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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.233 Lisboa Dec. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019233.13 

RECENSÃO

Sartori, Giovanni

Ensaios de Política Comparada, Lisboa, Livros Horizonte, 2018, 176 pp.

ISBN 9789722418881

Enrico Borghetto*
https://orcid.org/0000-0001-8676-3583

*CICS.NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Colégio Almada Negreiros, Campus de Campolide, 1070-312 Lisboa, Portugal. enrico.borghetto@fcsh.unl.pt


 

Há autores de referência que não podem faltar na biblioteca quer do estudioso de ciências sociais, quer do cidadão que deseje construir uma opinião sobre o estado da política nacional e internacional. Giovanni Sartori é um honrado membro deste “clube de gigantes” do pensamento. Sendo assim, merece um elogio a nova obra da coleção “Estudos políticos”, dirigida pelo professor Pedro Tavares de Almeida, que reúne as traduções para português de cinco dos trabalhos mais conhecidos e marcantes do famoso cientista político italiano. A seleção dos textos, assim como a redação de uma atenta e erudita introdução, foi feita por Marco Lisi, professor de Ciência Política na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

No capítulo de introdução o leitor pode encontrar uma sucinta, mas suficientemente completa, apresentação do percurso pessoal e profissional de Sartori. Compreensivelmente, dado o propósito desta coletânea, os elementos biográficos serviram principalmente para justificar a seleção dos cincos trabalhos incluídos. Vale a pena deixar aqui algumas notas sobre a vida do autor. Nascido em Florença em 1924, Sartori licenciou-se em ciências sociais na Universidade Cesare Alfieri da sua cidade quando não existia ainda um curso de ciência política (foi ele que, mais tarde, impulsionou a sua criação). Notavelmente, os primeiros reconhecimentos à sua obra chegaram não da Europa, mas dos Estados Unidos, onde a versão inglesa do seu livro Democrazia e definizioni (tendo um ótimo domínio da língua inglesa, foi ele quem cuidou pessoalmente da tradução) foi bem recebido e valeu-lhe um convite para a Universidade de Yale. A relação que estabeleceu com os EUA não foi apenas um amor passageiro, mas um traço fundamental da sua carreira, como demonstra o prestigioso curso na Columbia University que Sartori manteve durante um quarto de século (entre 1979 e 1994). Mais tarde chegou também a visibilidade pública e uma longa lista de reconhecimentos, entre os quais oito doutoramentos honoris causa e o prémio Príncipe das Astúrias para as ciências sociais, em 2005. No seu país de origem, é hoje considerado o pai da ciência política, como disciplina autónoma face ao direito, à historia e à sociologia, um resultado validado pela fundação em 1971 da Revista Italiana de Ciência Politica e da Sociedade Italiana de Ciência Politica, de que foi primeiro presidente. Mas foi o seu papel de colunista no maior diário italiano, il Corriere della Sera, que tornou Sartori numa figura central, por vezes controversa, no debate público. Morreu no dia 1 de abril 2017, com 93 anos.

Como já foi mencionado, a introdução de Marco Lisi representa um útil ponto de partida para reconstruir a trajetória do pensamento de Sartori através das décadas. Como o organizador da obra reconhece, selecionar as obras mais representativas não foi uma tarefa simples. A dificuldade não só deriva da abrangência da obra do Sartori, que se debruçou sobre um amplo leque de matérias ao longo de mais de 60 anos de carreira, mas da magnitude do impacto reconhecido à maioria dos seus trabalhos, sendo que uma verdadeira e completa compreensão da obra de Sartori não pode excluir a leitura dos seus livros fundamentais: Parties and Party Systems (1976), The Theory of Democracy Revisited (1987) e Comparative Constitutional Engineering (1994).

Ainda assim, pode afirmar-se que a escolha dos artigos/capítulos foi bem-sucedida, colocando-se em perfeita sintonia com o objetivo principal da obra: estimular, mais do que satisfazer, a curiosidade do leitor que se aproxima pela primeira vez do pensamento de Sartori. Talvez se pudesse ter dado mais espaço - incluindo uma pequena bibliografia estruturada - aos temas que não foram contemplados no livro, como a sua investigação sobre os sistemas eleitorais, as dinâmicas do parlamentarismo e do presidencialismo ou, na última parte da sua carreira, o impacto dos media, a sociedade multiétnica e a insustentabilidade da sobrepopulação global.

Dito isto, o mérito destes cinco trabalhos não é apenas o de oferecer uma introdução sobre distintas temáticas no rico portfólio deste eclético autor. Mais do que isso, são obras animadas pela mesma ambição: definir a identidade, as ferramentas metodológicas e alguns dos elos de investigação fundamentais do cientista político moderno. Por outras palavras, é possível afirmar que o traço comum entre estes (e outros) trabalhos é a necessidade, sentida por Sartori (assim como por Weber), de delinear um papel específico e autónomo do estudioso da política na sociedade. Segundo Sartori, a “cientificidade” da ciência política baseia-se em dois pilares: a atenção à construção e utilização dos conceitos e ao método.

Primeiro, Sartori foi um promotor da definição precisa e unívoca dos conceitos de base na ciência política. O seu primeiro livro, Democrazia e definizioni (1957), representa um admirável exercício de limpeza conceptual que proporciona ao leitor uma definição rigorosa do que é e não é “democracia” (por exemplo, ele não aceitaria a referência a democracias “iliberais”). O seu empenho neste campo traduziu-se (entre outros) num dos artigos mais citados na American Political Science Review (apropriadamente incluído na obra aqui recenseada) e na fundação de uma Comissão para a análise conceptual e terminológica dentro da Associação Internacional de Ciência Política (International Political Science Association, IPSA).[1]Apesar do contributo de Sartori e de quem aceitou o seu desafio de clareza conceptual, é difícil não reconhecer que a batalha sobre o terreno dos conceitos permanece muito acesa hoje em dia quer entre os estudiosos, quer entre os praticantes da política. A distorção dos conceitos é prática corrente e causa de contínuos debates. Provavelmente Sartori saudaria estas discussões porque não há risco maior do que a aceitação desta confusão conceptual (nas suas palavras, uma “torre de Babel”) como um elemento incontornável da política.

Segundo, Sartori afirmou que o método tem que ser comparado. A especialização sobre um sistema político é perigosa porque não permite apreciar as similaridades e as anomalias do caso estudado. O resultado é um conhecimento ilusório. Assim, embora Sartori ocupe uma posição de absoluta importância no debate político italiano, nunca se apresentou como perito do caso italiano. Ao contrário, pode imaginar-se que utilizou as suas observações sobre o funcionamento da Itália da Primeira República (1948-1994) como “inspiração” na construção da categoria de sistema partidário com “pluralismo polarizado”, mas nunca podia ter chegado à definição do conceito sem utilizar uma perspetiva comparada que incluísse o caso da República espanhola nos anos 30, da República de Weimar e da IV República francesa. Para ele, cada generalização tinha que ser validada através da comparação.

Estes dois elementos do trabalho de Sartori constituem o quadro em que cabe a sua ideia de ciência política como saber aplicado. O estudo da política deve constituir um saber relevante para a realidade social. Cumpre este objetivo se o quanto aprendemos sobre o funcionamento das instituições ou como estas delimitam e interagem com os atores políticos sai das salas da academia e se junta ao debate sobre as reformas do sistema político. O seu trabalho sobre a engenheira constitucional comparada representa um válido contributo para a discussão sobre as condições necessárias (por exemplo, o tipo de sistema eleitoral) para atingir os resultados esperados. Neste sentido, vale a pena ressaltar dois pontos. Primeiro, Sartori nunca interpretou o papel do cientista político como o do conselheiro do Príncipe à la Machiavel. Segundo, a sua batalha para uma ciência política mais aplicada nunca se tornou mainstream na discussão académica. Ao prosseguir este objetivo, Sartori entrou em polémica com parte da ciência política americana, sobretudo a mais recente, com uma abordagem mais formal e quantitativa.

Em conclusão, Sartori representa um mestre (em vários pontos de vista) e qualquer cientista político ou cidadão não pode ignorar o seu legado. Espera-se que a tradução destes cinco contributos fundamentais de Sartori seja lida e as suas lições compreendidas e aplicadas também em terras lusófonas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SARTORI, G. (1957), Democrazia e Definizioni, Bolonha, Il Mulino.         [ Links ]

SARTORI, G. (1976), Parties and Party Systems: a Theoretical Framework, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

SARTORI, G. (ed.) (1984), Social Science Concepts. A Systematic Analysis, Londres, Sage Publications.         [ Links ]

SARTORI, G. (1987), The Theory of Democracy Revisited, Chatham, Chatham House Publishers.         [ Links ]

SARTORI, G. (1994), Comparative Constitutional Engineering An Inquiry into Structures, Incentives and Outcomes. Londres, MacMillan.         [ Links ]

 

[1]Recomendo também a leitura do volume editado por Sartori Social Science Concepts. A Systematic Analysis, 1984.

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