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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.234 Lisboa Mar. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020234.11 

RECENSÃO

Marchi, R.

The portuguese far right: between late authoritarianism and democracy, New York, Routledge, 2018, 200 pp.

ISBN 9781138218987

Gabriel Fernandes Rocha Guimarães1
https://orcid.org/0000-0002-5630-6557

1 Centro de Estudos Internacionais, ISCTE-IUL. Avenida das Forças Armadas, sala 2W06 - 1649-026 Lisboa, Portugal. gabriel.guimaraes@iscte-iul.pt


 

O livro The Portuguese Farright: between Late Authoritarianism and Democracy, de Riccardo Marchi, é de particular importância pelo grande detalhe com que aborda a direita em Portugal em perspetiva histórica, um país ao qual pouca atenção tem sido dada no que diz respeito à manifestação da direita política. Trata-se de um trabalho fundamental para a análise da direita portuguesa dos dias de hoje, tendo em vista os seus traços particulares, que se mantêm na atual extrema direita lusa.

Explicitando a relação entre discursos e redes de intelectuais, a circulação de jornais e a formação de movimentos e partidos políticos, o livro faz uma recapitulação abrangente do desenvolvimento da direita em Portugal, desde a sustentação teórico-ideológica do Estado Novo salazarista, passando pelas fragmentadas expressões da extrema direita durante a Guerra Africana e o regime de Marcello Caetano (1968-1974), pelos movimentos de direita que ofereciam resistência ao governo durante o Período Revolucionário em Curso (PREC) até a reformulação da direita, também bastante fragmentada, durante o período da redemocratização.

Em relação às bases intelectuais do Salazarismo, há uma rica descrição das inclinações ideológicas dos seus intelectuais, onde, apesar da presença de elementos como Alfredo Pimenta, simpatizante do fascismo durante a guerra, destacam-se as peculiaridades da doutrina salazarista e a sua ênfase no homem comum que vive habitualmente, em divergência com a doutrina fascista-mussolinista do “viver perigosamente”. Desta forma, grupos voltados para as doutrinas mais próximas do fascismo, ou de qualquer forma de direita que eventualmente saísse das linhas do governo - assim como as organizações de esquerda - também eram monitorizados pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).

Esses grupos hiper-radicais de direita existiam de forma bastante fragmentada e efémera. Alguns criavam contactos com organizações neofascistas do resto do continente europeu, outros acreditavam que o regime tinha perdido o seu legado civilizador de além-mar, tornando-se apenas mais um regime colonial como qualquer outro, ou, mesmo, acusavam-no de ter dado muito espaço de manobra para grupos pró-independência, gestando o ambiente para a explosão da Guerra Africana.

A atuação de tais grupos ocorria, basicamente, em âmbito universitário, com o objetivo de conseguir espaço em órgãos estudantis, supostamente controlados pelas organizações comunistas. Vários jornais de existência efémera circularam nas universidades, como o Combate e a Acção. Apesar de pequenos, eles conseguiram monopolizar a atividade da direita dentro das universidades, colocando-se na linha da frente, na altura dos choques com organizações de esquerda.

Um exemplo é o Jovem Portugal, que defendia uma retomada do passado mítico português, da sua expansão ultramarina, e a conquista dos territórios do além-mar, lançando vários jornais de curta duração, como os periódicos Jovem Portugal, Ágora, Ofensiva, Ataque, Ecos Nacionalistas e Renovação. O Jovem Portugal colocava-se como anticapitalista e anticomunista, almejava o retomar do Império Eurafricano como uma empreitada civilizadora, e seu jornal Ataque demonstrava sinais de antissemitismo, ao associar a ONU a organizações sionistas.

O Jovem Portugal incorporou a cruz céltica no seu simbolismo, o que gerou conflitos dentro da organização, pois tratava-se de um emblema dos grupos neo-fascistas europeus, porém trazido para dentro de um grupo que defendia o projeto civilizador dos portugueses em perspetiva transcontinental e multirracial.

O livro mostra como, durante a guerra colonial, o governo de Marcello Caetano e a interpretação daquilo que poderia ser o declínio do Estado Novo, tiveram impacto na reformulação da extrema direita portuguesa, pois aprofundaram-se as discussões de qual seria o futuro do Império Português naquele momento.Vários novos grupos surgiram, como o católico tradicionalista Centro de Estudos Sociais Vector (CESV), o grupo do jornal Política, fundado por Jaime Nogueira Pinto - que se tornaria uma importante figura intelectual da direita portuguesa - a Comissão Eleitoral Monárquica, o Círculo de Estudos Ultramarinos, o Movimento Nacionalista do Ensino Secundário (MN) e a rede de organizações encabeçada pela Cooperativa Livreira Cidadela.

Este último, talvez o mais proeminente grupo da extrema direita portuguesa durante o Marcellismo, foi fundado em 1970, em Coimbra, dedicando-se a prover certos serviços a estudantes, como acesso a livros académicos e a material escolar, e financiamento de atividades políticas e culturais aos nacionalistas radicais. A Cooperativa inspirava-se nos jornais oficiais do neo-fascista Movimento Sociale Italiano, e em autores como Maurice Bardéche, Saint-Loupe Van Solomon, o que mostra a sua proximidade com a extrema direita do continente europeu. Apesar de ter um paneuropeista étnico como Saint-Loup no seu repertório de leituras, a Cidadela mantinha-se apegada ao mito imperial eurafricano, chegando a propor a transferência da capital do Império Português de Lisboa para Luanda.

Já durante a Revolução dos Cravos e a instauração do PREC (1974-1975), boa parte da direita portuguesa foi bastante sufocada, segundo Marchi, verificando-se que muitos dos seus membros foram presos ou foram forçados a deixar o país. Nessa altura, ela organizava-se em função de dois objetivos principais: manter a presença portuguesa em África numa via diferente daquela do integracionismo estadonovista, e opor-se à radicalização da esquerda durante o processo revolucionário. Nestes termos, pode-se destacar o Exército de Libertação Português e o Movimento Democrático pela Libertação de Portugal, formados por portugueses retornados de África, com experiência em técnica de guerrilha, que faziam atentados contra os partidos de esquerda mais radicalizados.

Após o PREC, a extrema direita portuguesa tenta rearticular-se em diversos níveis, tanto rumo à política convencional, por meio da organização de partidos, como através de movimentos de rua e, ainda, pela utilização da chamada metapolítica. A expressão mais imediata junto à redemocratização é a de grupos neomonarquistas e católicos, que mantém a nostalgia do império ultramarino, como o Nova Monarquia, que posteriormente se tornou o Movimento Popular Nova Monarquia. A proposta de unificar Portugal territorialmente numa confederação com Cabo Verde é, talvez, a grande manifestação de recuperação de alguns aspetos do estadonovismo salazarista, no que se refere ao mito do Império no campo da extrema direita que se forma no período da redemocratização.

Houve aproximação da Nova Monarquia com grupos de extrema direita europeia, assim como com figuras ligadas a ela, como o francês Jean Marie LePen e o espanhol Blas Piñar. Porém, a tentativa de consolidar laços entre uma organização defensora dos mitos de um patriotismo imperial multirracial com uma extrema direita europeia voltada para europeus nativos não obteve sucesso. Também na arena eleitoral, o Nova Monarquia teve uma performance muito pouco expressiva, mantendo-se como o mais proeminente agrupamento de um conjunto de pequenos grupos que se formavam e se dissolviam regularmente.

Observando esses pequenos grupos, Marchi analisa o notório Movimento Ação Nacional, organização representante do movimento skinhead europeu, composta por adolescentes e homens jovens dos bairros de classe trabalhadora das cidades de Lisboa e Porto. O que chama a atenção no MAN é que ele ganha atenção justamente pelos confrontos físicos com outros adolescentes e jovens de origem africana dessas áreas urbanas, o que o afasta da tradição de um país em que a direita se volta para um mito imperial transoceânico e para além da Europa.

Seguindo a onda da nova extrema direita nativista que começa a ganhar algum espaço no continente, entra em cena o Partido Nacional Renovador, com uma retórica anti-integração europeia em termos restritamente mercadológicos. Também crítico da imigração não-europeia, o PNR, assim como o MAN, representam os setores da direita radical portuguesa que se distanciam do projeto imperial e do mito da missão civilizadora em cenários multirraciais e transcontinentais. Entretanto, o PNR também não conseguiu obter os sucessos eleitorais de alguns de seus congéneres no restante continente, minguando dentro do sistema partidário português.

Essa oscilação, averiguada por Marchi, entre a vocação imperial luso-tropicalista dos portugueses e o olhar rumo à Europa continental, desde o Jovem Portugal e o seu mito imperial articulado com símbolos célticos, passando pela Cidadela e pela Nova Monarquia, mirando simultaneamente o império multirracial de além-mar e a direita radical europeia até ao surgimento do PNR, é uma marca da extrema direita portuguesa, que se mostra como um dos seus traços mais particulares. A sua aguda fragmentação é outra importante faceta dessa marca.

Se analisarmos o campo mais radicalizado da direita portuguesa nos dias de hoje, com grupos como o movimento de conferencistas e intelectuais Nova Portugalidade, que retoma o projeto de confederação transcontinental do Nova Monarquia e os pequenos movimentos Escudo Identitário e Portugueses Primeiro, que têm um viés mais etnonacionalista e aparentemente seguem a linha dos movimentos identitários de direita europeus. Pode-se acrescentar o recém extinto Nova Ordem Social, grupúsculo explicitamente neonazi que mantinha ainda viva a cena skinhead dos anos 1990. Esse conjunto de pequenos movimentos e partidos mantém tanto a oscilação entre o projeto luso-tropicalista e o projeto europeu nativista, como o seu caráter fragmentado e multifacetado, traços que marcaram a extrema direita portuguesa e se mantiveram constantes, como analisa em detalhe este livro de Riccardo Marchi, fundamental para compreender a far right no contexto português nos dias de hoje.

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