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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.236 Lisboa set. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020236.02 

ARTIGOS

As dimensões do exército durante o triénio liberal (1820-1823)

The army during the first liberal regime (1820-1823)

Fernando Dores Costa1
https://orcid.org/0000-0002-1849-8009

1 Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa » Avenida Berna, 26 - 1050-099 Lisboa, Portugal. fernando.dorescosta@gmail.com


 

RESUMO

A primeira experiência liberal em Portugal resultou de uma revolução militar e embora não tenha originado um regime de tipo militar, o exército permaneceu tutelando, de facto, a nova situação. Neste artigo procede-se à identificação das várias dimensões da força armada no sistema político e na sociedade nesse período. A perspetiva de redimensionamento do Estado apontava para um exército de menor dimensão. O recrutamento foi evitado pela sua grande impopularidade. Os primeiros meses de 1823 demonstram que o oficialato não estava disposto a seguir a orientação de envolvimento na crise criada pela invasão da Espanha liberal pela França da Restauração.

Palavras-chave: exército; liberalismo; Revolução Liberal.


 

ABSTRACT

The first liberal experience in Portugal was the result of a military revolution, and although it did not result in a military-type regime, the army remained as the effective assurer of the new situation that prevailed. In this article the various dimensions of the armed force are identified in the political system and in society during that period. The prospect of resizing the state called for a smaller army. Recruitment was avoided due to its unpopularity. The first months of 1823 reveal that the army officers were not willing to follow their orders to intervene in the crisis created by the invasion of liberal Spain by French forces of the Restoration.

Keywords: army; liberalism; Liberal Revolution.


 

Este texto tem o objetivo de delimitar o tratamento das várias dimensões do exército no período entre a revolução de 1820 e o final da vigência da Constituição. O exército tornou-se o centro político e a sombra tutelar do novo regime. A sua importância social afirmara-se durante as guerras napoleónicas e acabou por ser protagonista de um dos exemplos da paradoxal via militar para a “liberdade nacional” no sul da Europa. Não sendo um sujeito político, ninguém ignorava que tutelava este novo regime, que procurava na redação de uma Constituição uma regularidade fundamentada do exercício da autoridade. Entretanto, são abolidos em Cortes os capitães mores de ordenanças. As perspetivas de reorganização miliciana do exército e de criação de guardas nacionais circulavam, mas sem consequências práticas. Os recrutamentos ensaiados em 1822 e em 1823 revelavam o impasse. A viragem política em fevereiro de 1823, procurando a mobilização a pretexto da “pátria em perigo”, acabou com a manifestação de um descontentamento generalizado no exército e com o regresso à monarquia “absoluta” sem Constituição.

O exército no centro da política

O exército tornou-se, em 1820, o centro da política, o que era uma novidade. Ainda que na inspiração das inovações políticas de 1821-1822 predominassem os civis letrados associados sobretudo às leis e à administração, a origem e a sombra de uma tutela militar pairava sobre a nova situação. Abriu-se um longo período em que as movimentações do corpo militar passaram a ser um regulador paradoxal e tumultuoso dos conflitos. A contestação dos governos e o acesso aos lugares de autoridade fazia-se através desse corpo durante toda a primeira metade do século XIX. Vários são os papéis e os espaços sociais do exército nos anos de 1820-1823 e são essas suas dimensões que me proponho aqui identificar.

Na continuidade da desconfiança sobre a formação de forças permanentes no século XVII, vários autores do século seguinte tinham reconhecido nos exércitos a presença da ameaça da evolução tirânica das monarquias. Homens dependentes, meros instrumentos, sem alma, podiam ser usados pelos governantes contra os descontentes (Chassin,1867, pp. 23-36). Em Portugal, o tema não terá tido o significado de outras paragens, já que o corpo militar não teve, nos séculos XVII e XVIII, a importância ganha noutros Estados europeus. Contudo, nos tempos do governo de Pombal a ocupação de lugares de comando por estrangeiros criou mal-estar na primeira nobreza por causa do laço pessoal estabelecido entre esses homens e o primeiro-ministro. Ora, apesar de ser militar a origem da mudança política, este tópico dos exércitos permanentes como uma ameaça não deixou de estar presente nos discursos de vários deputados liberais.

Mas esta centralidade política dos militares em 1820 tinha uma origem próxima. O uso das forças militares era a único instrumento disponível para que o descontentamento generalizado de muitos e variados grupos sociais perante o prolongamento da ausência do rei no Brasil tivesse uma tradução propriamente política, afastando da administração os governadores do reino e também o poderoso William Beresford da chefia do exército em Portugal e da posição de singular favor que tinha junto do rei. Assim, em agosto de 1820, a ferramenta de uma potencial deriva despótica da monarquia podia transformar-se, paradoxalmente, no esteio da afirmação da “nação livre”. No movimento confluíam os que apenas queriam obrigar a que Portugal voltasse a ser o coração político dos domínios brigantinos, com aqueles que queriam reformar o modo de governo do reino através da sua constitucionalização, ou seja, da “racionalização” da autoridade pela codificação e regularidade.

O exército após a guerra

O papel do exército na mudança política em 1820 assenta sobre o estatuto mantido após o regresso das tropas das ações da Guerra Peninsular em Portugal, em Espanha e depois em França. Tropas vitoriosas e muito elogiadas, inclusivamente por aqueles que tinham decidido a sua utilização sem nelas terem grande confiança, mantiveram uma importância em tempo de paz que nunca tinham tido antes da primeira incursão de tropas francesas em 1807 e da guerra travada entre 1808 e 1814.

Esta força constituíra a tropa subsidiária do exército comandado por Arthur Wellesley. Era uma tropa organizada desde 1809 sob o comando de William Beresford e com a sustentação parcial de um avultado subsídio britânico. Correspondia de algum modo à tradição inglesa de utilização de tropas estrangeiras, muitas de origem alemã, mas que inesperadamente envolvia nesta altura forças sem essa tradição (Costa, 2013). Em tempo de paz, este exército ter-se-ia previsivelmente desmantelado de forma espontânea pela escassez de meios de pagamento e pela grande necessidade de mão-de-obra para a reposição da atividade económica, num país parcialmente devastado. Mas, pelo contrário, manteve um estado de mobilização elevado. William Beresford permaneceu como o seu supremo dirigente e em conflito constante com os governadores. A chave do poder do oficial britânico estava na ampla autoridade que lhe foi dada e confirmada pelo governo no Rio de Janeiro (Costa, 2009, 2010, 2018).

Os combatentes portugueses regressados queriam participar, tal como os britânicos, na remuneração extraordinária obtida a partir do valor do saque feito pelos vencedores e, de início, Beresford terá usado o desapontamento dos homens para manter a pressão sobre os governadores do reino. Tal como Wellington fizera durante os anos de guerra, Beresford manteve esta pressão com base na ideia de que não era efetiva, mas ardilosa, a falta de meios de financiamento que os governadores alegavam ser um impedimento para as despesas impostas pela manutenção de um exército que consideravam ter uma dimensão inútil. Contudo, o general britânico era visto, nas vésperas de 1820, como o homem que garantia a permanência de uma relação de subordinação “colonial” (como já então se dizia) entre a corte no Brasil e a periferia europeia do governo imperial com sede americana que “Portugal” passara a ser desde 1808. O exército pudera ser visto como garantia da conservação da condição de nação deprimida pelo seu carácter secundário enquanto espaço de fornecimento de soldados europeus às iniciativas da Corte do Rio de Janeiro. A expedição de Lecor sobre Montevideu em 1816-1817 tinha posto em risco a paz em Portugal em função de objetivos puramente americanos. Os militares portugueses seguiram em Agosto de 1820 o exemplo dos de Espanha que, entre janeiro e março desse ano, se tinham pronunciado contra a continuação do envio de tropas para as colónias revoltosas da América e dado origem a um novo período de vigência da Constituição de 1812 (Galiano, 1821). O uso do crescente desagrado sentido no interior do corpo era o meio que conduzia à mudança política.

O paradoxo da via militar para a liberdade nacional

Estamos perante um exemplo do novo tipo de revolução, o das “revoluções militares”, o qual, tal como assinalava o jovem Garrett, seria próprio do “sistema de liberdade meridional”. Referia-se à eclosão em vários pontos da Europa do sul de movimentos de índole militar reclamando-se da “liberdade das nações”: Espanha, Portugal, Nápoles, Piemonte. Foi também em 1821-1822 que se iniciou a guerra de independência da Grécia. A ordem contra-revolucionária europeia reagirá, conduzindo a um ponto máximo da tutela da “Santa Aliança” contra-revolucionária sobre a Europa. O congresso de Verona de outubro de 1822 definiu a orientação contra tudo o que pudesse favorecer a “soberania popular”. As tropas austríacas invadiram a Itália para derrotarem os seus movimentos e as francesas acometeram a Espanha em 1823, impondo a sua presença em Cádis até 1828, incursão que teve efeito também em Portugal, onde a notícia do desenvolvimento da sua ação esteve na origem da chamada Vilafrancada. Todos os movimentos liberais europeus tinham fracassado em 1823.

Para Garrett, num texto publicado em 1826 e escrito talvez em 1824, retomado de muito perto no Portugal na Balança da Europa, esse carácter militar fora “a única e valente causa da pouca duração e estabilidade do sistema representativo das duas Penínsulas”. O militar era “o errado método de se estabelecer aquele sistema” de liberdade. Mas um tal erro fora “inocente” porque “a íntima convicção de todos o suponha o mais acertado meio”. Não fora uma criminosa tenção que levara a arredar constantemente o povo de tomar parte na revolução. Foi “o receio da anarquia; o fatal exemplo da França lhes inspirou terror; e a natureza própria do sistema indulgente e neutralizador que se havia proclamado exigia suma prudência e melindre”. Mas este melindre teria sido levado demasiado longe. A massa inerte ficara à disposição dos que dela se quisessem valer dando-lhes um movimento “em qualquer sentido”. Não o fez a revolução e fê-lo a contra-revolução (Garrett, 1830, 68-69). Confirmamos deste modo que a revolução em França não constituía para os liberais um modelo e um estímulo. Pelo contrário, tornara impensável o favorecimento de uma ação que seguisse o mesmo método, ou seja, que apelasse à presença popular nas ruas e repetisse o perigo desse “fatal exemplo”. A revolução criara um medo de novo tipo. Com efeito, a baixa plebe em estado de fúria sempre fora vista com medo e com desprezo, mas também como exprimindo uma intransponível inconsistência, já que essa fúria inaugural se desvanecia por si mesma. A plebe era desqualificada pela forma que se desenvolvia espontaneamente a sua revolta (Boyvin, 1610). Mas, ao mesmo tempo, essas revoltas eram usadas nos conflitos entre as fações nobres, e por isso se dizia que havia sempre (ou quase sempre) uma direção oculta.[1]Por outro lado, Garrett assinalava a existência de uma competição pela condução do movimento das “massas” (é o termo que usa), já que estas podiam ser levadas em diferentes sentidos, por “partidos” opostos. Significa isto que essas “massas” não estavam predispostas para a aceitação de uma determinada direção para darem expressão ao mal-estar.

Em suma, a sombra do “terror” condicionava o uso dos descontentamentos populares. A revolução tinha por isso de ser inevitavelmente militar, mas deveria, na proposta de Garrett, articular-se com uma componente popular. Era indispensável “interessar” o “povo”. Interessar designava, neste contexto, as ações de promoção das condições materiais de vida, aquelas que poderiam ser compreendidas pelo “povo”, e conduzir à criação de um vínculo entre uma determinada situação política e a aquisição pelos indivíduos de um certo estatuto social. O “povo”, continuava Garrett, nunca se interessaria pelas mudanças políticas para que não tivesse concorrido. O povo apenas defendia o que tocava e apalpava, pelo que ignorava as teorias da representação política, abstrações que dos sentidos lhes fugiam (Garrett, 1830, 79-80). Havia, pois, uma pedagogia que decorria da caracterização do seu alvo: o “povo” deveria ser guiado através dos sentidos e não por meio de palavras que não entendia.

Criar os “interessados” numa nova situação é um antigo tema de tradição maquiavélica. Os que inauguram uma nova administração não apenas devem evitar criar muitos descontentes, devem criar os seus apoiantes. O momento de descontinuidade política, de revolução - e a revolução é, neste contexto, uma perturbação periódica, como a dos astros, embora seja imprevisível o momento da sua ocorrência - é um momento privilegiado, não apenas pela manifestação de uma excecional apetência pela mudança, mas pela grande instabilidade no estado da opinião. A perspetiva que liga de modo imediato os grupos políticos aos interesses sociais - para mais, sendo estes evidentes e estando os agentes muito conscientes deles - através da noção simplista de “representação” ilude o caráter construído da articulação entre as ações na esfera política e na esfera social. Esta ligação não se encontra predefinida, é um resultado.

A construção dos “interesses” que sustentariam o novo regime é um tema que se encontrará em Mouzinho da Silveira (Silveira, 1989) ou em Herculano, e no que este designa como a “grande revolução social de 1834” (Herculano, 1880, p. 277). Procurar nas observações de Garrett a defesa de uma imaginada revolução radical ou jacobina não tem fundamento, não apenas porque recorre a uma versão acrítica do “jacobinismo”, mas também porque a afirmação desta necessidade de criar interesses nada tem a ver com uma suposta “radicalidade” política. Aquilo que se pode identificar como característico do jacobinismo (como uma época da história francesa e não como imaginação) no campo da propriedade e dos interesses são as restrições impostas ao funcionamento do mercado e à vigilância sobre a especulação com os cereais em tempos de ameaça de guerra e de mobilização bélica. Isto não constituía uma novidade e era, aliás, inerente ao estado de exceção, de modo a garantir os meios para a alimentação dos exércitos e das populações. Tais práticas iam numa direção oposta à da liberalização do comércio dos cereais e ao abandono das políticas do tradicional paternalismo e por isso podiam ganhar um inesperado novo sentido político. Eram “populares”, pois aparentavam interessar-se pela sorte dos indivíduos comuns. Podiam ser transformadas pelos opositores políticos num hipotético plano de ataque à propriedade e desse modo como o sinal de uma ameaça sobre a propriedade. Mas o tema da criação de interesses em Portugal não apresentou qualquer relação com este inesperado estado de exceção de curta duração na França de 1793. Apontaria, pelo contrário, para a solidificação do papel dos lavradores-proprietários e para o reforço do seu espaço de autoridade no âmbito do “individualismo agrário”. Toda a legislação da ditadura dos partidários de D. Pedro em 1832 se destinou a criar as expectativas de benefícios tangíveis no caso de uma vitória sobre os miguelistas. Era uma legislação que os seus redatores pensavam que poderia ter uma ação sobre os espíritos, como se prova pela reiteração da chamada “lei dos forais” quando o exército liberal se aproximou dos coutos de Alcobaça, onde o tema, por razões conhecidas, era particularmente candente (Monteiro, 1985).

A revolução foi militar e não popular. Neste novo regime, o poder residia, em última instância, apesar da eleição das Cortes Constituintes, no exército, tal como se veio a demonstrar em abril e maio de 1823. Uma grande atenção foi em consequência dada aos fatores que pudessem criar descontentamento no interior do corpo militar. O muito ativo Borges Carneiro afirmava em Cortes que estava persuadido de que se alguns dos cortesãos que serviam o rei pudessem contribuir para arruinar os trabalhos das Cortes de imediato o fariam e, em consequência, deveriam os deputados trabalhar para amalgamar com eles a nação e todo o exército (Diário das Cortes, http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821, em seguida DC, 1821, p. 301). Impedir a instrumentalização política de setores do exército era crucial.

Extinção das capitanias gerais de ordenanças

A mutação política criada pela revolução produziu expectativas quanto à extinção dos efeitos execrados da formação do exército. Em primeiro lugar, no campo do recrutamento. A esta esperança se referem alguns deputados quando o assunto pela primeira vez chegou a debate nas Cortes. O deputado Freire manifestou-se contra a possibilidade de um novo recrutamento porque era de “prudente cautela” não “perturbar os pobres paisanos na fruição de alguns benefícios que temos dado pela Constituição”. Note-se que aqui o termo Constituição não designa um texto, que nesta altura ainda não está concluído, mas a assinatura do novo regime. Também o deputado Soares Franco afirmava que “a Nação não podia ter agora cousa que mais a assustasse do que um recrutamento, ainda que fosse de cem homens”. O cuidado deveria, pois, guiar os novos dirigentes. A nova situação devia criar esperanças e não devia desiludi-las. A propósito de uma outra questão, a das prestações impostas pelos forais, dizia Pereira do Carmo não ter dúvidas em citar Rousseau quando este afirmava que os fundadores de uma república não deveriam começar por enchê-la de descontentes. Na verdade, a frase pertencia a Maquiavel, que Rousseau reproduzia (Rousseau, 1762, p. 38). Esta era uma elementar lei de prudência. A classificação de alguma medida ou proposta como “impolítica” aparece com frequência nos debates de Cortes.

O método de recrutamento feito sob a autoridade dos capitães mores nunca mais deveria existir, proclamou o deputado Fernandes Tomás (DC, 1821, p. 1787). “Basta que haja um cabo de ordenanças para todo o lavrador ficar a tremer”. O tema do recrutamento chegou, de forma inesperada, ao “Soberano Congresso” antes da discussão de um eventual projeto de definição legal de novos métodos, resultando antes da apresentação pelo governo de uma urgência de recrutamento de homens para a cavalaria. A comissão de guerra das Cortes julgara-a indispensável, pelo que propunha que se respondesse ao secretário da guerra que as Cortes autorizavam o governo a mandar fazer esse recrutamento através da responsabilização dos capitães mores pela execução da lei do recrutamento, que em tempo oportuno seria substituída (DC, 1821, p. 1786).

Mas o deputado Franzini pôs em dúvida a referida falta de homens, afirmando que em todos os regimentos de cavalaria os soldados excediam o número de cavalos e que nos mapas do tempo de guerra havia dois mil apeados. O recrutamento seria escusado se viessem os homens que estavam em excesso nas províncias. Mas o barão de Molelos contrapunha que se Franzini tivesse lido os mapas afirmaria o contrário, e Barreto Feio afirmava que todos os regimentos tinham falta de gente e não eram apenas os n.os 1 e 4, os de Lisboa. Podemos suspeitar que este pedido fosse um expediente, em que a urgência na cavalaria permitiria forçar mais suavemente a continuação de formas de ação anteriores sem que houvesse um debate sobre o novo modelo. Nesse caso, as tais expectativas de mudança sofreriam um golpe.

Mas, como já assinalado, Fernandes Tomás opôs-se à proposta de atribuição do recrutamento aos mesmos agentes que anteriormente. Afirmava que as famílias não podiam continuar expostas aos incómodos e vexações que tinham sofrido dos capitães mores. Embora esclarecendo que não atacava essa “corporação” em geral, havendo nela aqueles que eram capazes, afirmava que o Congresso não fazia ideia do quanto a nação aborrecia estes homens e o mal que lhes queria! Estava em causa a impopularidade que uma continuidade dos métodos acarretaria. Seguiu-se-lhe Borges Carneiro, que dizia receber todos os dias cartas que continham queixas sobre o que faziam os capitães mores. O maior benefício que podia ser feito à nação portuguesa, sem gasto de tempo ou de dinheiro, era a sua suspensão. Eram cargos sem necessidade e que deviam acabar.

Várias questões se colocavam então. Uma era a passagem da autoridade recrutadora para as Câmaras, algo que alguns, como o deputado Miranda, punham em causa. Outra, a eventual reposição em vigor da lei de 1763. A lei desse ano correspondeu a uma reforma tentada por inspiração do conde de Lippe e visava retirar os militares das ações de recrutamento (como tinha sido regra até então), criar áreas específicas para levantar os homens de cada unidade militar e estabelecer um sistema de apuramento e sorteio dos recrutas. Nada indica, contudo, que esta lei tenha atenuado as resistências ao recrutamento (Costa, 2010). Sobre a recolocação em vigor desta, testemunhava o deputado Peixoto que na sua província “nenhum pai entregaria o filho sorteado por maiores que fossem os terrores com que o ameaçassem” e ver-se-iam “todos os moços pelos montes e grande número de famílias em consternação” (DC, 1821, p. 1787). Outro deputado, porém, defendia que havendo recrutamento, não se alterasse a prática anterior, estando na mão dos generais diminuírem a sua malignidade. O parecer da comissão foi reprovado. Foi decidido que se indicasse ao governo que retirasse os soldados necessários dos corpos próximos.

Fernandes Tomás apresentou um pouco mais tarde um projeto de abolição dos capitães mores. O debate desse projeto propicia alguns dos mais conhecidos retratos do recrutamento, mas que apenas confirmavam outros anteriores (DC, 1821, p. 1831). Borges Carneiro declarava não ser uma expressão exagerada a de que deste modo se retirava uma grande serra de cima do peito da nação. As atribuições quotidianas do poder dos capitães mores eram descritas, nomeadamente a perseguição de 200 moços, quando se precisava de apenas seis, para que desta forma fosse dada extensão “à dependência, à concussão e à rapina”. É um traço central da ação dos recrutadores, de que temos muitos ecos desde as queixas a propósito das levas de homens para a Índia (Costa, 2010). O deputado Moura dizia que muitos capitães eram o flagelo dos seus distritos, vivendo do suor alheio por mil maneiras e fazendo pesada a sua inútil autoridade até ao último dos cidadãos, porque poucos deixavam de lhes estar sujeitos. Mas havia-os bons, fosse pela sua educação e independência, ou por quererem viver bem com os seus vizinhos.

Este deputado afirmava que isso era inevitável, por causa da má lei de 1709, que, ao contrário do que acontecia com a eleição das justiças enquanto cargos anuais para o preenchimento dos quais concorria a Câmara, nobreza e povo, previa a eleição dos capitães mores como um cargo vitalício e de difícil remoção. Em que bastavam as Câmaras, que, na maior parte, se formavam de fidalgos, ou seja, de déspotas e prepotentes que elegiam um de entre eles. No caso das de menor dimensão, os pobres artistas elegiam quem lhes mandava algum valentão. Que outra coisa se podia esperar de homens com o poder de prender, multar, ordenar diligências que apenas tinham recurso para um governador das armas, longínquo e com as despesas e o ónus de uma queixa? Mesmo no caso de haver bons oficiais, permanecia a inquietação para o agricultor e o artista causada pelos alardos, mostras, revistas, alistamentos, recrutamentos, diligências e a ocupação de domingos e dias santos.

O exercício da autoridade dos capitães mores era a perfeita ilustração do tema do abuso dos cargos e de uma perspetiva que está na origem do tema da alegada “hipertrofia do Estado”. Diz-se: “este o grande mal de Portugal. Tantos empregados públicos de inumeráveis castas… enxames de moscas e insetos que nunca deixam de esvoaçar à roda do cidadão industrioso para lhe chuchar o suco e o sangue” (DC, 1821, p. 1832). Ou então: “É este o antigo achaque de Portugal: encargo ou tributo que uma vez se ponha é ferrugem que nunca mais se limpa” (DC, 1821, p. 1832).

As ordenanças eram militarmente inúteis e tinham sido conservadas apenas para fazer listas e para recrutar. Deveria ser extinto este poder e às Câmaras deveriam entregar-se a suas listas e livros, embora se dissesse que tais registos eram “pela maior parte viciosos e de pouco préstimo”. Mas levantaram-se algumas vozes contra esta passagem da tarefa para as Câmaras. O deputado Miranda declarou que os povos iriam ficar em pior condição se fossem as Câmaras a fazer os recrutamentos. “É certo que os povos serão tanto mais livres e tanto mais felizes quanto menos autoridades houver.” Mas refere-se aos escrivães das Câmaras como “harpias sequiosas” (DC, 1821, p. 1832).

O objetivo era proceder à eliminação desta parte do sistema tributário que há muito teria sido condenado por ser considerado lesivo da agricultura. A formação do exército fazia parte do sistema fiscal que oprimia os lavradores-proprietários, as figuras centrais do projeto político dos liberais da época. O trabalho de aculturação que foi sendo feito, sobretudo ao longo do século XX, pôde levar a um desvanecimento da perceção (e ao desaparecimento da classificação de forma explícita) do recrutamento como sendo parte da ação tributária para ser de uma outra - a de alegado dever de sacrifício pessoal pela “pátria”. Contudo, nesta época - como nas anteriores - o recrutamento era visto como uma das maiores violências feitas pelo Estado sobre a “sociedade”. Mas a valorização do papel social dos lavradores, vinda de inspiração em escritos de eras longínquas e reforçada no século XVIII, base económica da sociedade, das rendas das nobrezas e da subsistência de todos, tornou primordial o tema do exército inimigo da agricultura. Estava em causa a autoridade sobre os homens comuns na sua forma mais banal e quotidiana. O lugar de capitão mor (e os das capitanias a ele subordinadas) permitia supervisionar o destino do efetivo de jovens homens das povoações e as suas movimentações. Estando os chefes das casas dependentes da existência de tais homens para os trabalhos agrícolas, os capitães mores ganhavam um ascendente sobre todos os demais homens medianos. A suspeita de que recebiam “prémios”, ou de que obtinham trabalhos gratuitos para que não recrutassem, pairava sobre eles desde sempre.

Em pano de fundo, estava a administração do efetivo dos homens como mão-de-obra, sempre apontada como escassa. Alguns discursos sobre os “criados de servir” no âmbito do debate respeitante à possibilidade de poderem ser eleitores são do tipo benevolente, já que a exclusão não se faz por “culpa”, não tendo culpa dessa sua pobreza, mas (nas palavras do deputado Bastos) pelo “pouco interesse” e zelo manifestados pela “causa pública” e também por “dependência”, o que não seria de recear no caso dos lavradores e homens estabelecidos com propriedade ou ofício, ainda que não sabendo ler e escrever (DC, 1822, p. 836). Contudo, uma outra imagem de aguda conflituosidade entre os lavradores e os trabalhadores rurais se encontra de uma forma expressiva nalgumas queixas coletivas de lavradores sobre os efeitos negativos do recrutamento militar que foram publicadas por Albert Silbert (1968, pp. 181-182) Os jornaleiros são aí representados como o “gentio”, explicitando-se assim a parecença com as situações de tipo colonial. Um momento alto desse conflito foi a ocupação de Santarém pelos trabalhadores agrícolas da região em 14 de fevereiro de 1814 contra a taxação das jornas desejada pelos proprietários, e que foi reprimida por forças militares (Tengarrinha, 1994, II, pp. 117-119).

A competição pelo uso dos homens ter-se-ia agravado nos anos anteriores. “O estado da nossa população foi sensivelmente alterado pela guerra da Península e por seus fatais resultados” e “não será nunca prudente deixar de repartir com mão acautelada os braços” (DC, 1821, p. 74). A pressão dos lavradores levara anos antes à formulação de propostas destinadas à utilização dos soldados para serem postos à disposição dos empregadores e usados deste modo para baixar a pressão para o aumento dos salários. São disso exemplo o plano do intendente de polícia Pina Manique (Costa, 1995), ou a intenção alegada por William Beresford de licenciar soldados de infantaria para trabalharem nos campos.

Interessava dar garantias na limitação do âmbito social da formação do exército sob o regime constitucional. O choque entre as perspetivas defendidas pelo barão de Molelos e por Borges Carneiro a propósito do artigo 144 do projeto de texto constitucional (DC, 1821, 258, 3509-3510) é característico. O barão achava que não se devia incluir o detalhe sobre a existência de isenções ao recrutamento num texto deste género, ficando isso reservado para os textos legais comuns ou regulamentares. Borges Carneiro desejava que ficasse consagrada a existência de tais isenções, o que era justificado não apenas pela necessidade de uma compartimentação dos espaços de recrutamento profissional, mas também por recair sobre a “classe militar” a acusação de ter o poder de chamar a si todos os indivíduos. O barão alegava que o princípio de isenções não era um privilégio, mas uma regra decorrente da “natural diferença” de classes, pois o despotismo passado chegara a querer fazer de Portugal o pupilo de uma nação estrangeira - uma referência a Beresford e aos britânicos -, convertendo todo o país em exército quando fazia passar pelo exercício das armas a todos os cidadãos e confundindo a classe militar com todas as outras. Também o deputado Bastos afirmava que tinha de ser explicitado o âmbito da aplicação do princípio enunciado de uma obrigação de todos em participarem na defesa, sob pena de assustar inutilmente todas as classes, o lavrador que lhe levasse o seu filho, o negociante, o filho ou o caixeiro, ou os pais de família ficarem sem saber se valeria a pena enviarem os filhos para os estudos.

A eliminação dos capitães mores de ordenanças fazia parte da intenção de criação de uma classe de lavradores-proprietários, economicamente dinâmicos, dos quais se esperava um notável aumento da produção agrícola, ficando livres de constrangimentos limitativos. Para mais, esta mudança do método de recrutamento fazia parte de uma visão ideal da sociedade em que houvesse o menor número possível de cargos e de ofícios de administração porque estes, dando a possibilidade de se viver à conta das receitas fiscais ou dos pagamentos impostos aos comuns, desviavam os homens da utilidade que decorria do motivado governo dos seus bens. Afirmava, por exemplo, Borges Carneiro que o reino estava despovoado e que a pouca gente que havia eram vadios e indigentes que não tinham em que se ocupar, ou eram os que viviam de inumeráveis empregos militares, civis e eclesiásticos, isto é, à custa da nação e do trabalho alheio (DC, 1821, 23-10-1821, p. 2747). Esta era a imagem simétrica da sociedade ideal, aquela em que os vadios se tornariam trabalhadores e os empregados eram lavradores. Este terá sido um ponto agudo da formação do alegado diagnóstico de uma procura de meios de vida em lugares ociosos (aquilo que se veio a designar como “empregomania”) como uma “doença da nação”, tema glosado ad nauseam e tomado frequentemente como uma descrição plausível, mesmo quando não se evidencia que tenha fundamento. A legitimidade da mudança fundar-se-ia no imaginado retorno a uma liberdade primordial que excluía essas práticas.

A “nação livre” regressa a si mesma. O favorecimento da generalização dos lavradores-investidores apresentava várias dimensões, a saber, a eliminação, tanto quanto possível, das pesadas prestações impostas por forais; a proteção do acesso dos lavradores portugueses ao mercado de Lisboa que se encontrava tomado pelos cereais importados; a eliminação das restrições costumeiras à propriedade individual. As pesadas prestações agrárias que estavam previstas em certos forais suscitavam conflitos e eram identificados como uma sobrevivência de um sistema de tributação irregular, próprio do período medieval e caracterizado pela ilegitimidade do abuso. Fernandes Tomás apresentava-o como o resultado da conquista cristã: o soldado português quando pegava no arado na terra que acabara de conquistar encontrava “já um senhor bárbaro que lhe impunha condições penosas” e sujeitando-o a “encargos que ofendem a razão e escandalizam a humanidade” (Tomás, 1982, p. 62). Essa era a origem das imensas riquezas e privilégios de corporações eclesiásticas e de muitos dos grandes do reino, e também era a origem dos “odiosos forais”, já que os reis fizeram “fatais doações que os despojaram de tudo”. A reforma manuelina dos forais no século XVI não modificara este panorama.

Tratara-se, pois, de uma ação de conquista no sentido próprio e estrito do termo: criava-se pela força um “estado” do rei que se torna (por doação dos reis) uma pluralidade de menores “estados” - ou seja, de rendimentos de raiz fundiária que possibilitam a manutenção de estatutos - num determinado território e sobre uma população que se passara a dominar. As cartas de foral corresponderiam a compromissos, por meio de uma definição escrita, que dariam aos povoadores (escassos em tempo medieval e em terra de fronteira) uma definição do âmbito do poder senhorial. Isso explica que a certo passo um deputado faça um paralelo entre a revolução de 1808 contra as imposições napoleónicas e a revolução de 1820. A criação do “sistema feudal” era vista, de modo expressivo, através de um paralelismo com uma agressão estrangeira próxima. A nação retomava, deste modo, em 1820, a sua liberdade original, anulando os efeitos da conquista medieval. O projeto era neste sentido “anti-feudal” e favorável à criação do espaço social para a presença do investimento capitalista na agricultura. Mas tudo isto era representado no âmbito do retorno à nação livre. Não se tratava, contudo, de um regresso à liberdade dos tempos medievais, mas - como se propõe considerar Herculano uns anos mais tarde - do retomar do caminho do “progresso humano” após três séculos de uma “hibernação” que foi, contudo, necessária. Isto porque, no estado inicial, antes dessa interrupção, as classes viviam em luta contínua, a desigualdade de forças era demasiada, reinavam a barbaria moral e a falta de ordem pública e a ignorância era extrema (Herculano, 1985, pp. 235-236). Depreendemos que tinha sido necessária a ação da monarquia pura.

O exército e a segurança interna

Entretanto, era muito amplo o campo de tarefas em que o exército estava envolvido. Não existia uma distinção entre as forças que eram empregues na defesa em caso de conflito externo e as usadas na segurança interna, termo que já é correntemente empregue na época. As tarefas de escolta e de proteção eram cumpridas por destacamentos do exército, nomeadamente pela cavalaria. Assim, Beresford assinalou com desagrado que a cavalaria era chamada para todo o tipo de tarefas e que os soldados eram os homens mais baratos para variadas tarefas, uma espécie de criados mantidos em regime de disposição comum. Temos notícia de muitos e variados destacamentos. Por exemplo, um que se encontrava em Beja para melhor se obstar às “correrias que cometiam os salteadores que infestavam” aquela comarca (11-11-1822, AHM, 1-17-10-05-4); também a do esquadrão do regimento de cavalaria n.º 6 que ia marchar para a vila de Viana do Minho a fim de exterminar os salteadores que infestavam a província (31-10-1822, AHM, 1-17-10-05-10), da apreensão de salteadores no Minho (AHM, 1-17-10-05-23), nomeadamente do salteador Bento da Silva (AHM, 1-17-10-11-5). Na cidade do Porto, uma época crítica já teria passado em janeiro de 1822: os roubos tinham cessado e tudo estava em sossego, havendo piquetes noturnos e frequentes patrulhas das guardas da cidade e dos quartéis (1-17-10-11-8/10/11). Mas a cavalaria ainda fazia outros trabalhos, como a escolta dada pelo regimento n.º 3 aos contratadores do tabaco (1-17-10-05-10). Imaginava-se, inclusivamente, que o exército pudesse fornecer um cordão de tropa na raia para evitar o contrabando de cereais, mas a hipótese era condenada pelo barão de Molelos, que a classificava como tão anti-política, anti-militar e anti-económica que não merecia ser analisada (DC, 1821, p. 542).

O banditismo, de que há notícia desde pelo menos os primeiros anos do século, e estritamente associada à formação do exército, ganhou importância política após a revolução e não era exclusivo das regiões do sul do país. O Diário do Governo publica periodicamente notícias da prisão de ladrões.[2] Em setembro de 1821 os deputados em Cortes debateram a questão do banditismo. Borges Carneiro defendeu, então, o enforcamento exemplar dos homens capturados e faz um dos seus elogios do marquês de Pombal (DC, 1821, p. 2166). O deputado Bettencourt traçou um panorama da presença das quadrilhas de ladrões no Alentejo. Dava conta de um caso em que os “bandidos” tinham chegado a fazer resistência a uma patrulha de tropa de linha com a morte de um soldado e a fuga dos agressores. Assinalou também um ataque feito a Montouto.[3] O quadro geográfico e social ser-lhes-ia favorável: o despovoamento, os terrenos que davam asilo pelos desertos e matos espessos e os colonos e proprietários que se viam obrigados a auxiliá-los. Dizia o deputado que o mesmo não aconteceria nas províncias onde havia mais população e era mais fácil reuni-la para uma defesa das povoações. A maior parte dos bandos seria composta por desertores armados. Confirmava-se uma ligação direta assinalada desde o início do século pelas informações da Intendência Geral de Polícia (Costa, 1995) e muito intensamente no período após a guerra de 1832-1834 (Ferreira, 2002) entre a decomposição do exército e a formação de grupos de indivíduos armados que fazem a imposição do “resgate” aos lavradores da província e também aos viajantes nas estradas. Os bandidos tinham um “quartel general” em Pedra Alçada.[4] Mas acrescentava Bettencourt que tinham os bandos correspondentes em Lisboa e no Porto, e que os capitães passavam passaportes, ou seja, os livre-trânsitos para os viajantes que tivessem pago aos chefes dos bandidos para não serem assaltados e que não eram obviamente os passaportes que eram emitidos pelas autoridades locais para a vigilância dos movimentos de indivíduos, nomeadamente dos que estavam em fuga ao recrutamento militar. O deputado confessava que o passaporte que tinha pedido lhe custara “bem caro”. Estava entre aqueles que procuravam atenuar a responsabilidade dos magistrados na persistência destas práticas por falta de punição: alegava que as prisões se faziam em locais ermos e sem testemunhas e que os processos não sendo legais, os homens eram absolvidos. Outros reclamavam, como o deputado Castelo Branco, que os magistrados que não observassem a lei fossem castigados e assim poderia ser restabelecida a ordem pública (DC, p. 2170). Os processos contra o banditismo são um dos domínios que melhor ilustra a imagem marcadamente negativa dos julgadores, neste caso devido à muito frequente e suspeita ausência de penalização. O abuso da “casuística”, uma técnica de contemporização e de “negociação” das sentenças, incidia aqui sobre indivíduos que se esperava que não fossem socialmente poderosos.

Mas o tema do banditismo ganhara uma maior importância porque se inscrevia nas lutas próprias da conjuntura política. O deputado Bettencourt identificava assim o relevo ganho: havia uma persuasão vaga e absurda de que com a nova ordem das coisas se acabara a pena de morte e que os ministros não podiam prender sem culpa formada, pelo que os malfeitores se julgavam impunes. O deputado confirmava deste modo haver algum fundamento para a ideia propalada pelos opositores da “nova ordem” de que esta abrira uma época de impunidade. Os adversários da nova situação faziam campanha através do assunto da proteção que seria agora dada de facto à insegurança. Ilustra-o um pasquim surgido na cidade do Porto onde se dizia: “Enquanto houver Constituição, pode-se ser assassino e ladrão” (DC, 1821, p. 2383).

Bettencourt apontava - tal como outros o farão - para a necessidade de uma ação militar no Alentejo: “Só a força militar, não como auxiliadora, mas como responsável pela segurança pública e individual, é que pode preencher este fim. Eu não aprovo o modo de patrulhar só as estradas e com uniformes com que são vistos a muita distância; são precisas emboscadas e excursões pelos caminhos laterais” (DC, 1821, p. 2166). O que estava em causa era a organização de uma campanha, tomando-se a iniciativa de perseguição dos bandidos nos terrenos em que se refugiavam e utilizando homens desfardados e os métodos da pequena guerra.

A defesa da pena capital para os bandidos armados não seria uma idiossincrasia do muito influente deputado Borges Carneiro, cujo temperamento peculiar já foi assinalado por Zília Osório de Castro (Castro, 1990, vol. 1, pp. 91-115). Outros o acompanhavam nisso, caso do deputado Castelo Branco quando defendia que todos os que fossem apanhados com armas na mão fossem imediatamente sentenciados à morte (DC, 1821, pp. 2169-2170). Este era um sinal de fascínio pelo exercício da autoridade que tem outras manifestações nas referências feitas ao uso do terror ou nos elogios ao marquês de Pombal.

Várias foram as sessões de Cortes em que se ouviram tais elogios. É a forma que, por utilizar um exemplo histórico, é a mais expressiva para a apresentação da necessidade de um estado de exceção. Trata-se da proclamação da urgência de um período de disciplina incomum, algo que permitiria a passagem forçada dos comportamentos do passado para novos modos de agir, tal como se encontra na declaração de Borges Carneiro: “é necessário ao menos dois meses de Marquês de Pombal” (DC, 1821, p. 1089). Nalguns casos constatamos que se fazia depender a tomada de uma certa decisão extraordinária da existência de um homem com o carácter de um “marquês”: “Se existe um Marquês de Pombal, reúna-se” a presidência do Erário e o ministério da Fazenda. Mas como não existia… (DC, 1821, pp. 47-49).

Algumas das formulações são desconcertantes e desafiam a nossa interpretação. Como aquela que o designa como um “verdadeiro déspota, porém homem extraordinário” (DC, 1821, p. 477). Ou a de Borges Carneiro: um homem “que sempre louvarei em todas as coisas, salvo os seus despotismos e crueldades”. Ora, o que pode ser extraordinário no homem que foi um verdadeiro déspota? Ou como louvar um homem “em tudo” com a exceção das crueldades? Este tipo de declarações apenas se pode explicar como uma resposta antecipada a uma previsível crítica incómoda. Tomando a iniciativa de demarcação dos aspetos negativos, possibilitavam que se fizesse a valorização da figura que admiravam. Aquilo que se gostava no marquês de Pombal era ser a ilustração do destemor e da capacidade de decidir. O homem que não receou afrontar os mais poderosos nobres da sua época e os jesuítas. Alguns destoam, caso de Sarmento, que o classifica como autor de inauditas barbaridades (DC, 1821, 1308). O elogio do marquês de Pombal dificilmente podia ser uma outra que não fosse o elogio do estado de exceção.

Criação de forças de polícia

A capacitação de uma força de tipo militar para as tarefas internas suscita iniciativas como a de um projeto do ministro da guerra para a criação das designadas legiões de guardas de segurança pública (DC, 1821, p. 3029). Estas seriam compostas por homens retirados dos já existentes no exército. Na altura, o estado completo do exército, ou seja, aquele que os regulamentos em vigor previam e que nunca se encontrava preenchido, era de 34641 homens, mas o efetivo era de apenas 21416, um pouco mais de 60%. Previa-se que 1536 passassem proximamente ao Brasil e se uma décima parte fosse deslocada para a criação das tais legiões, restariam no exército apenas 17739 homens. Alguns, como o deputado Vilela, não compreendiam a relutância que haveria na utilização da força militar para os efeitos internos. Se se estava em paz, porque não se ocupavam os homens nesses serviços, perguntava (DC, 1821, p. 3035). Também Bettencourt afirmava que o exército tanto defendia o reino dos inimigos externos, e nesse caso era um exército regular, como defendia o reino dos inimigos internos, e seria então os tais guardas de segurança pública. Os inimigos internos e externos eram para este efeito colocados ao mesmo nível. Outros, contudo, reclamavam que estes eram objetos diametralmente opostos, pelo que não se podia, ou devia, empregar tropa de linha no serviço público diário.

A questão da formação de uma Guarda Nacional era, como acima dito, um tema que se podia tornar essencial, já que a existência de uma força deste tipo permitiria idealmente a sobrevivência do novo regime, autonomizando-se das flutuações do estado de espírito dos oficiais do exército (Pata, 2004).

Pertencia às propostas que se tinham desenvolvido à sombra da perceção da acima referida ameaça potencial das forças de tipo permanente. Opunha-lhes uma organização de tipo miliciano, que era tradicionalmente uma forma de policiamento das cidades sem a dimensão que exigia uma força profissional. Não sendo profissional, não possibilitava a criação de interesses de corpo. O uso da força permaneceria subordinado à defesa dos interesses dos homens independentes. Idealmente seria, pois, um corpo voluntário de proprietários.

Alguns imaginam uma sociedade a partir da reiteração do mito de uma associação original dos homens para que, reunidos, melhor defendessem a sua propriedade. Desta origem (que na verdade é a postulação de uma essência social) diz um capitão de engenheiros ter deduzido que os homens, para contarem em sociedade, devem ser proprietários e que, associados, devem saber defender-se reunidos. Esta memória ilustra a fábula miliciana dos homens-proprietários e por isso mesmo defensores interessados nessa defesa e que podiam dispensar os homens que eram condenados ao papel de combatentes assoldadados. Mas este sistema pressupunha o predomínio social dos homens medianos. Perguntava o autor deste Esboço como poderia deixar de ser convulsiva a sociedade onde a propriedade se achava nas mãos de poucos? E como poderia defender-se a sociedade onde a maior parte dos seus membros tinha um privilégio que os excluía da defesa? (Salgado, 1821, p. 5) Restava ainda o problema da qualidade militar dos milicianos face a tropas profissionais.

O recrutamento em 1822

A carta de lei de 16 de janeiro de 1822 definiu as condições em que se faria o recrutamento decidido pelas Cortes (Coleção, 1822, p. 330). Este recrutamento era limitado, pois visava apenas a substituição dos homens que tivessem tido baixa por força do decreto de 17 de abril de 1821, que previra que no início de 1822 a décima parte dos oficiais inferiores e dos soldados do exército tivesse baixa do serviço, e ainda 300 homens para os regimentos de cavalaria. Para mais, correspondia à falência da perspetiva de uma alteração substancial do método de recrutamento. A novidade residia na sua atribuição às Câmaras, mas respeitando ainda o quadro de isenções definido na portaria de 28 de setembro de 1813. Previa-se, também, que os recrutados pudessem oferecer um substituto (que não fosse um dos apurados) e que os que se apresentassem antes do sorteio fossem considerados voluntários. Excluía os casados, mesmo os que tivessem contraído o matrimónio após o último alistamento. Em Lisboa, o sorteamento seria feito por um membro do senado (ou um magistrado) com três cidadãos de cada um dos distritos das antigas legiões. Por fim, anunciava-se que se iria proceder à prisão dos vadios que fossem aptos para serem alistados preferencialmente a quaisquer outros. Um sinal de que o quadro moral da formação do exército permanecia inalterado.

A referida portaria de 1813 tivera o propósito de explicar o entendimento detalhado que deveriam ter os privilégios que isentavam do recrutamento. Tentava anular os efeitos da caracterização anterior que, sendo muito geral, deixava uma ampla margem para grandes arbitrariedades e sobretudo para que a aplicação pudesse recair sobre muitos indivíduos que não pertenciam de facto ao grupo protegido. Contrapunha-se a isso uma especificação do âmbito de uso do privilégio e exigiam-se comprovações documentais da condição reclamada. Por exemplo, a isenção em defesa da agricultura, de origem muito longínqua e que sempre estivera no primeiro plano dos privilégios, recaía sobre os criados de cada lavrador, detalhando-se agora na portaria que se destinava ao lavrador (1) “propriamente dito” ou (2) “chefe de lavoura” e abarcava também um dos filhos mas (3) “que tivesse empregado em lavoura”, (4) podendo aproveitar-se desta isenção apenas um homem por cada junta de bois (5) sendo usada essa junta ao serviço da agricultura e (6) provando os criados serem naturais da terra ou que nela residiam por mais de um ano, apresentando para tal certidões dos párocos para a comprovação da residência e as atestações dos amos, conforme um modelo que publicava em anexo à portaria. Dificultava-se através destas seis especificações o alargamento da isenção a outros que não fossem lavradores, aos criados e filhos destes que faziam outras vidas e aos homens que, sendo jornaleiros esporádicos ou homens itinerantes, se indicavam como criados das casas.

A informação disponível aponta para a má receção do novo recrutamento, confirmando-se a tradicional aversão ao serviço militar e o desinteresse dos dirigentes locais no seu cumprimento. O governador de armas do Alentejo recebeu a determinação de recrutar 467 homens para sete corpos militares, devendo para esse efeito entender-se com os corregedores das comarcas. A pouca vontade encontra-se evidenciada na remessa feita pelo corregedor de Elvas de dois indivíduos que se encontravam sob prisão. O general remeteu o assunto ao ministro, que os recusou: os homens não foram aceites porque se alegava que não se tratava de vadios, mas de criminosos, e, além do mais, um deles apresentava uma impossibilidade física (AHM, 1-17-52-06). Na Beira Baixa, em que foi repartido pelas Câmaras o recrutamento de 99 homens, em outubro, quase um ano após a ordem inicial, o processo ainda não se encontrava concluído (estavam apurados 92) e quatro Câmaras eram intimadas ao cumprimento sob risco de se lhes formar “causa” (AHM, 1-17-52-02). No Algarve, as dificuldades encontradas no recrutamento em Faro levaram à sua suspensão no início do mês de dezembro. (1-17-52-07-27). Parece comprovada a previsão de que com a passagem das tarefas para as Câmaras nada de essencial se modificou.

A viragem de 1823 e o fim do triénio liberal

A 28 de janeiro de 1823, o rei de França anunciou a próxima intervenção militar em Espanha, a pretexto das perturbações que tinham origem neste país. Em Espanha, reinava com efeito um clima de divisão interna e o rei Fernando VII encontrava-se, desde 1820, em oposição à vigência da Constituição de Cádis. A tónica posta numa incompatibilidade ideológica - e imagina-se também social - entre o liberalismo espanhol e a Restauração dos Bourbons em França permite ocultar o caldo de razões de Estado que fazem mover os governantes. O que motivava esta iniciativa não eram as ideias políticas - embora estas pudessem servir como um instrumento de propaganda - mas a reposição do estatuto de França como potência europeia que fora derrotada em 1815. Uma tal iniciativa apenas era possível porque obtivera o acordo das outras três potências da “Santa Aliança” durante o congresso de Verona, cujo acordo incluía, de facto, uma referência a Espanha e a Portugal. Fazendo esta intervenção, a França era reconhecidamente uma potência como as outras e a Espanha permaneceria, no âmbito de um jogo de tensão com o governo de Londres, como um espaço sob a sua tutela. Foi o próprio Chateaubriand que o explicitou (Chateaubriand, 1823). Mas a invasão que se designou pudicamente como “expedição” terá sido também uma ação que reforçou internamente a “ala direita” da Restauração bourbónica.

A notícia do discurso de Luís XVIII chegou às Cortes em 10 de fevereiro (DC, 10-2-1823, pp. 756-762) e Moura interrompeu os trabalhos para se iniciar o debate da preparação da defesa contra a ameaça francesa. Defendeu-se por isso a suspensão da saída prevista de soldados para o Brasil e criou-se uma comissão especial para apreciar as propostas. A preparação da guerra tinha três dimensões: a criação de um exército de campanha, a suspensão do habeas corpus (tal como estava prevista no artigo 211 da Constituição) e um financiamento extraordinário. O levantamento que se anunciou em Cortes foi o de um exército de 60 mil homens, uma força com uma dimensão sem precedentes em Portugal e que, para mais, se encontrava na direção oposta à dos desenvolvimentos recentes dos assuntos militares. À luz do objetivo de uma tão ampla mobilização, alguns faziam avaliações negativas do que acontecera nos últimos anos. Portugal, que teria tido um exército disciplinado e aguerrido - exclamava o deputado Barreto Feio, referindo-se ao final da Guerra Peninsular - tratara de se desfazer dele no menor tempo possível (DC, 19-2-23, p. 881). Ora, essa dissolução fora o que a “sociedade” desejara.

Mas em Cortes as dificuldades que uma tarefa de tal dimensão enfrentaria parecem ser ignoradas. Predominam os discursos de propaganda e de exaltação patriótica com as suas referências míticas, as da história antiga da Grécia e de Roma, as guerras dos portugueses na Índia e em África, ou ainda “do nosso primeiro Afonso e outros dos nossos reis”, segundo Serpa Pinto (DC, 20-2-23, p. 947).

O problema da motivação dos combatentes não era abordada. Apenas alguns levantavam a questão de ser impossível um tal recrutamento através do método em vigor, sendo preciso decretar a conscrição (ainda que com a possibilidade da substituição) e varrendo todos os privilégios. O deputado Galvão Palma era uma voz dissonante. Dizia ele que decretar o recrutamento de 60 mil homens era uma declaração de guerra à população, à agricultura, à indústria e finanças e faria envolver em pranto a nação, propondo que se decretasse apenas os 40 mil. Em 1810 os mobilizados em campanha tinham excedido um pouco este número e durante esses anos a Inglaterra dera 12 milhões de cruzados (DC, 1823, p. 950). Esta orientação de 1823 estava em dissonância com a que fora seguida anteriormente. A prudência que desde 1820 até então fora posta na condução dos temas militares, não tomando opções que pudessem suscitar o descontentamento popular, foi invertida.

Suspeitamos estar perante o uso político da ameaça que provém do inimigo, ou seja, de uma entidade que se pode com credibilidade apresentar a uma população como pondo em causa a própria existência dessa população. Gentillet, na sua sistematização dos preceitos maquiavélicos, incluía aquele em que se previa que o príncipe devia sempre alimentar um inimigo contra si, a fim de que, vindo este oprimi-lo, fosse o príncipe estimado como maior e temível (Gentillet, 1576, p. 419). Este uso era simétrico e fundava o poder de tipo ditatorial, como acontecera com o caso próximo de Napoleão em França, cuja autoridade interna se arquitetara através da difusão da imagem de um defensor capaz das ameaças externas.

O encarregado de negócios português em Paris comunicara ainda durante 1822 ao conde de Villèle, chefe do governo francês, a ansiedade que teria suscitado em Lisboa a colocação pela França da força militar nos Pirenéus e o conde respondera que nada justificava um tal sentimento de desconforto, já que a distância não permitia contemplar um tal efeito numa nação em cujas instituições não tinham desejo de interferir (Papers, 1823, p.172). A 30 de janeiro de 1823, Chateaubriand, ministro dos negócios estrangeiros, escreveu ao encarregado de negócios em Lisboa lembrando que este tinha vindo a ser continuamente incumbido de dar ao governo português a garantia de que nenhuma força francesa seria dirigida contra esse governo, reiterando que os franceses separavam as causas de Espanha e de Portugal, país contra o qual não tinha nenhuma queixa e com o qual não desejava em nada alterar essa relação. A 7 de março, o mesmo Chateaubriand afirmava que a declaração de guerra a Espanha não se destinava a sustentar teorias políticas, mas fazia-se porque a segurança e os interesses franceses estavam comprometidos. Não tendo a França a mesma posição face a Portugal, não via motivo plausível para que se renunciasse às relações de paz e amizade (Papers, 1823, p. 176). Parecia bem remota a possibilidade de a ação militar em Espanha ser desenvolvida até ao território português. O objetivo do governo da França da Restauração era a reposição da influência sobre Espanha e a consagração da sua condição de potência de primeira ordem. Tinha para tal o apoio dos “santos”, mas também a conivência do Reino Unido, mas não queria criar uma frente em Portugal.

Havia, para mais, um “inimigo interno”. Pato Moniz descreve-o como sendo composto por “alguns homens díscolos, perturbadores e mal-intencionados contra os quais o governo deve(ria) proceder” (DC, 1823, p. 891). Assinalava que não tinha sido necessário até então o uso da força. Com efeito, “em que país do mundo se fez uma grande revolução política e se criaram novas instituições (com) menos custos e com mais suavidade e brandura, exercendo menos o direito de represália e reprimindo mais os efeitos de vingança”. Assim, em dois anos da “política de regeneração” ainda não caíra “nem uma só vítima sacrificada nas arras da liberdade”. Mas afirmava ao mesmo tempo que a “força empregada a tempo e com moderação evita(va) grandes desastres”. Quem ignorava que os poucos processos que tinham sido feitos contra conspiradores estavam empatados e que entretanto havia chefes aristocratas que conspiravam? As doenças agudas não se curavam sem alguns remédios heroicos. Mas podiam os deputados estar seguros da fidelidade do “brioso exército”. Como era previsível, a aplicação da lei marcial deveria passar pela transferência forçada de indivíduos das suas terras para um local de exílio e esta orientação terá tido aplicação na passagem de homens de Trás-os-Montes para Sagres (AHM, 1-17-10-14-3). Era o padrão do poder excecional que dispunha dos indivíduos para neutralizar a sua ação política (ou mesmo apenas com base na simples suspeita) sem um julgamento. Desse poder, mas por períodos ilimitados de tempo e em ampla escala, se dará um muito amplo uso durante o período de governo miguelista entre 1829 e 1834. O deputado Bastos declarava, pelo contrário, que a suspensão das liberdades seria o meio mais oportuno para a perdição. O “curso da revolução de França” era relembrado. Muitas vezes se propôs a violação de artigos da Constituição para melhor os conservar e não “podia haver uma política mais absurda. Ela conduziu os franceses à escravidão e à anarquia. Fujamos de os imitar…”.

Entretanto, Pereira do Carmo, que defendia que se escolhesse a guerra contra a ignomínia, e que se devia fazer a preparação da guerra, assinalava que os que faziam planos de campanha podiam talvez honrar os seus talentos, mas não faziam elogio à discrição (DC, 1823, p. 897). O período de vigência da Constituição de 1822 aproximava-se do final.

Conclusão

Tudo aponta para que, após os anos da guerra e um dececionante período de paz em que se mantivera uma pressão militar que decorria da política americana do gabinete do rei no Rio de Janeiro, houvesse um desejo geral de desvanecimento da preocupação com os assuntos militares. Mas o exército colocara-se no centro da mudança que corporizara o descontentamento pela ausência do rei e a autonomização do Brasil. Desapareciam os capitães mores, muitas vezes detestados, mas não aparecia um sistema alternativo de recrutamento e a aversão ao serviço militar continuava a manifestar-se plenamente. De facto, do ponto de vista da economia moral, nada se alterara. A reorganização miliciana do exército era apenas um tema literário. A mobilização prevista em 1823 contra uma ameaça longínqua dos exércitos da França contrariava a orientação de desvanecimento da pressão bélica e fazia com que se encerrasse a primeira experiência liberal.

 

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Recebido a 07-05-2019. Aceite para publicação a 11-06-2020.

 

[1] O motim contra Esquilache em Espanha pode ser visto por alguns, mas com espanto, como uma possível exceção a esta “lei” (Lopez García, 2006, pp.130-131).

[2] Por exemplo, os n.os 83, 93, 124, 143, de 10 e 22 de abril, 28 de maio e 20 de junho de 1822.

[3] Provavelmente a atual freguesia do concelho de Redondo.

[4] Provavelmente o local no atual concelho do Alandroal.

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