SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue233Disasters, environmental changes, and migration in historical perspective: An interview with Uwe Lübken, by Ana Isabel Queiroz, Inês Gomes, and Filipa SoaresImpasses da Democracia no Brasil: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016, 153 pp author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.233 Lisboa Dec. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019233.09 

RECENSÃO

Antunes, Gonçalo

Políticas de Habitação - 200 Anos, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2018, 641 pp.

ISBN 9789896585389

João Queirós*
https://orcid.org/0000-0002-3500-5587

*Escola Superior de Educação, Politécnico do Porto e Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Via Panorâmica, s/n - 4150-564 Porto, Portugal. jqueiros@letras.up.pt


 

O livro Políticas de Habitação - 200 Anos, de Gonçalo Antunes, reproduz os resultados da investigação de doutoramento que o autor, geógrafo de formação, desenvolveu, entre o final de 2013 e meados de 2017, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, no âmbito do Ciclo de Estudos de Doutoramento em Geografia e Planeamento Territorial daquela instituição. Correspondendo à adaptação de uma tese de doutoramento, não surpreende que estejamos perante um trabalho de recorte académico, por um lado, e de grande fôlego e dimensão, por outro, com mais de seiscentas páginas compondo uma edição cuidada e profusamente ilustrada - incluindo um grande número de mapas, fotografias e outras figuras a cores - que a Caleidoscópio, em parceria com o Arquivo e a Câmara Municipal de Lisboa, deu a conhecer ao público em finais de 2018.

Trata-se de um trabalho que se propõe analisar em detalhe as “políticas sociais de habitação concebidas em Portugal entre 1820 e 2015” e que, partindo do foco disciplinar da geografia urbana, dialoga com as demais ciências sociais, cobrindo um arco temporal que vai do dealbar da monarquia constitucional às primeiras décadas do século XXI (p. 9). A ambição associada à decisão de tratamento deste amplo período histórico estende-se à definição do próprio objeto do estudo, também ela extremamente lata: segundo Gonçalo Antunes, incluem-se no entendimento de “políticas sociais de habitação”, aqui mobilizado, as diversas medidas da administração pública “que actuam no acesso à habitação, designadamente as políticas de habitação social, arrendamento e reabilitação urbana, mas também outras medidas esporádicas, como é o caso das tributárias (e. g. isenções de contribuições predial)”; em suma, nota o autor, “está incluída a análise de toda a habitação com apoio público” (pp. 12-13).

O livro aparece, muito oportunamente, num momento de intenso debate social, académico e político em torno da “questão habitacional” em Portugal, devendo, neste quadro, ser saudado como mais um relevante contributo da academia para a reflexão e a compreensão, histórica e geograficamente fundamentadas, da configuração, transformação e implicações da ação político-institucional com que aquela questão tem sido confrontada no nosso país.

Com efeito, e sem prejuízo do reconhecimento de importante investigação em ciências sociais desenvolvida nos anos 1980, 1990 e 2000 neste domínio (pensemos nos trabalhos de Abílio Cardoso, António Fonseca Ferreira, Fátima Matos, João Ferrão, José António Bandeirinha, Isabel Guerra, Luís Baptista, Maria João Freitas, Teresa Costa Pinto, Virgílio Borges Pereira, entre vários outros), a última década, que inicia com a “crise do subprime e chega aos nossos dias com uma alta dos preços do imobiliário que alguns observadores acreditam ser prenúncio de uma nova “crise de sobreacumulação”, correspondendo a uma década de renovação da atenção e do interesse públicos e, porque não dizê-lo, de recrudescimento da conflitualidade social e política associada ao “problema da habitação”, viu significativamente reforçado o esforço investigativo dedicado à exploração da temática.

Para além do surgimento de diversos projetos de investigação e da criação de grupos de pesquisa e de outras entidades, mono ou interdisciplinares, de natureza académica ou ativista, dedicadas a esta matéria, a última década deu a conhecer a todas as pessoas que se interessam pelo que as ciências sociais têm a dizer sobre a “questão habitacional” em Portugal um grande número de publicações - rol no qual deve agora ser incluído o livro de Gonçalo Antunes.

Não sendo possível elencar aqui o vasto manancial de trabalhos concluídos ao longo da última década ou ainda em curso em diversos pontos do país, podem talvez ser mencionados três. Pelo seu caráter abrangente e multidisciplinar, a dimensão coletiva que integram, a diversidade de tópicos de pesquisa que abordam e as leituras adicionais que suscitam, vale a pena conhecer os trabalhos desenvolvidos no âmbito do projeto “Mapa da Habitação”, do Grupo Atlas da Casa do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (vd., por exemplo, Ramos et al., 2019; 2020, no prelo); o conjunto diverso de propostas de análise da transformação urbana e habitacional observada nas principais cidades portuguesas ao longo da última década reunido por Estevens, Carmo e Ascensão (2018); ou ainda a obra coletiva, coordenada por Ricardo Agarez e surgida na mesma altura do livro de Gonçalo Antunes, sobre os “cem anos” das políticas de habitação de iniciativa pública em Portugal, que reúne contributos de mais de trinta investigadores e outros especialistas envolvidos nas últimas décadas em pesquisas de cariz intensivo e/ou extensivo sobre o campo da habitação no nosso país (Agarez, 2018).

A circunstância de a investigação de doutoramento de Gonçalo Antunes ter sido desenvolvida ao mesmo tempo que eram promovidas várias destas outras démarches investigativas não terá possibilitado a leitura e o desenvolvimento de um diálogo mais atento e profícuo com os resultados e pistas analíticas que daquelas investigações resultam; ainda assim, poderia esperar-se maior atenção a este vivo e renovado “estado da arte”, que certamente traria densidade analítica à descrição muito detalhada que Gonçalo Antunes faz de diversos aspetos dos períodos e temáticas selecionadas para estudo.

Por outro lado, a opção por uma abordagem extensiva, com organização essencialmente cronológica do argumento e da informação-base e foco na identificação e caracterização, balizada pelos limites histórico-temporais de cada configuração macropolítica da contemporaneidade portuguesa (cinco capítulos que vão da “Monarquia Constitucional” à “atualidade”, passando pela “Primeira República”, a “Ditadura Militar” e o “Estado Novo”), dos quadros formais-legais e das propostas e realizações que, designadamente em Lisboa, foram sendo concretizadas no plano habitacional, nem sempre possibilitou - sem dúvida pela exigência daquela opção - a consecução dos níveis de intensidade e profundidade de análise que alguns dos assuntos aflorados nos sucessivos capítulos do livro exigiriam.

As aberturas para o desenvolvimento de tais análises - verdadeiros programas de pesquisa que se espera que Gonçalo Antunes possa aprofundar em trabalhos subsequentes e que a leitura deste livro certamente evidenciará como relevantes aos olhos de outras e outros investigadores - podem ser encontrados em diversos pontos do volume.

Assim, nos capítulos 1 e 2, dedicados à “questão habitacional” na “Monarquia Constitucional” e na “I República Portuguesa”, e entre outras pistas analíticas, o elenco de legislação e a demais informação disponibilizada sobre perspetivas e tomadas de posição oriundas do campo político configuram seguramente um sólido ponto de partida para um aprofundamento analítico em torno da questão da construção política do campo da promoção habitacional em Portugal e da objetivação das modalidades de (des)articulação público-privado na produção de respostas habitacionais para as classes populares na segunda metade do século XIX e primeiro quartel do século XX.

Nos capítulos 3 e 4, dedicados aos períodos da “Ditadura Militar” e do “Estado Novo”, a identificação dos principais documentos legislativos e a identificação e caracterização, com recurso a sucessivos quadros, mapas, plantas e fotografias, das realizações habitacionais do Estado na cidade de Lisboa (“Programa das Casas Económicas”, “Casas Desmontáveis”, “Casas para Famílias Pobres”, “Casas de Renda Económica”, “Casas de Renda Limitada”, entre outros planos e programas de urbanização e construção de habitação com incidência na capital), suscitam o interesse na exploração detalhada da sociologia dos destinatários originais e na reconstituição das respetivas trajetórias e destinos residenciais e sociais. Igualmente merecedora de exploração adicional é a discussão que Gonçalo Antunes faz, no final do Capítulo 4, dos “modelos e tendências” que funcionaram como quadros inspiradores, estruturadores e legitimadores da ética, estética e prática das políticas habitacionais do “Estado Novo”.

As hipóteses de trabalho suscitadas pelo capítulo 5, que cobre o intenso e multifacetado período posterior ao 25 de Abril de 1974, são igualmente vastas. Sendo ingrata a escolha de um caminho analítico a privilegiar, pode, contudo, dizer-se que o trabalho de Gonçalo Antunes oferece pistas muito relevantes para um trabalho de análise, ainda não plenamente assumido pelas ciências sociais em Portugal, em torno da estruturação e implicações das políticas públicas direcionadas para o “apoio à pessoa”, que a partir do final dos anos 1970 contribuíram para transformar rapidamente o nosso país num país de proprietários, mas também num país com elevado número de habitações novas devolutas, sem que, paradoxalmente, se resolvesse o problema do acesso à habitação de inúmeras famílias, traduzido na significativa proporção daquelas que persistem com acesso improvável a outro segmento do campo de produção de alojamentos que não seja aquele que passa pelo apoio ou a promoção direta do Estado.

Em suma, este é um livro que configura uma ferramenta essencial para quem, a partir do campo das ciências sociais ou de outros espaços disciplinares, queira prosseguir ou iniciar a busca das grandes respostas que ainda falta apresentar e detalhar sobre a “questão habitacional” no nosso país. Ademais, sendo este um livro focado no caso de Lisboa, Gonçalo Antunes não deixa de enquadrar a situação lisboeta no contexto nacional e europeu, trazendo à liça, em diversas passagens, ilustrações relativas a outros territórios, situados dentro e fora das fronteiras portuguesas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAREZ, R. C. (coord.) (2018), Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em Portugal, 1918-2018. Lisboa, IHRU [edição digital, disponível em http://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/100anoshabitacao/af_IHRU_Habitacao_Social.pdf        [ Links ]

ESTEVENS, A., CARMO, A., ASCENSÃO, E. (orgs.) (2018), A Cidade em Reconstrução. Leituras Críticas, 2008-2018, Lisboa, Le Monde diplomatique/Outro Modo/Habita.         [ Links ]

RAMOS, R. J. G., et al. (coord.) (2019), Contexto, Programa e Projeto: Arquitetura e Políticas Públicas de Habitação, Porto, Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto [edição digital, disponível em https://www.mapadahabitacao.arq.up.pt ].         [ Links ]

RAMOS, R. J. G., et al. (coord.) (2020, no prelo). Hidden in Plain Sight: Politics and Design in State-Subsidised Residential Architecture.         [ Links ]

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License