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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.231 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019231.12 

RECENSÃO

Lopes, João Teixeira et al.

Caloiros e Doutores. Um Estudo Sociológico sobre a Praxe Académica em Portugal

Lisboa, Editora Mundos Sociais, 2018, 158 pp.

ISBN 9789898536662

Rui Bebiano*
https://orcid.org/0000-0002-1449-2216

*Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. ruibebiano@gmail.com


 

A expansão do sistema universitário português trouxe consigo a reprodução, a diversificação e o crescimento do impacto social da praxe académica, inicialmente confinada a Coimbra e à sua universidade. Este processo, na origem circunscrito a atividades codificadas e com uma âncora temporal limitada a momentos do ano letivo, foi adquirindo formas que, para além do alargamento temporal das suas manifestações, em certos casos assumiram contornos de grande violência, associados mesmo a práticas de natureza criminosa, com um impacto e um alarme público ampliados pela atenção da comunicação social. A esta realidade em mutação correspondeu um crescente interesse académico, determinado pela vontade de observar e de conhecer a dimensão sociológica, histórica e antropológica do fenómeno, associado à perigosa deriva que tomou e à necessidade de encontrar uma saída socialmente aceitável, fora da lógica proibicionista.

Em Caloiros e Doutores procede-se, acima de tudo, a um levantamento do estado da arte da produção académica sobre o tema, à sua compreensão e ainda à tentativa de encontrar uma solução passível de ser aceite pela comunidade estudantil e pacificamente integrada pelo meio envolvente. A equipa de sociólogos que assina esta obra define os contornos do complexo da praxe a partir de múltiplas perspetivas orientadoras do modo como é vivida e interpretada: como ritual de iniciação, enquanto mecanismo de socialização, tomada como instrumento de poder, olhada como “tradição inventada” (para seguir o conceito proposto por Hobsbawm), ou então considerada uma “instituição bastarda”, para Everett Hughes, emanada de uma instituição estabelecida, mas capaz de oferecer respostas sociais que esta não pode dar.

A obra estende-se por cinco capítulos com objetivos naturalmente específicos. No primeiro, procede-se a uma caracterização da especificidade portuguesa de um fenómeno com dimensão internacional, apresentando-se uma breve revisão das investigações já realizadas sobre o tema. Consideram-se de uma forma particularmente objetiva os modos como têm sido tratados aspetos diversos: a definição da especificidade da praxe, os seus objetivos sociais, as relações com aspetos como a violência e os jogos de poder, a perceção que os próprios estudantes detêm dos seus contornos, a relação com as vivência e os dilemas da juventude universitária, ou aspetos mais específicos, como o consumo de álcool, a sexualidade e o sexismo ou a produção de estereótipos sobre os próprios alunos que praticam ou que rejeitam a praxe. No segundo capítulo, o foco da análise é colocado na origem e na história da praxe académica em Portugal, insistindo-se na necessidade de dar um sentido ao que se entende como tal, dada a diversidade de episódios que lhe podem ser associados. O referencial histórico é acompanhado pela identificação de diversas modalidades, distintas no tempo e nos diversos lugares. Procede-se também a uma abordagem de fatores colaterais à praxe, como o humor e a boémia, as masculinidades, o lugar das mulheres, a politização da tradição, as especificidades locais e, num sentido totalmente diverso, a construção de movimentos alternativos, tendendo em regra a denunciá-la e a combatê-la.

Os capítulos seguintes têm uma dimensão mais especificamente sociológica, associada a inquéritos orientados e a estudos de caso. O terceiro capítulo apresenta as conclusões de uma observação situada sobre aspetos como a relação das instituições do ensino superior com o fenómeno, as dimensões da violência que ele necessariamente comporta, a emergência de processos alternativos ou complementares da sua dimensão festiva ou os processos de autorregulação e controlo. Já no quarto capítulo, a observação é deslocada para os discursos e para as atitudes face às formas que toma, integrando, no campo dos responsáveis pelo ensino superior, dos dirigentes associativos e do chamado estudante comum, um leque de variáveis muito mais amplo do que a observação empírica, tantas vezes invocada, poderá fazer supor como parte dele. Por último, o quinto capítulo centra-se nas experiências e rituais da praxe académica propriamente dita, como cânticos, gritos de guerra, atividades físicas, práticas de crime e castigo, processos de ridicularização, uso do nojo e do medo ou simulacros sexuais. Para além de outras, laterais, mas importantes, como a interação de muitas das suas formas com o turismo e o comércio.

Existem aspetos que poderiam merecer maior atenção, como o lastro histórico dos movimentos e da legislação antipraxe, o uso político desta, incluindo as posições diversificadas dos partidos e a ligação à atividade das autarquias, o carácter formalmente elitista da praxe ou a sua rejeição culturalmente naturalizada durante as décadas de 1960-1970, em particular com a valorização das atitudes libertárias e igualitárias e a influência do movimento de Maio de 1968, mas estas são apenas hipóteses a explorar, que de modo algum colocam em causa o interesse fora do comum deste trabalho. Este é, pois, um livro imprescindível para quem pretenda aprofundar o estudo de algumas das suas vertentes, para quem frequente ou tenha frequentado o ensino superior e deseje compreender melhor o universo no qual vive ou viveu, para quem tenha interesse em atribuir um nexo explicativo a atitudes coletivas que em determinados momentos do ano perturbam a vida regular das cidades dotadas de escolas do ensino superior, ou ainda para quem procure evitar, como tem acontecido, que a sua dimensão, na aparência apenas lúdica, dê lugar a formas de marginalização social ou a momentos incontroláveis e extremamente negativos de perturbação do convívio estudantil e até da paz social.

No final deste estudo conjunto, é sublinhado o facto de a diversidade das práticas e modalidades que a praxe comporta não deixar de conter um sentido unificador, daí advindo a opção metodológica de a tomar como fenómeno único, como tal verbalizado no singular. “Praxe”, pois, e não “praxes”. Fica também claro que os dirigentes das instituições de ensino superior, bem como os responsáveis de associações estudantis, têm desenvolvido posições diferenciadas e até contraditórias a propósito da rejeição do fenómeno, da consideração como positivos de alguns dos seus aspetos - nomeadamente através do propalado argumento da dimensão “integradora” da praxe - ou, o que é bem mais raro, da exclusão, perante ele, de toda a opção normativa ou proibicionista. Muito importante também a diluição da falsa ideia que tem circulado sobre a dimensão meramente lúdica do fenómeno. Fica, assim, clara a sua definição e propagação como instrumento fundado no uso da força que visa a fixação de um modelo de autoridade assente na rigidez hierárquica que configura uma dimensão antidemocrática ao ofender direitos individuais e até a tranquilidade ou a sensibilidade das comunidades envolventes.

O volume encerra positivamente, com a apresentação de recomendações de políticas públicas sobre a praxe académica, incluindo algumas que serão da competência do governo ou das instituições universitárias. Elas resultam das conclusões do próprio estudo e parecem ser um excelente ponto de partida para a solução do grave problema no qual ela se tem vindo a transformar.

 

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