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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.234 Lisboa mar. 2020

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2020234.04 

ARTIGOS

A lei da família em Marrocos: reflexões em torno de uma associação de ajuda a mulheres em situação difícil

Moroccan family law: Reflections from a Women’s Organization

Raquel Carvalheira1
https://orcid.org/0000-0001-8193-8057

1Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Universidade Nova de Lisboa. Edifício ID, NOVA FCSH, Av. Berna, 26, sala 3.09 - 1069-061 Lisboa, Portugal. raquelcarvalheira@gmail.com


 

RESUMO

A Lei da Família em Marrocos: reflexões em torno de uma associação de ajuda a mulheres em situação difícil. Uma associação de ajuda a mulheres em situação difícil na cidade de Essaouira, em Marrocos, é o ponto de partida para discutir o debate público em torno da Lei da Família e os contornos da sua aplicação neste país. O objetivo é demonstrar que qualquer debate sobre a emancipação feminina em contextos muçulmanos não se deve circunscrever apenas a considerações sobre as prescrições religiosas e culturais supostamente misóginas, mas assentar num enquadramento político, económico e social que é orientador dos comportamentos e das possibilidades de ação das pessoas. Por esta razão, este artigo foca-se no trabalho de uma associação cujas beneficiárias são mulheres das classes populares marroquinas para refletir sobre a implementação da Lei da Família e sobre as relações de género e as continuadas relações de dependência face aos homens.

Palavras-chave: Lei da família; género; Marrocos; Islão.


 

ABSTRACT

Moroccan Family Law: Reflections from a Women’s Organization. An association that helps women in difficult situation in Essaouira, in Morocco is the starting point to discuss the public debates around Family Law and the contours of its application in that country. The aim of this article is to demonstrate that any debate on women’s emancipation on Muslim realities should not be confined to considerations about the religious and cultural prescriptions and should, instead, focus on the political, economic, and social realities. This article addresses the work of an association and its beneficiaries, mostly women from the Moroccan popular background, to reflect on the implementation of Family law and on gender issues, especially women’s dependence on and subjection to men.

Keywords: Family Law; gender; Morocco; Islam.


 

Introdução

“- Salam Aleikum. O cherif está?

- Aleikum Salam. Está, sente-se aqui e espere um pouco”.

É assim o diálogo inicial recorrente entre as mulheres que iam à Associação Feminina de Beneficência à procura do advogado, que chamavam de cherif, e as funcionárias da mesma. Às segundas e quartas-feiras, por volta das cinco da tarde, esta breve conversa ouvia-se repetidamente durante o meu trabalho de campo[1]; as mulheres iam-se juntando na sala de entrada da associação, à espera da sua vez. No interior do apartamento que serve de sede à mesma, uma sala de aula transformava-se num escritório improvisado, o advogado recebia as mulheres. Aqui vinham depois de terem contactado primeiramente com o Centro de Escuta da associação.

O Centro de Escuta é um gabinete onde uma funcionária recebe as mulheres que precisavam de ajuda devido à violência de que são vítimas, sobretudo por parte dos maridos. Esta funcionária ouve a história das mulheres, tenta obter informações sobre o que pretendem fazer e encaminhá-las em função disso. Foi através dos dossiês que são criados pela funcionária do Centro de Escuta que fiquei a conhecer as histórias de muitas mulheres, as suas características socioeconómicas, que tipo de ajuda procuram, assim como toda a informação jurídica relativamente ao seu caso. A maior parte das mulheres que chegavam à associação tinham contextos conjugais e familiares difíceis e procuravam sobretudo um apoio legal para duas ações: a prossecução dos seus divórcios ou o pedido de pensão alimentar (nafaqa).[2]

Este artigo analisa o papel do associativismo na promoção dos direitos das mulheres, através da apresentação de um estudo de caso conduzido numa associação em Essaouira, uma cidade de média dimensão situada na costa Atlântica de Marrocos. Em 2004 houve uma reforma da Lei da Família (ar. Mudawwana Al-usra, o Código da Família), considerada por muitos um passo importante na promoção da igualdade de género em Marrocos. Esta reforma veio garantir mais direitos às mulheres, sobretudo no âmbito do casamento e do divórcio, contribuindo para diminuir a sua fragilidade legal.

Esta reforma foi muito discutida do ponto de vista da sua importância para a sociedade marroquina.[3] O debate que gerou anos antes da sua votação no parlamento contribuiu, por exemplo, para uma discussão ampla e aberta sobre o papel da família na sociedade marroquina, uma situação que Ennaji e Sadiqi (2006) descrevem como um momento excecional de democratização do espaço público. No entanto, apesar destas alterações legais, as desigualdades de género são gritantes em Marrocos, sobretudo visíveis no acesso ao trabalho (Alami, 2006), à educação (}van-Elliot, 2015) e aos cuidados de saúde (Zaouaq, 2017). O papel das associações na promoção da igualdade de género tem sido estudado por ser parte fundamental desta questão (ver, por exemplo, Newcomb 2009 e Berriane 2014). Estas associações são espaços ambíguos do ponto de vista da promoção das mulheres, sobretudo quando as beneficiárias são oriundas de classes sociais baixas, com poucos recursos económicos e educacionais e as funcionárias são mulheres escolarizadas pertencentes a uma classe média. Bargach (2013) e Newcomb (2009) descrevem, por exemplo, como as clivagens sociais entre beneficiárias e funcionárias se manifestam na gestão das questões da violência de género. O discurso da emancipação veiculado por muitas funcionárias é frequentemente distante da experiência de vida das beneficiárias, que tentam solucionar problemas práticos do seu quotidiano, o qual não se articula necessariamente com noções de igualdade e de cidadania.

Na associação, em Essaouira, estas clivagens sociais entre beneficiárias e funcionárias também existem. Contudo, esta associação desempenha um papel fundamental no acesso destas mulheres aos serviços gratuitos de um advogado e este elemento não é despiciente. Perante um Estado que não consegue proteger os mais vulneráveis, a associação sobre a qual este artigo se debruça permite a muitas mulheres sem recursos aceder aos mundos da burocracia e da administração pública, que frequentemente lhes estão vedados porque não sabem ler, escrever ou porque não têm dinheiro para pagar a um advogado que conheça os seus direitos e que as defenda.

Mas antes de abordar esta questão, é necessário explicitar a importância da reforma da Lei da Família e como se relaciona com a questão dos direitos das mulheres em Marrocos.

O rei cool

Quando subiu ao trono em 1999, Mohammed VI queria mostrar uma faceta moderna, democrática e favorável à questão feminina, o que o levou a convidar mulheres para a sua entronização, feito nunca antes visto. A revista Time publica um número onde o monarca surge na capa, vestido de fato e gravata, com o título “The cool King: Mohammed VI shakes up Morocco”. Figura incontornável do poder político marroquino, Mohammed VI gere habilmente a sua imagem e transforma o debate da Lei da Família numa situação privilegiada para a consolidação do seu poder político, porque através dele se legitima como árbitro conciliador da sociedade marroquina. Se a política do seu pai foi altamente repressora e silenciadora da oposição, Mohammed VI afirma o seu poder não só como Comandante dos Crentes (ar. Amīr al-Mumīnīn), conceito que remete para o seu papel de chefia da umma marroquina, mas também como mediador indispensável entre as forças mais conservadoras da sociedade, sobretudo representadas pelos líderes e sábios religiosos e as forças modernizadoras, defensoras de uma igualdade legal entre homens e mulheres.

Os movimentos feministas, politicamente representados em Marrocos pela União Socialistas e Forças Populares (o Partido Socialista marroquino) e por algumas intelectuais como Fatima Mernissi ou Aicha Belarbi (ambas sociólogas e escritoras), adotaram a modernidade e a democracia como referências na luta pela reforma da Lei. O Islão foi utilizado para legitimar estes valores e contestaram o monopólio dos sábios religiosos na interpretação dos textos sagrados.[4] A aproximação entre o Islão e a modernidade é cumprida, precisamente, através de conceitos como a igualdade, a justiça e a dignidade que, de acordo com as perspetivas de algumas feministas, podem ser alcançados através da aplicação de uma lei moderna, que garanta a igualdade de direitos. Neste sentido, argumentaram que o Islão era, no seu aparecimento, uma religião favorável à emancipação das mulheres, mas foi desviado em benefício dos interesses económicos e políticos dos Estados que se sucederam no mundo árabe-muçulmano (Ayadi, 2002). Os grupos feministas defenderam desde o início a inclusão de Marrocos nos acordos internacionais contra a discriminação da mulher e a assinatura das convenções dos direitos humanos. Por outro lado, os movimentos mais conservadores afirmavam que as leis internacionais não se podem sobrepor à “lei muçulmana”, tida como suprema e universal por excelência. Estes grupos defendiam a complementaridade de papéis entre homem e mulher no casamento e na família e consideravam que a igualdade absoluta é oposta às prescrições religiosas. Diferentes conceções do que é o Islão foram e ainda são reivindicadas por diversos grupos, o que demonstra a heterogeneidade das narrativas religiosas, facilmente escamoteadas por discursos islamófobos, que têm ganho visibilidade um pouco por todo o mundo (Cardeira da Silva, 2006).

Em 2001, Mohammed VI anunciou a criação de uma comissão consultiva para reformar a Lei da Família (Ramírez, 2007). Esta comissão é constituída por três mulheres e 13 homens, por ulema tradicionalistas, mas também mais liberais e analisa as disposições de alteração da Lei da Família. Em 2003, a Comissão chega às suas conclusões e entrega o seu relatório ao rei. No mesmo ano, aquando da abertura do ano parlamentar em Rabat, Mohammed VI apresenta a reforma da Lei da Família com o então presidente francês Jacques Chirac. Este facto revela a importância da reforma da Lei num contexto de proximidade ideológica com a França e com a Europa, cujos governos tendem a sobrevalorizar a condição de submissão da mulher em contextos muçulmanos. No entanto, Mohammed VI percebeu que tinha de conservar o referencial islâmico, na medida em que legitima o seu poder religioso (e político) e aproveita a ocasião para aproximar os valores do Islão daqueles que representam ideologicamente a Europa: a tolerância, a justiça, a igualdade e a honra do Homem (que remete para os direitos humanos). Ao defender um Islão tolerante, Mohammed VI afasta-se das posições mais radicais e estabelece esse elo de ligação com a Europa, com quem tem relações económicas e políticas privilegiadas.

Algumas das reivindicações feministas foram satisfeitas, como o enquadramento legal do divórcio, a repartição das responsabilidades do casal entre marido e mulher, a supressão da tutela matrimonial para a mulher maior de idade. No entanto, outras não foram, como a poligamia que se manteve possível (mediante determinadas condições[5]) e a herança, ainda diferenciada.[6] Muito embora muitas feministas não tenham ficado satisfeitas com o resultado, principalmente no que se refere à poligamia e à questão da herança, as mudanças foram vistas como um passo em frente para uma maior igualdade entre homens e mulheres. Veremos a seguir e com mais detalhe como a Lei da Família é tornada prática.

A associação

Quando comparado com outros países da região, Marrocos é apresentado, nos meios de comunicação e em relatórios de agências internacionais, como um dos mais favoráveis à igualdade de géneros. Em termos legais, existem sistemas muito diversificados nos países da região (do Norte de África e do Médio Oriente), baseados em diferentes escolas de jurisprudência islâmica (Welchman, 2007). As alterações legais têm sido um dos campos onde o ativismo pela igualdade de género se tem expressado e, nesse contexto, Marrocos não é exceção.

A conjuntura política em Marrocos permitiu mudanças legais significativas que responderam também a mudanças nas estruturas e modos de organização familiar e nas relações de género. Também Marrocos vive aquilo que normalmente é descrito como uma transição demográfica. As estatísticas oficiais apontam para a redução do número de filhos por agregado doméstico, o recuo da idade do primeiro casamento, o aumento de estruturas domésticas nuclearizadas por oposição a agregados domésticos multigeracionais e complexos. A migração campo-cidade, a emigração, a integração dos marroquinos e sobretudo das marroquinas numa economia de tipo capitalista, baseada na mão-de-obra assalariada, trouxeram transformações sociais relevantes nas relações familiares e domésticas e entre géneros (Aboumalek, 1994; Chekroun, 1996; Bargach, 2006). Apesar do crescimento de uma classe média (Cohen, 2004) em meio urbano e da diversificação de fontes de rendimentos para muitos marroquinos e marroquinas, a realidade é que Marrocos continua a ser um país marcado por grandes desigualdades sociais e económicas. As taxas de desemprego atingem, em 2012[7], 8,7% dos homens e 9,9% das mulheres e são francamente mais altas entre os diplomados do que entre os analfabetos (18,1% nos primeiros e 1,9% nos segundos).[8] Estes dados são ainda mais relevantes se tomarmos em consideração que as taxas de iliteracia são altas. De acordo com o Recenseamento Geral da População de 2014[9], esta afeta 32% da população (por oposição aos 43% em 2004[10]), e sobretudo as mulheres (42%, por oposição aos 22% entre os homens).

A realidade das mulheres que procuram a Associação Feminina de Beneficência em Essaouira espelha bem e etnograficamente aquilo que as estatísticas apontam. Como refere Newcomb (2009) no seu livro Women of Fez: Ambiguities of Urban Life in Morocco, estas associações apoiam sobretudo mulheres oriundas de franjas sociais desfavorecidas, cujos capitais sociais e económicos não permitem solucionar os seus problemas (domésticos e familiares) sem o apoio de este tipo de estruturas, que muitas vezes são responsáveis pela replicação de preconceitos sociais e de classe. Ao contrário de muitas mulheres da classe média e média-alta, cujos problemas conjugais e económicos podem ser solucionados através das redes de parentesco e solidariedade familiar - muito importantes no contexto marroquino, mas não só aí - as mulheres analfabetas e economicamente dependentes encontram-se muitas vezes em situações de grande vulnerabilidade porque o Estado não assegura um apoio regular e condigno.

Criada em 1998, a Associação Feminina de Beneficência surgiu da vontade da sua presidente que, vinda de Al Jadida, uma outra cidade marroquina, considerou que em Essaouria existia pouca atividade social e de benevolência. Várias pessoas assumiram a presidência da associação, mas nos últimos anos tem sido ela o seu rosto. Inicialmente eram ministrados cursos de alfabetização para mulheres carenciadas e oriundas das zonas rurais. Depois dos cursos de alfabetização surgiram aulas de costura e de tapeçaria, com o intuito de vender os produtos que daí resultavam e garantir algum rendimento económico às mulheres que se encontravam em situação de dificuldade. Mas como não eram atividades lucrativas para as mulheres beneficiárias (na medida em que não podiam usufruir de um rendimento regular), a presidente decidiu iniciar um ateliê de pastelaria que tinha mais sucesso económico e que ainda hoje dá os seus frutos. Em poucos anos, o ateliê de pastelaria (projeto apoiado por uma ONG francesa) passou a fornecer os principais hotéis da cidade, o que levou à criação de uma cooperativa feminina, que oferece serviços de catering.[11] Também criaram um “restaurante pedagógico” numa zona central mas desprestigiada da cidade, o mellah (antigo bairro judeu), que abre especificamente para grupos que encomendam refeições. Estes desenvolvimentos têm sido centrais para um grupo de mulheres da associação, que também beneficiaram do apoio jurídico: mulheres divorciadas, com filhos e que encontraram assim uma forma de seguir com as suas vidas.

O Centro de Escuta surgiu em 2008, fruto da constatação de que não existia em Essaouira uma forma de ouvir e ajudar as mulheres em situação difícil (conceito que aparece no folheto de apresentação da associação e que pretende remeter para vários tipos de situação de vulnerabilidade, e não apenas de violência doméstica). A funcionária contratada para o efeito ouve o que as mulheres têm para dizer; preenche um formulário onde anota toda a história de violência ou de dificuldade da mulher. De seguida, cria um dossiê onde guarda toda a documentação da história jurídica (e, por vezes, clínica) de cada beneficiária. O próximo passo é, normalmente, da responsabilidade do advogado. Todos os procedimentos jurídicos iniciados no espaço da associação são depois levados por este ao tribunal de Essaouira, por vezes a outros tribunais, se o local de residência da mulher é noutra região de Marrocos. Os casos seguem o seu curso. Quando necessário o advogado adiciona documentos entretanto requeridos pelo tribunal, paga os requerimentos e certifica-se dos dias em que há audiências ou depoimentos.

Um dos principais atrativos da associação no contexto de Essaouira é, precisamente, o facto de os serviços do advogado serem gratuitos. Não existe uma outra instituição na cidade que o faça. As beneficiárias deste serviço são amiúde mulheres de um estrato social e economicamente vulnerável, sem qualquer possibilidade de pagar um acompanhamento jurídico do princípio até ao fim. Muitas não sabem ler nem escrever e por isso não teriam acesso, nem saberiam descodificar os trâmites burocráticos dos tribunais. O seu sucesso depende, frequentemente, de terem um advogado que aceite conduzir o seu caso.

De acordo com as informações disponibilizadas pela presidente, funcionária e advogado da associação, muitos homens não assumem as responsabilidades que a lei lhes exige. É, precisamente, no auge dos conflitos conjugais que a pensão alimentar (nafaqa) se torna num dos principais procedimentos jurídicos iniciados pelas mulheres. Perante a fuga, o abandono e a violência, as mulheres recorrem à associação para reivindicar o principal direito que lhes é garantido por lei no quadro de uma unidade conjugal: o direito de serem sustentadas. Desta forma, acabam por virar contra o marido a condição que justifica a sua prioridade nas decisões conjugais e expõem perante os tribunais a sua inadequação enquanto maridos, uma situação que também foi descrita por Ziba Mir-(Hosseini 2000 [1993]) no trabalho que realizou nos tribunais de Rabat e Salé.

A constituição de uma nova unidade familiar em Marrocos é muitas vezes concebida como uma divisão de responsabilidades e direitos que tem por base diferenças de género: a responsabilidade principal é assumida pelo homem, na medida em que deverá ser ele a dar sustento, isto é, deverá garantir as condições para que o novo agregado familiar se concretize: a casa, a alimentação, o vestuário, tanto da mulher como dos filhos. A esposa surge como responsável da casa e cuidadora dos filhos. O meu trabalho de campo demonstrou que este tipo de pressupostos (e expectativas) é transversal a várias classes sociais e níveis educacionais. Encontrei mulheres de várias origens sociais, algumas com profissões estáveis que decidiram abdicar da sua vida profissional para se dedicarem exclusivamente à família e viam esta opção como a mais correta e moralmente aceite. Também encontrei mulheres que não abdicaram das suas vidas profissionais quando se casaram e consideravam importante terem alguma autonomia financeira (Carvalheira, 2016, que regista como estes diferentes discursos podem ser encontrados mesmo entre irmãs).

As conceções sobre o género no casamento estão a mudar, como o demonstra o inquérito conduzido em 2014 pelo governo marroquino sobre os 10 anos de aplicação do Código da Família (Royaume du Maroc, 2016). Mais de metade da população inquirida considera que os homens e as mulheres devem ter os mesmos direitos e os mesmos deveres na família (54,9%), mas não deixa de ser significativo que 34,8% tenha respondido que não devem ter. Neste mesmo inquérito, perante a pergunta sobre o que significa ambos os esposos serem responsáveis pela família (uma alteração garantida em 2004 por oposição à versão anterior que colocava o homem como chefe da família), 68,8% da população inquirida considerou que ambos são responsáveis e 24% considera que cada cônjuge é responsável pelo seu domínio, segundo a divisão tradicional do trabalho.

Como se pode constatar, as perceções parecem colocar maior ênfase na partilha de responsabilidades. No entanto, ao nível da vida quotidiana, muitas mulheres e homens esperam aceder a um estatuto social que se manifesta por determinadas escolhas matrimoniais. Muitos entendem o casamento como a união de um homem que é provedor e de uma mulher que é cuidadora/doméstica. Este ideal de família é defendido pelos setores mais conservadores da sociedade marroquina, que consideram ser fiel ao espírito do Islão e que é, simultaneamente, um sinal de mobilidade social ascendente. Num contexto marcado por grandes desigualdades económicas, onde a economia é marcadamente informal e o trabalho é precário, homens e mulheres esperam corresponder a um modelo que mostra, sobretudo, a capacidade económica do homem em assegurar o sustento.

Tal como aconteceu noutros países, Marrocos sofreu, ao longo do século XX, uma rápida urbanização, que alterou rapidamente os modos e padrões de vida. De acordo com as estatísticas nacionais, nos anos 1960 apenas 29,2% da população vivia nas cidades. No último censo, de 2014, a percentagem é de 50,3%, ou seja, metade da população marroquina encontra-se agora nos centros urbanos.[12] Neste quadro, muitas são as mulheres marroquinas que saíram de casa como trabalhadoras assalariadas. Uma parte significativa da indústria têxtil marroquina, por exemplo, é assegurada por mulheres. Em 2012, constituem 49,2% dos trabalhadores neste setor (Royaume du Maroc, 2013). No entanto, devido à falta de formação e ao abandono precoce da escola, mais comum entre as raparigas[13], as mulheres ocupam muitas vezes trabalhos menos especializados do que os homens.

Entre as classes populares e médias baixas, o trabalho é frequentemente informal, esporádico, extremamente mal pago e, para as mulheres, nem sempre em locais vistos como apropriados (ou seja, trabalhos que envolvem exposição pública e contacto com homens estranhos à família). Como refere Ennaji: “Uma parte considerável da mão-de-obra feminina é iletrada e ocupa empregos não especializados ou semiespecializados. Consequentemente, uma taxa de empregabilidade mais alta entre as mulheres não significa necessariamente um maior grau de desenvolvimento económico das mesmas” (Ennaji, 201, p. 205, tradução livre). No caso das mulheres mais pobres como as da associação, é frequente que, quando os maridos não conseguem assumir a responsabilidade do sustento, sejam elas a fazê-lo. A análise dos dossiês de 47 mulheres que foram à associação em 2011 mostra que 35 referem não ter qualquer profissão. Entre as mulheres menos instruídas, o trabalho não representa, à partida, uma forma de emancipação ou de melhor qualidade de vida. É antes do mais uma necessidade que se impõe quando os maridos não conseguem trazer o suficiente para casa, ou finalmente, quando se divorciam.

Em muitos casos, a violência e o abandono são respostas dos maridos ao desencontro entre aquilo que eles concebem como sendo o modelo socialmente valorizado e a sua vivência real. Em Essaouira, o contexto que serve aqui de exemplo, é praticamente impossível viver apenas com o rendimento de uma única pessoa. A indústria é quase inexistente, o porto de pesca é rudimentar e o turismo, uma actividade económica bastante importante para a cidade, é sujeita a grandes oscilações anuais do número de visitantes. A região agrícola envolvente sofreu duas décadas de grande seca e muitas famílias migraram para a cidade à procura de uma vida melhor, que nem sempre encontraram. Nestas circunstâncias, os maridos sentem-se incapazes de garantir aquilo que o casamento implica. A violência, o abandono e a negligência familiar são em parte a manifestação deste desencontro.

As estatísticas da associação demonstram que, no ano de 2011, 82 mulheres foram atendidas pela primeira vez no Centro de Escuta e 117 foram reincidentes. Estas últimas são mulheres que voltam ao Centro para dar seguimento a processos jurídicos já iniciados anteriormente - porque estes prosseguem ou porque elas os tinham abandonado da primeira vez. Grande parte das mulheres são casadas, analfabetas, correspondendo a faixa etária mais representativa às idades entre os 26 e 35 anos. O Centro de Escuta da associação tem dois tipos de situações genéricas que não são, em todos os casos, exclusivas: umas de caráter urgente, de mulheres que vão à associação em situações-limite, tendo fugido de casa após terem sido vítimas de violência, ou ainda de caráter menos urgente, como as que se queixam de abandono por parte dos maridos ou do não cumprimento dos seus deveres perante a família conjugal. No primeiro caso, tenta-se arranjar um local para a mulher ficar, caso esta não tenha para onde ir. Existem poucos abrigos em Marrocos para estas mulheres e estão sobretudo localizados nas principais cidades, como Casablanca e Rabat. No entanto, em março de 2011 entrou em funcionamento um Centro em Essaouira, uma cidade de 77 mil habitantes, financiado por um projeto caritativo do Rei que tem por objetivo ajudar mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. Foi a primeira estrutura do género em Essaouira a garantir alojamento a mulheres que se encontrem em situação de grande vulnerabilidade. Assim, algumas das mulheres acabam por ser encaminhadas para este centro. No segundo caso, mais frequente entre as beneficiárias da associação, as mulheres estão na sua própria casa ou de familiares, procurando sobretudo apoio jurídico.

Atualmente, muitas mulheres, analfabetas e sem recursos económicos, sabem que existe uma lei que as pode proteger. Muitas beneficiárias souberam da existência da associação através do “boca-a-boca”. As extensas redes de vizinhança e amizade, sobretudo em cidades pequenas, propiciam a circulação de histórias, o que mostra o impacto que estas associações podem ter ao nível local, num contexto de ineficácia do Estado. A Mudawwana tende a reproduzir um modelo de família patriarcal e agnático mas garante, dentro dessa lógica, certos direitos às mulheres, habilmente manobrados pelos advogados destas associações. O direito à pensão alimentar é, para as mulheres de parcos recursos económicos, abandonadas pelos maridos, uma das formas de pressioná-los, principalmente quando não existem provas de outro tipo de violência. O advogado apresenta o pedido no tribunal e uma ação judicial é iniciada. A mulher tem o direito de pedir o divórcio e de ser compensada (monetariamente) caso o marido se recuse a pagar a pensão alimentar. A punição sobre os homens, garantida pelo artigo n.º 480 do Código Penal Marroquino, não é, no entanto, sempre exercida.

Estas associações em Marrocos contribuem para que outro tipo de poderes, mais institucionais, surjam e influenciem as relações conjugais, principalmente das camadas mais pobres da sociedade. Apesar de não ser sempre operante, a introdução da legalidade na vida de muitas mulheres revela como a natureza do poder se está a alterar. Mais informadas sobre os seus direitos e sobre a existência de um Estado que (oficialmente) as protege, as mulheres acabam por utilizar as associações como um intermediário para contrariar a ausência de poder que têm em muitas esferas da sua vida.

Violência doméstica e a lei da família na prática

Em Marrocos, para além das alterações à Lei da Família, muito trabalho precisa de ser feito no que se refere à violência doméstica. Até 2018, ano em que a Câmara dos Representantes aprova uma nova legislação para a violência doméstica, esta não tinha um quadro jurídico específico e era enquadrada nas provisões do Código Penal que é aplicável em situações de assalto (OMCT, 2003). Um dos problemas deste enquadramento era a questão da prova. Além de um certificado médico, a declaração de uma testemunha era requerida para provar e punir a agressão física. Esta condição impedia muitas mulheres de reportarem casos de violência doméstica, na medida em que muitas vezes esta não envolvia a presença de testemunhas. Por esta razão, a violência doméstica era dificilmente comprovada, não podendo ser usada em tribunal para justificar o divórcio, quando pedido pela mulher.

Algumas das mulheres da associação começam por apresentar uma queixa na polícia que, de acordo com o advogado, a funcionária do Centro de Escuta e a presidente, nem sempre tem seguimento. Os maridos mudam de residência, procuram um lugar para se esconderem e raramente a polícia toma as providências necessárias para os encontrar. Quando se conseguia provar a violência, através de um atestado médico ou de testemunhas, a mulher tinha o direito de pedir o divórcio “por prejuízo” (ar. arar). O divórcio era pronunciado e o tribunal fixava uma indemnização que deve ser paga à mulher prejudicada. Os tribunais deviam depois sancionar o homem de acordo com as provisões de agressão.

Na associação é recorrente que, mesmo existindo violência, a ausência de provas impossibilite as mulheres de recorrerem a este tipo de divórcio. Por exemplo, Houda foi ao Centro de Escuta quando tinha 27 anos. Estava casada desde os 18 anos e sempre sofreu violências por parte do marido, mas foi a partir de 2009 que as agressões se tornaram constantes. É mãe de três filhos (uma rapariga de 11 anos e dois rapazes de 4 e 3 anos), não tem profissão e é analfabeta. O marido trabalhava como caixa na gare dos autocarros. Segundo ela, as drogas e o alcoolismo foram os motivos que desencadearam a violência, motivos que são recorrentemente apresentados pelas mulheres. Na ficha de informações a funcionária escreveu: “Houda foi forçada a sair da casa do seu marido depois de ter sido vítima de violência. O seu marido fez um procedimento para que ela regresse a casa[14], mas Houda recusa por causa das violências. Ela pede ajuda jurídica para iniciar um procedimento de divórcio e para ter a pensão alimentar correspondente ao tempo em que ela esteve em casa da sua mãe”.

Quando era vítima de violência, ia para a casa da mãe, mas durante muito tempo não partilhou com ela o que lhe estava a acontecer. Decidiu apresentar queixa na polícia depois de o marido a ter fechado com as crianças num quarto durante dois dias, sem comida. Na polícia disseram-lhe “volta para casa, para a tua família”, “esquece”. Decidiu divorciar-se. O advogado entregou o procedimento de divórcio no tribunal que foi inicialmente recusado, devido à falta de documentos, uma realidade muito comum em Marrocos. Foi novamente entregue quando Houda conseguiu juntar toda a documentação necessária. Esperava há dois meses que fosse marcada uma audiência, mas em 2011 os tribunais fizeram muitas greves, aproveitando o ambiente de “Primavera Árabe” para reivindicar melhores salários e progressões na carreira.

O tipo de divórcio pedido foi por discórdia (chiqāq), uma opção introduzida em 2004, aquando das alterações da Lei da Família. Este pode ser pedido por um dos esposos como resultado de um diferendo entre o casal, sujeito a uma tentativa de conciliação no âmbito do qual podem ser chamados dois árbitros, um conselho de família ou toda e qualquer pessoa que o tribunal julgue ser útil ouvir (artigo n.º 82). Caso a divergência persista, o procedimento jurídico a seguir é o do divórcio por iniciativa de um dos esposos. O divórcio por discórdia possibilita a desunião à esposa (obrigando-a, no entanto, a uma tentativa de conciliação, o que é constrangedor e doloroso no caso de ser vítima de violência), sem ter que apresentar provas ou sem ter que abdicar dos seus direitos, como acontece num outro tipo de divórcio (khol’), no qual a mulher quase “compra” a desunião.

A ausência, até muito recentemente, de uma legislação para a violência doméstica que se coadunasse com vários tipos de agressões, contribuiu para que, por exemplo, o ex-marido de Houda não tivesse sofrido qualquer sanção e que o divórcio possível fosse o de discórdia. Existem também mulheres na associação que, perante a violência, optam por abdicar dos direitos consagrados no divórcio por declaração do esposo, através do divórcio por compensação (khol’), no qual saem a perder, não só porque é socialmente desprestigiante mas também porque desistem dos direitos que têm e que estão estipulados pela lei.

Como se pode ver por este exemplo, a associação conseguiu garantir o acesso de Houda ao sistema judiciário - o que seria muito difícil se tivesse de pagar um advogado - mas o tipo de divórcio garantido por Lei não enquadrou a violência doméstica sem a existência de provas ou testemunhas. Neste sentido, para analisar o impacto da reforma da Lei da Família é necessário ter em conta considerações mais amplas, como por exemplo a falta de enquadramento da violência doméstica mas também a ineficácia do Estado em fornecer serviços de apoio para mulheres em situação de vulnerabilidade, como creches, apoio financeiro e serviços jurídicos e médicos.

Considerações finais

Apesar das mudanças na Lei da Família marroquina, a ausência de uma legislação adequada para os casos como o das mulheres que vão à associação e de políticas nacionais direcionadas para a família são evidentes. A relação entre Estado e família em Marrocos opera sobretudo ao nível ideológico e religioso (o que se comprova pela dimensão do debate em torno da Lei da Família) e não tanto ao nível das necessidades imediatas (Chekroun, 1996; Zvan-Elliot, 2017). Os programas de ajustamento estrutural no início dos anos 90 levaram a uma contração da despesa do Estado, o que se refletiu no caráter fragmentário das políticas estatais no que se refere à família, manifestado na incapacidade de os sistemas de proteção social oferecerem ajudas reais às famílias (ibidem, Daoudi 1998). Esta ausência manifesta-se ainda hoje, principalmente na falta de apoios de base, no âmbito da unidade doméstica (apoio alimentar, escolar, de saúde) mas também de mulheres em situação de vulnerabilidade (divorciadas, viúvas e com filhos). Houda, por exemplo, não recebeu qualquer apoio e depende agora de ajuda familiar. Vive com a mãe e com os seus três filhos. Queria encontrar um trabalho e, por essa razão, participava na formação de cozinha oferecida pela associação. Mas, numa cidade turística como Essaouira, uma mulher que usa um longo lenço (uma única peça que chega até às mãos e com um buraco para inserir a cabeça), como é o seu caso, tem maior dificuldade em encontrar emprego.

Ao mesmo tempo, estas associações nem sempre reúnem simpatia. Segundo a presidente, muitas pessoas (sobretudo homens), vêem-nas como estímulos para a instabilidade matrimonial e para a não obediência da mulher ao marido. O facto de as mulheres poderem recorrer diretamente aos serviços de um advogado empodera-as e altera consideravelmente a sua dependência dos maridos. Muito embora os laços conjugais possam ser secundarizados face a outro tipo de relações e pertenças familiares (Bargach, 2006), as narrativas populares apoiam-se na ideia da sua estabilidade, supostamente assente na paciência e obediência das mulheres face aos maridos. A procura de soluções mais individualizadas é percebida como podendo colocar em causa a unidade conjugal.

Além disso, a presidente da associação referiu que a ausência de um controlo da aplicação da Lei da Família contribui para que muitos juízes em Marrocos continuem a utilizar o antigo código legal, porque o consideram mais fiel ao espírito da tradição religiosa vigente no país. O advogado da associação, por outro lado, refere que existe uma grande discrepância entre o sistema legal e a realidade prática, o que torna difícil a resolução das questões familiares. Tal como }van-Elliot (2017) afirma, a reforma da Lei da Família pode ser considerada como uma estratégia para “modernizar o patriarcado”, dar-lhe uma nova roupagem sem introduzir mudanças reais na vida dos e das marroquinas. Na realidade, a sua investigação mostra a ausência de políticas que mudem as práticas e costumes em muitos locais marginalizados e empobrecidos de Marrocos onde, por exemplo, o maior acesso das mulheres à educação não se reflete necessariamente na mudança do seu estatuto e da sua autonomia (}van-Elliot, 2015, 2017).

Contudo, apesar de estar longe de constituir um sistema de total paridade, o Código da Família marroquino garante à mulher o acesso ao divórcio, seja através da discórdia, do fracasso do homem em cumprir as obrigações referentes ao casamento (também existente noutros códigos legais) ou do khol’. Comparado com outros sistemas da região, o atual código da família marroquino amplia as possibilidades de divórcio às mulheres, respondendo às necessidades de uma sociedade que se assume como crescentemente “moderna”. Porém, a Lei da Família marroquina é devedora de uma conceção de família patrilinear, desfasada das transformações mais recentes da sociedade marroquina e que não contempla, por exemplo, a contribuição financeira das mulheres no âmago da família. Muitas das lutas feministas reclamam precisamente a importância deste fator, na medida em que altera completamente o ideal de família assente no homem como provedor familiar (Carvalheira, 2017).

São precisos mais estudos que demonstrem diferentes posicionamentos ideológicos no quadro do Islão, mas são sobretudo necessárias etnografias que descrevam a realidade de muitas mulheres e homens em contextos (maioritária ou minoritariamente) muçulmanos. As suas trajetórias de vida são importantes para mostrar a heterogeneidade de realidades, na interceção de fatores como a classe social, a idade, a origem geográfica e social e o género.

 

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Recebido a 18-10-2018. Aceite para publicação a 26-11-2019.

 

[1] O trabalho de campo foi realizado entre 2010 e 2012 na cidade de Essaouira, em Marrocos, e integra-se na pesquisa conduzida para a obtenção do grau de doutoramento em Antropologia, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com uma tese intitulada: Autoridade e Autonomia: Conjugalidade e Vidas Femininas em Essaouira, Marrocos, defendida em abril de 2015.

[2] De acordo com o Código da Família (Royaume du Maroc, 2016), a obrigação alimentar resulta do casamento, do parentesco e do noivado. O capítulo II (artigos 194, 195 e 196) explicita as condições da pensão alimentar devida à esposa (no casamento, no divórcio e na gravidez da mulher). Estes artigos e a preponderância do sustento da esposa elucida como o Código da Família (e a Lei da Família num sentido mais lato) reproduzem uma noção de desigualdade no casal, devendo o esposo providenciar pela esposa. Esta questão será desenvolvida mais à frente.

[3] Ver o dossiê da revista L’ année du Maghreb, dirigido por Karima Dirèche-Slimani (2005-2006), totalmente dedicado ao assunto.

[4] Seria fastidioso explorar neste artigo as origens da Lei da Família marroquina e a dimensão mais teórica que a sustenta, tão diferenciada da sua prática. No entanto, vale a pena esclarecer que, à semelhança de muitos outros países da região, sobretudo maioritariamente muçulmanos, a Lei da Família resulta da codificação do fiqh, traduzido como ciência, conhecimento, jurisprudência. Aquilo que normalmente se apelida de Jurisprudência Islâmica refere-se às escolas de jurisprudência sunitas que foram criadas nos séculos VI e VII com base nos tratados e comentários produzidos por sábios religiosos muçulmanos (ar. sing. ‘alim, plural ulema) (Coulson, 2010 [1964]).

[5] É necessário o juiz autorizar, assim como a primeira ou demais mulheres.

[6] No caso da herança, as irmãs herdam metade do que herdam os irmãos. Além disso, a herança de um falecido que só tenha tido filhas pode ser partilhada com os tios e tias paternos. O que não acontece se o falecido tiver filhos varões (v. Titre V: De l’Heritage par voie de Taasib, do Code de la famille - Royaume du Maroc 2016).

[7] Optou-se por utilizar, quando possível, os dados de 2012 pela maior proximidade ao momento de realização do trabalho de campo (entre 2010 e 2012).

[8] Rouyame du Maroc 2012. Activité, emploi et chomage, Année 2012 [online, citado a 17-10-2018] Disponível em https://www.hcp.ma/downloads/Activite-emploi-et-chomage-premiers-resultats-annuel_t13036.html.

[9] Ver no site oficial das estatísticas marroquinas (Haut-Comissariat au Plan), disponível em http://rgphentableaux.hcp.ma/ e consultado a 17-10-2018.

[10] Ver em https://www.hcp.ma/Analphabetisme_a413.html, consultado em 17-10-2018.

[11] Durante o período de realização do trabalho de campo, a associação não beneficiava de qualquer apoio do Estado mas sim de ONG estrangeiras (sobretudo francesas) e da Embaixada da Holanda em Marrocos. Para além disso, segundo a presidente, a associação depende da acção de vários beneméritos, entre os quais o advogado, o psicólogo e a médica. Uma parte dos rendimentos auferidos pelo ateliê de pastelaria serve também para pagar faturas da eletricidade, água e gás.

[12] Ver em https://www.hcp.ma/Taux-d-urbanisation-en-par-annee-1960-2050_a682.html (consultado dia 28-10-2019).

[13] De acordo com dados do Ministério da Educação de Marrocos disponibilizados pela UNESCO (2018), a taxa de escolarização para 2016-2017 é, no ensino primário (1.º ciclo do ensino básico), de 99,6% para os rapazes e de 98,5% para as raparigas. Assiste-se a uma diminuição desta taxa no 3.º ciclo do ensino básico, entre os 12 e os 14 anos, sendo de 90,4% para os rapazes e de 84,7% para as raparigas, que é ainda maior no ensino secundário (entre os 15 e os 17): 70,1% para os rapazes e 63% para as raparigas. Como se pode ver, a escolarização é generalizada no 1.º ciclo do ensino básico e é aí que se encontra uma quase total paridade entre rapazes e raparigas. Já no 3.º ciclo do ensino básico e no secundário é de salientar a forte diminuição da percentagem de raparigas. É sobretudo em meio rural que as raparigas prosseguem menos os estudos.

[14] A antiga Lei da Família estipulava que o homem era o chefe do casal e que a mulher lhe devia obediência. Estes conceitos foram retirados da atual Lei da Família; no entanto, a mulher perde o direito à pensão alimentar (o sustento) quando abandona o domicílio conjugal, podendo o marido iniciar um procedimento que exija o seu retorno. Este artigo (n.º 195 do Código da Família) mostra a prevalência jurídica da noção de obediência, que existe a partir do momento em que o marido tem a obrigação do sustento - nafaqa - da mulher.

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