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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.233 Lisboa Dec. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019233.10 

RECENSÃO

Avritzer, Leonardo

Impasses da Democracia no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016, 153 pp.

ISBN 9788520012727

Marcelo Borel*
https://orcid.org/0000-0001-7016-851X

*Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua da Matriz, 82, Botafogo - CEP 22260-100, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. marcelo.borel@gmail.com


 

Apesar de entender que o sistema democrático brasileiro - pelo menos até aos meses que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff - era bem-sucedido tanto no seu papel procedimental quanto na sua efetivação, Leonardo Avritzer argumenta que o país vive um momento no qual se assiste a um “impasse da democracia”. O autor utiliza o termo “impasse” para se referir a um processo de crise no desenvolvimento da cultura democrática, e essa crise seria fruto da conjunção de cinco elementos: o presidencialismo de coalizão; os limites da participação popular na política; os paradoxos envolvidos no combate à corrupção, que deslegitimam o sistema político; a perda de status das classes médias, frente à ascensão social das classes mais populares; e a inserção do poder judiciário como ator relevante na política nacional. Cada um dos capítulos do livro é dedicado a um desses cinco elementos. No fim, Avritzer expõe as propostas que considera pertinentes e necessárias para a resolução, no médio prazo, do impasse pelo qual passa atualmente a democracia brasileira.

Leonardo Avritzer inicia seu livro discutindo o que Sérgio Abranches denominou como o “presidencialismo de coalizão” - grosso modo, o termo refere-se à vigência de um sistema político simultaneamente presidencialista e com alta fragmentação partidária, que faz com que a presidência seja eleita sem que haja, de saída, uma maioria congressual que lhe ofereça suporte. A confluência desses fatores torna obrigatória a formação a posteriori de uma base congressista de apoio ao poder executivo, forçando a presidência a negociar os termos nos quais esse apoio se dará - em geral, por troca de cargos ministeriais.

A respeito do presidencialismo de coalizão existem duas visões distintas: o entendimento de que a barganha faz parte do jogo político, sendo esse processo uma forma legítima de negociação através da qual o executivo alcançará maioria suficiente para governar junto ao poder legislativo; e a compreensão de que a necessidade de forçar alianças acaba por comprometer ideologicamente o governo, despolitizando a agenda política. O argumento de Avritzer é que essa prática induz à ocorrência de corrupção. Se o termo “governabilidade” pode ser entendido de duas formas (a capacidade de tomar decisões, ou a legitimidade do processo decisório frente à opinião pública), a negociação de apoio parlamentar por indicações a cargos de confiança contribuiria simultaneamente para efetivar a primeira conceção de governabilidade, e para afastar a administração pública da segunda.

Para clarificar essa associação, o autor faz uma remontagem da relação dos governos petistas com o Congresso. Inicia sua exposição afirmando que Lula foi obrigado a fazer um pacto de governabilidade com o PMDB após o escândalo do mensalão. Esse pacto serviu tanto para retomar a capacidade decisória perdida após essa crise política, quanto para estancar as investigações e amenizar potenciais consequências - que poderiam ter sido evitadas, logo de início, caso a base parlamentar do governo fosse, à época, mais sólida. A estabilização do governo só veio após a inserção do PMDB na base aliada como principal pilar de apoio do PT, assumindo diversas pastas ministeriais, sendo algumas delas de alta relevância política, como a Saúde, a Integração Nacional e a Agricultura. O ocorrido serve como exemplo para demonstrar aquela que é, para Avritzer, a consequência mais perigosa do presidencialismo de coalizão. A concessão de cargos - ministérios e secretarias - a políticos de outros partidos como forma de barganha por amparo político no legislativo catalisa a ocorrência de escândalos de corrupção através de desvio de verbas e cobranças de propinas, sobretudo quando se trata de pastas responsáveis pela execução de obras de infraestrutura.

A aproximação entre PT e PMDB na busca por governabilidade enfatizou-se nos governos Dilma, com a nomeação de Temer para a vice-presidência e com alocação de mais ministérios ao partido. A crise de governabilidade decorrente das peripécias do presidencialismo de coalizão também se agravou. Escândalos emergiram em diversas agências governamentais, culminando na queda de vários ministros já no primeiro ano de governo, e acarretando perda de apoio legislativo, já que vários desses ministros eram pontos centrais nas teias de arranjo do apoio parlamentar da presidente.

Partindo desse raciocínio, Avritzer conclui que o presidencialismo de coalizão funciona de forma dual no que toca à governabilidade. Por um lado, permite que o governo tome decisões e aprove pautas no legislativo. Por outro, distancia-o da noção de governabilidade enquanto “legitimidade do processo decisório frente a opinião pública” - uma vez que a política de alianças e de troca de cargos por apoio parlamentar desemboca, como tenta demonstrar, na proliferação de casos de corrupção, que deslegitimam publicamente não apenas o governo, mas o próprio sistema político-partidário. Nas palavras de Avritzer, “há uma relação entre a forma de governo, no caso o presidencialismo de coalizão, e a incidência da corrupção”.

Após debater a relação entre o presidencialismo de coalizão e a corrupção no Brasil, o autor passa à análise da centralidade de políticas participativas nas gestões do PT. Se na década de 90 esse tipo de política foi marca central de seus governos, sobretudo em Porto Alegre e Belo Horizonte, a implementação dessas políticas desacelera em 2004 e sofre severa contração em 2008, perdendo centralidade política. Ademais as esferas de participação promovidas pelos governos Lula e Dilma centraram-se mais na temática de políticas sociais do que em temas relativos a desenvolvimento económico e infraestruturas.

A perda de centralidade da lógica participativa, acompanhada da ausência de participação em deliberações infraestruturais, e da aproximação/concessão de cargos ao PMDB em busca de governabilidade, teria acentuado os conflitos internos dentro dos governos PT. O exemplo utilizado para ilustrar essa troca de paradigmas (da participação pela governabilidade) foi o abandono de políticas indigenistas por uma aliança com o ruralismo, demonstrada publicamente principalmente pelo comportamento do PT nos casos da demarcação de terras da reserva Raposa Serra do Sol, e da construção de Belo Monte.

É nessa rutura do consenso participativo e no acirramento do conflito entre o governo Dilma e os movimentos sociais, que Avritzer perspetiva a génese das manifestações de junho de 2013. Essas manifestações teriam sido bem-sucedidas em dois feitos: romper o monopólio mediático dos grandes meios de comunicação; e mobilizar setores conservadores da sociedade brasileira que estavam organizados pelo menos desde 1964.

A anexação desses setores nas manifestações teria sido incisiva ao ponto de operar mudanças na temática dos atos que viriam a ser realizados posteriormente, e fazendo com que coexistissem uma agenda conservadora de caráter despolitizado - representada pela interpretação vazia de que a política não tem salvação, sendo todos os seus atores corruptos, e a necessidade de uma reforma inevitável para a solução dos problemas do país -; e uma agenda progressista, que clamava o acesso à cidade por meio do transporte público, e a melhoria nos serviços de saúde e educação. Em outros termos, enquanto um lado das manifestações identificava o poder público e os políticos como fontes inquestionáveis de mazelas sociais, o outro lado clamava por mais Estado. A publicização dessa nova agenda conservadora estende-se ainda hoje, tendo sido o marco ideológico das manifestações de 2015 contra o governo Dilma.

Fortemente amparados por uma campanha dos media para amplificar e vincular o PT a todos os escândalos de corrupção, e tendo recentemente reaprendido o caminho das ruas, essas classes médias adotaram uma postura de indignação acentuada com casos de corrupção, percebendo-a como o principal problema do país. Os discursos anticorrupção e anti-PT associam-se imediatamente e ganham fôlego.

Na interpretação de Avritzer, a postura política da classe média é consequência de uma reconfiguração da estratificação social brasileira, que permitiu a ascensão de milhões de pessoas à “nova classe média” por meio de políticas de distribuição de renda e de valorização real do salário-mínimo. A “classe média tradicional” não apenas se sentia excluída dos programas sociais promovidos pelos governos petistas, como também perdeu a exclusividade que tinha no acesso a serviços privados, tais como planos de saúde e educação particular. A reticência que fica ao fim da exposição é: a retirada de apoio ao governo por parte das classes médias, aliada ao fortalecimento de um discurso conservador, coloca em risco a perpetuação do projeto democrático inaugurado em 1988?

Como no fim de 2015 a reposta positiva para essa pergunta não era tão clara quanto é agora, em vez de dar respostas, o autor opta por apontar caminhos a serem seguidos para se evitar a perpetuação do impasse no Brasil, comprometendo ainda mais a perpetuação desse projeto democrático. As saídas apontadas são a moderação da oposição, a ampliação da participação social, o financiamento público de campanhas eleitorais e a positivação da agenda política da classe média.

Em resumo, entende-se que a necessidade de se criarem alianças partidárias não ideológicas em busca de apoio congressual foi responsável por uma troca de paradigmas nos governos petistas, sacrificando o projeto de uma democracia participativa em troca da capacidade de tomar decisões. Essa alteração paradigmática produziu uma ruptura no consenso participativo, agravando os conflitos entre governo e movimentos sociais. Esse conflito culminou nas manifestações de junho de 2013 e na consequente organização do conservadorismo no Brasil. A classe média conservadora, apoiada pelos grandes media, e insatisfeita com a perda de privilégios classistas promovida pela ascensão da classe C nos governos petistas, retirou apoio ao projeto implementado pelo PT, abrindo margem para que a política brasileira tomasse os rumos que tomou em 2016, que culminaram no impeachment da presidente Dilma (posterior à publicação do livro em análise).

A argumentação construída pelo autor segue uma linha muito bem definida no decorrer do livro. A concatenação de ideias não deixa dúvida sobre sua linha de raciocínio. Contudo, alguns pressupostos e conclusões explicitados ao longo do texto parecem ter caráter mais político do que propriamente científico, aproximando o livro de uma grande análise de conjuntura e afastando-o de algo propriamente científico, concernente a causas e explicações.

O primeiro ponto a ser questionado é a afirmação de que o presidencialismo de coalizão conduz à corrupção. De saída, é importante ponderar que o tipo de negociação que se diz próprio do presidencialismo de coalizão, na realidade, ocorre em todas as formas democráticas. De facto, a necessidade de negociar com outros setores para desenrolar o governo é democrática por excelência. O seu oposto, a imposição de vontade política independente de coalizões e da participação num jogo de barganhas, é que está vinculada mais fortemente à autocracia que ao fazer democrático. Para além disso, a afirmação de que o presidencialismo de coalizão conduz à corrupção, trata a corrupção como algo sistémico, próprio da formatação do sistema político brasileiro. A corrupção seria independente dos indivíduos que, no limite do argumento, seriam vítimas de um sistema que os compele à corrupção. Contrafactualmente, o Chile é também um país no qual vigora um sistema presidencialista e multipartidário, sendo igualmente necessária a formação de alianças e coalizões para a garantia da “governabilidade”. Todavia, o Chile ocupa a 23.ª posição no ranking internacional de perceção de corrupção elaborado pela ONG Transparência Internacional, enquanto o Brasil se encontra na 76.ª, junto à Bósnia, Índia, Tunísia, Burkina Faso, Tailândia e Zâmbia. Pode-se contrapor a esse dado o facto de as alianças partidárias do Chile serem anteriores à eleição presidencial; contudo, diante dos entraves autoritários inseridos por Pinochet na Constituição de 1980, o quorum necessário para a aprovação de leis, emendas e reformas constitucionais são significativamente mais altos do que o requerido no Brasil, sendo necessário um diálogo e uma negociação constante com a oposição para implementá-las. Mesmo assim, escândalos de corrupção são muito menos comuns no Chile do que no Brasil. Os achados da Transparência Internacional são corroborados também pelo Latino Barómetro. Os dados de 2015 mostram que 22,5% dos brasileiros veem a corrupção como a maior mazela do país, enquanto no Chile esse problema é indicado por apenas 3,1% dos eleitores. Junto a isso, 36,8% dos chilenos percebem alguma ou muita diminuição da corrupção nos últimos anos, ao ponto que no Brasil apenas 18,9% percebem esse declínio.[1] Se a correlação entre um sistema multipartidário e presidencialista com a ocorrência de corrupção fosse realmente tão intrínseca e objetiva como Avritzer afirma ser, a comparação entre os dois casos similares não poderia ser tão discrepante. Desta feita, a argumentação elaborada pelo autor de que há uma relação causal entre a necessidade de construir coalizões partidárias para manter a governabilidade, e a indução de corrupção não é demonstrada por meio de suficiente evidência empírica.

Em segundo lugar, é problemático tratar a participação como uma forma inequívoca de combate à corrupção. Por mais que Avritzer pontue que existem diversos trabalhos acadêmicos que vinculam a participação a índices mais baixos de incidência de corrupção (p. 95), não cita nenhum desses trabalhos, e tampouco deixa claro se esses achados se aplicam especificamente à participação em deliberações sobre infraestrutura. Carece, portanto, de comprovação empírica a respeito da vinculação entre o aumento da participação e a diminuição da corrupção. Muito embora existam trabalhos que versam sobre corrupção e participação política, de acordo com Robert Bonifácio da Silva (2014), “não foram encontradas pesquisas, em sites de busca de livros e de periódicos especializados, sobre a possível relação entre ambos os fenômenos” (p. 152). Os achados mais interessantes acerca da relação entre esses dois fenómenos são os de Bonifácio e Ribeiro (2016), e apontam para o facto de que a vivência de situações de corrupção aumenta a probabilidade de participação política dos cidadãos. Os autores afirmam que “o indivíduo que tem vivência com atos de corrupção e que tolera, de certa forma, a existência de propina são mais engajados em atividades participativas, seja visando a modificação da lógica corrente de transgressão da norma vigente ou aproveitando-se da sua inserção na política para adquirir ganhos materiais via corrupção”. Não encontram, contudo, evidências de que essa participação contribua para a diminuição da corrupção. Desta forma, licitações viciadas, e parcerias público-privadas que mobilizam altíssimos volumes de recursos parecem ser uma hipótese mais plausível para justificar a corrupção que emana das obras de infraestrutura do que a ausência de participação popular.

Um terceiro ponto é a sua interpretação sobre as manifestações de junho de 2013 - tanto na sua origem quanto no seu conteúdo. Não fica claro na exposição feita por Avritzer por que motivo as jornadas de junho têm as suas raízes na crise do consenso participativo, e como é que a ampliação da participação poderia ter evitado as manifestações e a consequente organização e avanço do conservadorismo no Brasil. Se as manifestações foram desdobramento da truculência da polícia nos atos promovidos pela Polícia Militar de São Paulo nos atos do Movimento Passe Livre (como foi reconhecido no livro), a sua origem não se encontra na ruptura do consenso participativo, uma vez que não havia conselhos ou conferências nacionais que tratassem do acesso à cidade, tendo sido o Conselho Nacional do Transporte Público criado depois - e como consequência direta - das manifestações. Aqui, Avritzer parece vincular-se a uma crença ontológica de que a participação política e a inserção da sociedade civil em âmbitos decisórios do Estado legitimam a democracia e aproximam os cidadãos do governo. Nesse sentido, na ausência desses mecanismos de participação, despontariam o que chama de “crise do consenso participativo”. A expressão dessa crise seriam as manifestações de junho de 2013. No que toca ao seu conteúdo, apesar de terem sido levantas pautas como a “reforma política”, as manifestações finais de 2013 tinham como mote principal a luta contra a corrupção, e não uma proposta de reformulação dos sistemas político e eleitoral, ou da forma de se exercer o governo. E não parece haver compreensão geral a respeito da corrupção como uma forma de governar (Pinto, 2011).

A fração mais questionável da obra, contudo, encontra-se nas conclusões, quando o autor sai do senso estritamente analítico e mergulha-se em wishfull thinking, apontando como saídas para o impasse a moderação da oposição, a formatação de uma agenda política positiva da classe média em relação à democracia, o financiamento público de campanhas eleitorais, e a ampliação da participação social. Não é necessário ressaltar o caráter utópico das duas primeiras saídas, uma vez que a sua efetivação está dependente exclusivamente da boa vontade dos seus atores. Não há, em termos de escolha racional, razões para crer numa moderação da oposição quando o que se está em jogo é o domínio do aparato estatal. Da mesma forma, dar à agenda política da classe média um caráter positivo não é um objetivo que possa ser alcançado por meio de mecanismos institucionais - uma vez que essas mesmas instituições políticas são vistas pela classe média com enorme desconfiança.

No que toca ao financiamento público exclusivo de campanhas, é crucial levar em conta que, diante da ausência de possibilidades de autofinanciamento, ou de busca de recursos fora do seio do próprio Estado, o sistema político-partidário ficada vedado ao surgimento e à inclusão de novas forças políticas. Desta forma, o financiamento público exclusivo pode servir propósitos um tanto conservadores, e não necessariamente contribuir para a democratização e para a ampliação da participação. Mais ainda, ao contrário de reduzir a corrupção, o veto a doações privadas tende a provocar uma dilatação dos caixas 2, aumentando os recursos por fora dos auspícios da lei, sem que disso prossiga necessariamente uma democratização das campanhas ou o incremento da competição entre os candidatos. Essa perceção ancora-se sobretudo nas experiências brasileira e italiana de adoção de um sistema de financiamento de campanhas eleitorais exclusivamente público. No caso italiano, as doações empresariais foram vetadas de 1974 a 1997, quando a Operação Mãos Limpas desvendou uma série de esquemas de pagamento de propinas e doações ilegais de recursos às campanhas eleitorais visando dar acesso a contratos com órgãos públicos. Já no Brasil, o modelo vigorou até a descoberta do “Esquema PC”, que abasteceu a campanha eleitoral do então presidente Fernando Collor com recursos de empresas que foram, posteriormente, beneficiadas em licitações públicas. Diante disso, a permissão das doações de empresariais foi aprovada pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos em 1995, entendendo que era necessário admitir que essas doações existiam e que a regulamentação, acompanhada do controlo, seria mais benéfica ao sistema do que continuar a ignorá-las. A esse respeito, como já disse Speck (2004), a luz do sol é o melhor desinfetante. Além disso, não julgo ser necessário esmiuçar os empecilhos técnicos e políticos envolvidos na alocação e distribuição de recursos exclusivamente públicos para as campanhas.[2] A proposta de ampliação da participação social no seio do Estado, inclusive em áreas de política económica e infraestrutura, por sua vez, é de facto promissora, mesmo que as evidências a respeito da diminuição da incidência de corrupção por efeito da participação não sejam tão robustas quanto o autor faz parecer.

Não obstante o supracitado, ao apontar saídas para o impasse democrático que diagnostica, Avritzer concede à sua obra um carácter de análise conjuntural, situando-a no plano dos projetos políticos. O exercício da análise de conjuntura consiste em, baseando-se na tríade descrição, análise e síntese, fazer emergir possíveis cenários de ação e apontar caminhos a serem seguidos. Todas essas características estão presentes na obra: uma descrição do Brasil antes das manifestações, uma análise do processo ocorrido em junho de 2013 como fruto do rompimento do consenso democrático e, por fim, indicações de projetos e caminhos a serem seguidos para que esses impasses possam vir a ser solucionados. A “moderação da oposição”, a “formatação de uma agenda positiva”, o “financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais”, assim como a “ampliação da participação política”, são as propostas/saídas indicadas por Avritzer. As duas últimas, como é possível notar, dotadas de feições explicitamente normativas.

O traço conjuntural formatado por Avritzer nas seções finais de seu livro não é, em nenhum aspeto, prejudicial à qualidade do livro. Pelo contrário, trata-se de um exercício valioso que permite pensar os factos de forma mais fria e com um maior distanciamento do objeto. O balanço final da leitura é bastante positivo. Apesar de algumas discordâncias que perpassam a análise traçada na obra, o seu conjunto demonstra um grau peculiar de refinamento intelectual, capaz de articular num mesmo esquema interpretativo elementos como o sistema político, a cultura política, os media, e os conflitos classistas do país, com os atuais impasses da democracia no Brasil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDOUKAN, A. Y. (2009), O Bolso e a Urna: Financiamento Político em Perspectiva Comparada. Tese de doutoramento, São Paulo, USP.         [ Links ]

PINTO, C. R. J. (2011), A Banalidade da Corrupção: uma Forma de Governar o Brasil, Belo Horizonte, UFMG.         [ Links ]

SPECK, B. W. (2004), “Sobre a oportunidade, a modalidade e a viabilidade da reforma política”. In Revista Justilex, 29, pp. 32-34.         [ Links ]

 

[1] http://www.latinobarometro.org/

[2] Sobre isso ver Bourdoukan (2009).

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