve ligada à seleção de bens a serem preservados, cada vez mais, para um conjunto maior de pessoas, para se desenvolver o sentido de nacionalidade. Era preciso salvar os vestígios do passado ameaçado de desaparecimento; o patrimônio deveria ser protegido para todos os membros da nação, onde a população poderia se reconhecer sob o formato do novo Estado resgatado nos objetos de culto; ou seja, consolidam-se nações, identidades nacionais, por meio do espaço conquistado ou produzido, da formação dos territórios nacionais, onde os processos evolutivos das conquistas são simbolizados pelas “rugosidades” (Santos, 2002) que passam a representar essa nacionalidade, caso do Brasil, na década de 1930, na valorização das cidades históricas da antiga zona colonial da mineração do ouro e dos diamantes da Coroa Portuguesa, que vai consagrar Ouro Preto, Diamantina, São João Del Rei, Tiradentes, Sabará, Congonhas do Campo e outras cidades desta zona, como patrimônios simbólicos da nacionalidade brasileira. Isso demonstra que as ações de preservação, em nível global, sempre tiveram um caráter territorialmente seletivo e político.

“Deve-se considerar, preliminarmente, a escassez de análises que relacionam a consolidação do poder do Estado a suas variantes estéticas, elementos substanciais da sustentação da própria administração. Como estratégia, essas variantes estéticas são favorecedoras de uma ideologia espacial necessária não apenas para adjetivar, mas para dar sentido histórico e identitário a um Estado nacional. Ao considerar que distintas ideologias permearam a construção dos Estados nacionais, tanto os que passaram pelo processo de unificação, quanto os envolvidos em lutas de independência, respectivamente, a leste e a oeste do Atlântico, cabe um posicionamento sobre os mais notórios elementos caracterizadores do Brasil como Estado-nação (...). Para tanto, parte-se do pressuposto de que as cidades e a arte do Brasil colonial sintetizam a relação histórica entre território e poder na Colônia, bem como são elementos constitutivos da ideologia espacial que consolida o Brasil como Estado-nação, no decorrer dos séculos XIX e XX e no contexto de uma trajetória politicoeconômica controversa. O país nasce mais como espaço a ser conquistado, dominado e complexizado em nome de uma unidade, do que como síntese de relações processuais que formaram sua sociedade, a heterogeneidade do seu povo.” (Costa & Suzuki, 2012: 1).

Scifoni (2006) fundamenta-se em Meneses (1996) para considerar que os valores do patrimônio podem ser atribuídos a partir de quatro categorias: valores cognitivos (bens como suporte do conhecimento histórico); valores formais (propriedades físicas dos objetos – técnicas arquitetônicas); valores afetivos e pragmáticos (resultam da relação afetiva que os grupos têm com os objetos e o valor de uso que esses objetos tenham; independente de seu valor cognitivo ou forma, representam um sentido e um significado social para determinados grupos). O autor entende que os dois últimos valores, que representam o valor social dos bens culturais, são os mais difíceis de serem aceitos no âmbito do Estado, pois isto implica numa postura mais democrática de reconhecimento da diversidade dos grupos sociais e de suas manifestações. Dessa maneira, o reconhecimento de valores tem, assim, uma dimensão política e espacial. Não trata apenas de uma atividade especulativa e cognitiva, mas concreta, prática e política. Fica claro que o núcleo de qualquer preocupação relativa ao patrimônio cultural (identificação, proteção, valorização) é político por natureza (Meneses, 1992: 189), hoje em dia, uma preocupação demasiadamente, econômica.

Confronta-se essa ideia de bem coletivo nacional (de caráter particularista), que simboliza o processo de constituição da nação via símbolos de conquista e da “formação socioespacial” discutida por Milton Santos, com a ideia de bem coletivo mundial, de caráter universal. Abreu (2003) chama esse processo de vertente universalista do pensamento moderno ocidental, que, através do conceito de humanidade, confronta a idéia de bem coletivo nacional. Ou seja, além da construção de um patrimônio nacional, referência de cultura e identidade de um povo estabelecido no território, buscam-se marcos do que foi produzido pelos povos em diversos territórios espalhados pelo planeta, num longo processo histórico, e que passa a pertencer à humanidade como um todo. Forja-se, dessa maneira, a noção de Patrimônio Cultural da Humanidade. Humanidade representa um conceito aberto a todos os homens, povos e Estados, sem distinção de raça, sexo, religião ou ideologia; num sentido amplo, humanidade seria todo gênero humano que compreende a todos os homens (Silva, 2003). Essa noção de humanidade, na análise do autor, comporta, ainda, uma característica “atemporal”, ao contemplar as pessoas de hoje e do futuro, diríamos, também, que do passado. “Disso resulta um liame entre os seres humanos da atual e da futura geração: os recursos do patrimônio comum da humanidade podem ser utilizados para atender às necessidades do presente, sem comprometer sua fruição pelas gerações vindouras, sob pena de extinção de toda a espécie humana.” (Silva, 2003: 36).

Por fim, há duas dimensões geográficas na construção do patrimônio cultural em seu longo processo histórico de consagração. Uma particularista (nacionalista), que tem por base os bens representantes da produção do espaço como símbolos de identidade para a afirmação dos Estados-nações, que se fazem também por símbolos de conquistas e formação territorial de cada país. Outra universalista (mundialista), que tem na humanidade o viés para a integração das nações e o reconhecimento das diversidades culturais de todos os povos, onde a crença e o desejo de integração da humanidade dá sentido à consagração do Patrimônio Mundial, inicialmente e no plano teórico.

As cartas analisadas, bem como a teoria ou a discussão que as acompanha neste artigo, apontam para um processo longo de transformação do próprio caráter do que vem a ser patrimônio em um aspecto universal que rebate, de forma lenta e gradual no território das cidades antigas do mundo, até a década de 1960. A Carta de Veneza e a Convenção do Patrimônio Mundial são marcantes para a nova lógica que passa a vigorar nestes territórios urbanos, então inseridos no mercado mundial de cidades a partir da revaloração do patrimônio construído, hoje, capturado pelo mercado do turismo internacional e passando pelo que pode ser denominado como uma espécie de “banalização pela cenarização progressiva” do patrimônio cultural em todo o mundo (Costa, 2008). Essas cidades passam, de forma distinta em cada continente, em cada país, pela dialética de uma construção destrutiva capaz de metamorfosear os sentidos do patrimônio no imaginário da sociedade contemporânea, imersa na cultura do lazer.

Na ampliação cronológica, tipológica e geográfica do patrimônio – discutidas por Choay – aparece, em germe, a corrida pela ressignificação do território de cidades de todo o mundo, onde o patrimônio cultural simboliza a matéria e o espírito do processo que rege o que é apresentado por patrimonialização global. Arenda e o lucro tornam-se os catalisadores dessa ressignificação territorial fundada na releitura da histórica para a dinâmica da cultura do lazer e da mercantilização da cultura.

 

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se que a “construção” do patrimônio sempre teve um caráter identitário, espacial e político. Primeiro, para afirmação dos “Estados-nações” via enaltecimento da formação territorial, depois, no extremo de sua ampliação, na tentativa de se afirmar a diversidade cultural dos povos e a integração das nações, através do conceito de humanidade.

Isso faz com que o patrimônio seja procurado e encontrado em todo o mundo, adquirindo uma visibilidade e importância inigualável na história, englobando tudo o que é dotado de significado cultural irreplicável. Cultura que se transforma em mercadoria na sociedade contemporânea, fazendo com que o patrimônio, represente cada vez menos o ideal de “Estado-nação”, ou de diversidade cultural dos povos, perdendo seu referencial de memória viva, ao se tornar um produto em potencial do desenvolvimento turístico, que tem o poder de banalizar por uma cenarização progressiva, na falta do planejamento territorial urbano integrado. A mercantilização desenfreada dos bens culturais faz com que os mesmos percam sua função primeira, que é a de esclarecimento, ligada ao valor cognitivo e mesmo afetivo.

Subtende-se ou não se entende o sentido da memória, da tradição e da cultura que órgãos nacionais e internacionais lutam para preservar. Os bens culturais são destituídos de sua principal faceta, que é a de sua função social no fortalecimento do sentimento de pertencimento ao lugar e na edificação da cidadania. As próprias cartas patrimoniais referenciadas neste artigo são negligenciadas, pouco consultadas e divulgadas, especialmente, no Brasil.

O recurso à história do patrimônio cultural é o recurso à leitura da conformação histórica de territórios. O planejamento físico territorial integrado às políticas culturais ou de patrimônio, o chamado aos poderes locais e à participação cidadã, a busca de medidas legislativas inovadoras e integradas, o entendimento dos mecanismos de intervenção urbana (requalificação, renovação, reabilitação) são pontos chave para uma nova concepção de preservação e conservação dos bens culturais do mundo. Tais ações ou interpretações associadas a inventários participativos, neste momento da reprodutibilidade técnica, da arte, da ciência e da informação, pode ser um caminho na busca do entendimento da cidade histórica enquanto totalidade urbana inserida na totalidade-mundoix, uma vez que “a totalidade em movimento também inclui as ações tornadas possíveis em um lugar particular, a partir do qual acabam por influenciar outros lugares” (Santos, 2002: 160).

Envolvido pela lógica dialética de uma construção destrutiva, os bens culturais do mundo têm seus sentidos metamorfoseados em prol da indústria cultural por meio do turismo, que transforma e revalora o território urbano. Essa é a mais nova noção que assume o patrimônio através de um processo de mercantilização que redunda em contradições na produção socioespacial de algumas cidades patrimonializadas no Brasil. Essa lógica de mercado vem contradizendo, no país, as propostas estabelecidas pelas organizações nacionais e internacionais de preservação do patrimônio cultural, com ênfase nas prescrições que partem da Carta de Atenas e chegam à Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural e Declaração de Amsterdã.

Para Choay (2006), o patrimônio se enriquece, então, continuamente, como novos tesouros que não param de ser valorizados e explorados. A patrimonialização dos elementos constitutivos do território (entendimento do território urbano como patrimônio), regida por ações lucrativas, lança a fundo perdido as possibilidades de sobrevida na totalidade urbana, quando as ações do planejamento e da gestão de cidades voltam-se para as áreas eleitas pelo mercado da cultura, negligenciando a integralidade do tecido urbano em cidades e países que possuem um breve e controverso histórico de experiência no trato de áreas patrimonializadas, caso do Brasil.

Por fim, deve-se buscar diagnosticar ou prognosticar – em cada caso particular e no contexto da ampliação cronológica, tipológica e geográfica do patrimônio – os efeitos primários e secundários da patrimonialização, conforme os ideais mecanismos regidos pela integralidade das ações sobre o território. A leitura da evolução das indicações de documentos elaborados no passado sobre os destinos do patrimônio cultural servem de balizamento para futuras análises, ações e mecanismos da preservação.

 

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Recebido: Março 2011. Aceite: Janeiro 2012.

 

 

NOTAS

iDe acordo com o Decreto-Lei n° 25/1937, o tombamento é o instituto jurídico pelo qual se faz a proteção do patrimônio cultural brasileiro. Um bem é tombado quando é inscrito em um dos quatro livros do tombo do instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN): Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas-artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. A título de exemplificação, a cidade de Congonhas do Campo foi inscrita no Livro do Tombo das Belas-Artes (o Santuário do Bom Jesus do Matozinhos); Salvador, no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; e Brasília, no Livro do Tombo Histórico.

iiChoay (2006:31) esclarece que o nascimento do monumento se dá em Roma, por volta do ano 1420, quando um novo clima intelectual se desenvolve em torno das ruínas antigas, “que doravante falam da história e confirmam o passado fabuloso de Roma (...). Ver-se-á que o interesse intelectual e artístico atribuído por uma pequena elite do Quattrocento aos monumentos da Antiguidade era produto de uma longa maturação e tivera precedentes desde o último quartel do século XIV”.

iiiSegundo Choay (2006), quando se cria, na França, a primeira Comissão dos Monumentos Históricos, em 1837, as três grandes categorias dos bens eram constituídas pelos remanescentes da Antiguidade, os edifícios religiosos da Idade Média e alguns castelos. Há de se entender que foram as condições criadas pela Revolução Francesa que estabeleceram a necessidade da proteção legal dos bens materiais. Para Mayume (1999, apud Scifoni, 2003: 3) como conseqüência da revolução, os bens confiscados da igreja, da coroa e da aristocracia passaram ao domínio do Estado. A conservação desses bens passa a ser um problema nacional, criando a necessidade de uma colaboração de toda a sociedade, forjando a idéia de um valor de nacionalidade, patrimônio coletivo, de interesse de todos.

ivSegundo Silva (2003), esses congressos eram instituídos por Le Corbusier, expoente do Modernismo na arquitetura, e objetivavam reunir e sistematizar pesquisas de arquitetos internacionais.

v“As principais decisões são tomadas na Conferência-geral, constituída pelos representantes dos Estados-membros da Organização, que se reúne a cada dois anos (...). As convenções elaboradas sob o patrocínio da UNESCO são típicos tratados multilaterais.” (Silva, 2003: 55-56).

viEsta autoridade internacional representa-se por meio de um órgão executivo permanente, o Comitê do Patrimônio Mundial, integrado por um Comitê consultivo composto por representantes do ICCROM (Centro Internacional de Estudos para Conservação e Restauração dos Bens Culturais, organização ligada à restauração dos bens culturais, criada pela UNESCO, em 1951, durante sua 6ª Conferência-geral / ver: http://www.iccron.org e do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Lugares de Iinteresse Artístico e Histórico, organização não governamental fundada em 1965, fruto das diretrizes do Congresso de Veneza, de 1964; promove a teoria, a metodologia e a tecnologia aplicadas na conservação e proteção do patrimônio arquitetônico / ver: http://www.internationalicomos.org/e_statut.htm). Ainda há um fundo internacional, paralelamente às ações do Comitê, para recolher e distribuir os recursos necessários para financiar as ações protetoras. A análise do original da Convenção esclarece-nos em seu Artigo 8 que, “le Comitê du patrimoine mondial (...) est composé de 15 Etats parties à la convention, élus par les Etats parties à la convention réunis em assemblée générale (...) Le nombre des Etats membres du Comitê será porté à 21 à compter de la session ordinaire de la Conférence générale qui suivra l’entrée em vigueur de la presente convention pour au moins 40 Etats. » (UNESCO, 1972: 04)

viiSobre a interpretação do patrimônio cultural na totalidade urbana ver: Costa (2011) e Costa e Scarlato (2012).

viiiÉ bom lembrar que São João foi tombada no contexto de resgate do barroco mineiro pelo antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), na busca de marcos significativos de nossa formação nacional, pelo governo de Getúlio Vargas, que considerou o barroco do período colonial brasileiro o símbolo máximo da formação da nação. O tombamento de áreas detentoras de parte da arquitetura eclética e proto-moderna, na cidade, deu-se ao longo do século XX, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Arquitetônico de Minas Gerais (IEPHA/MG) e pela Prefeitura Municipal, que vão consagrar o ecletismo representativo de São João (Costa, 2008, 2009).

ixEm nossa tese de doutoramento (Costa, 2011), propomos a análise das cidades-patrimônio enquanto ‘totalidade urbana inseridas na totalidade-mundo’; proposta metodológica que, na Geografia, favorece o estudo do patrimônio para além do objeto atrativo, mas no cerne da complexidade do urbano e do processo de urbanização. Necessariamente, o patrimônio é analisado no contexto geográfico interescalar, para além dos limites do tombamento ou do centro histórico e face às dinâmicas verticais e globais que o consagra.

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