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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.231 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019231.11 

RECENSÃO

Freire, André

Para lá da “Geringonça”. O Governo de Esquerdas em Portugal e na Europa,

Lisboa, Contraponto, 2017, 232 pp.

ISBN 9789896661434

Patrícia Silva*
https://orcid.org/0000-0002-7044-2723

*GOVCOPP, Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território, Universidade de Aveiro. Campus Universitário de Santiago - 3810-193 Aveiro, Portugal. patriciasilva@ua.pt


 

A rápida consolidação do sistema partidário português estruturou-se em torno de duas dimensões essenciais. A primeira relaciona-se com o rápido fechamento das estruturas de interação e de formação do governo, com o Partido Socialista e o Partido Social Democrata (e pontualmente o CDS-Partido Popular) a monopolizar a formação de governos em Portugal. Um segundo importante legado da democratização reporta-se à ausência de coligações à esquerda, com a exclusão permanente do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda da governação nacional.

O dia 10 de novembro de 2015 marca, provavelmente, o maior desafio à estabilidade destas dimensões do sistema partidário. Esta é a data da assinatura dos acordos bilaterais entre os partidos da esquerda parlamentar (PS, Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português e Partido Ecologista “Os Verdes”), formando uma solução inédita que levaria, poucas horas depois, à queda do segundo e curtíssimo governo de Pedro Passos Coelho com Paulo Portas.

Embora seja naturalmente prematuro afirmar-se que esta coligação marca uma transformação no sistema partidário português, a originalidade desta solução não deixa de ser um marco histórico não apenas na democracia portuguesa, como também no contexto da Europa Ocidental, onde este tipo de solução governativa se tornou rara, particularmente no contexto da recente crise económica.

O livro de André Freire é, neste contexto, um importante marco documental. Para lá da “Geringonça” joga habilmente com a designação que Paulo Portas pejorativamente colocou no léxico político e que políticos - incluindo António Costa - e alguns comentadores importaram, retirando-lhe, gradualmente, a conotação negativa. Embora tire partido da expressão - assumindo que não é um entusiasta da palavra - o livro de André Freire vai muito além do relato histórico das dinâmicas que se geraram até à tomada de posse de um governo minoritário com um acordo de incidência parlamentar após as eleições de 2015.

A habilidade do livro estende-se à conceção da capa. Por um lado, o autor arquiteta a metáfora de um governo das esquerdas permitir quebrar muros históricos; por outro lado, traz para a capa um marco histórico que perpassa todo o livro. Com efeito, André Freire procura esclarecer o leitor relativamente aos fatores que adiaram a emergência de uma solução do tipo governo de esquerdas, quando se tratou de um padrão de formação de governo muito comum noutros países da Europa Ocidental após 1989. Além disso, o autor considera as potenciais consequências destas soluções governativas explorando não apenas o contexto nacional, mas colocando o caso português numa perspetiva comparada com o resto da Europa. A identificação do contexto, processo e efeitos da geringonça é, já de si, um interessante exercício que a Introdução do livro cumpre com grande clareza.

Os quatro capítulos que estruturam este livro alternam entre o revisitar do extenso trabalho académico que autor tem desenvolvido ao longo da última década e o trabalho de interpretação e descodificação de eventos políticos que André Freire ofereceu a um público mais alargado, frequentemente com base na sua investigação. Este equilíbrio torna a leitura do livro apelativa, sem sacrificar o rigor analítico e conseguindo estender o alcance dos resultados académicos aos leitores mais distantes da escrita científica.

O exercício académico está sobretudo vertido na segunda e na última partes do livro, dedicadas à análise das razões pelas quais um entendimento à esquerda foi apenas possível cerca de 26 anos após a queda do Muro de Berlim. Neste exercício são apresentados os fatores históricos que permitiram consolidar um “cordão sanitário” em vota dos partidos da esquerda radical - recordando a deriva revolucionária do PCP na transição para a democracia e o conflito central que então emergiu entre o PCP e o PS e PSD relativamente à natureza do regime que se deveria instaurar em Portugal no seguimento do período revolucionário: PS e o PSD defendiam um regime democrático liberal representativo à semelhança dos países da Europa Ocidental; enquanto o PCP defendia uma democracia popular na esfera da URSS. Os partidos a favor da democracia liberal precisavam de dar sinais ao PCP da existência de um amplo apoio social, de forma a bloquear a solidez eleitoral e organizacional que o PCP detinha na altura. É, assim, no contexto histórico que Freire encontra as razões da inviabilidade de qualquer entendimento com os comunistas, particularmente face à recusa sistemática do Partido Socialista (e não do PCP).

Embora este conflito em torno da escolha do regime explique, em larga medida, a forma como se moldou o sistema partidário - e a exclusão permanente do PCP da arena de governação - torna-se um argumento mais frágil para explicar a exclusão do BE e, ainda, a recusa de acordos à esquerda após o fim da Guerra Fria, quando este tipo de soluções se tornou relativamente comum pela Europa. Como fica claro no livro, da recusa histórica do PS em costurar entendimentos com os partidos à sua esquerda, passamos a uma fase em que estes partidos rejeitavam estas soluções, mesmo num contexto em que o eleitorado defendia entendimentos governativos entre as esquerdas.

O autor discorre aqui sobre os argumentos de ordem programática, recordando a distância (ideológica) que separa os partidos e o receio dos líderes partidários relativamente a uma diluição das diferenças entre partidos - embora o autor relativize este argumento, notando como as diferenças ideológicas não impediram entendimentos à esquerda em outros países europeus. Além disso, o autor nota que a forma como o sindicalismo se encontra organizado permitiu reforçar as clivagens já existentes; juntamente com a ausência de experiências de sucesso à escala autárquica que pudessem servir de modelo.

O aprofundado exercício de identificação das variáveis explicativas da ausência de entendimentos entre as esquerdas é acompanhado por uma reflexão sobre as consequências desta falta de entendimento - desde o desequilíbrio no sistema político, até à marginalização das esquerdas (e, portanto, do eleitorado que representam) das soluções (e responsabilidades) governativas, com reflexo numa tendência para a “cartelização do sistema político e económico em Portugal” (p. 99). Além disso, o autor reforça a ideia destacada por António Costa no prefácio do livro da importância de um novo equilíbrio de forças para o reforço da qualidade da democracia, mais inclusiva e com maior diversidade de soluções.

Para além de oferecer uma profunda e rigorosa análise dos fatores que limitaram a emergência de entendimentos entre os partidos da esquerda, o autor oferece em dois capítulos a sua leitura crítica ao desenrolar dos eventos, dando nota clara do seu empenho cívico na constituição desta solução. É esse o grande contributo das partes I e III do livro. Nelas, Freire junta um corpo alargado de textos de opinião que escreveu para o jornal Público entre 2009 e 2016, que permitem não apenas documentar o contexto e o processo de preparação de um governo de esquerda plural - ancorando a sua leitura e análise dos eventos em investigação científica - como também permite denotar a simpatia do autor pela solução governativa encetada em 2015 - que, de resto, fica bem vincada com o convite ao primeiro-ministro para assinar o prefácio do livro.

André Freire oferece-nos a sua leitura aos primeiros sinais de abertura a uma solução governativa de esquerda, tomando como ponto de partida a coligação PS-BE firmada após as eleições autárquicas intercalares em Lisboa (2007), com a sua primeira premonição de que se a experiência corresse bem, poderia ser replicada ao nível nacional.

Adiante, na terceira parte do livro, é oferecida ao leitor o contexto e o processo particular até à formalização do acordo das esquerdas, que o autor apelida de “verdadeira revolução democrática” (p. 165). Para tal, o autor remonta às eleições europeias de 2014 e, em particular, ao efeito destes resultados eleitorais nas mudanças de liderança do Partido Socialista. É, aliás, no contexto das primárias que então se realizam que André Freire destaca a abertura do líder para respeitar as “aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda”, assumindo a possibilidade de “confrontar a esquerda radical para a assunção de responsabilidades governativas” (p. 130).

Esta terceira parte do livro permite, assim, ir além das barreiras históricas que explicam a dificuldade de entendimentos à esquerda, dedicando-se às questões contextuais específicas de 2015, que impulsionaram o acordo: desde as questões no plano económico e as suas implicações no posicionamento ideológico do PSD, que inviabilizaram acordos com o PS. É ainda esclarecida a importância da renovação geracional do Partido Socialista, muito menos marcados pela divisão histórica entre as esquerdas. Aqui, André Freire reconhece a importância do “jogo de cintura” de António Costa, mas não deixa de reconhecer que a crise dos partidos socialistas por toda a europa - que a gíria popularizou por pasokização, numa referência à implosão do PASOK grego no contexto da crise económica - impulsionou um posicionamento estratégico do PS. A história da geringonça é, por fim, a história de todos os seus protagonistas, destacando a abertura do BE (potencialmente impulsionado pelo aparecimento do Livre, o novo partido de esquerda pelo qual o autor se candidatou em 2015, e que não é esquecido neste livro) e do PCP para firmar acordos.

Esta terceira parte termina com a apresentação do manifesto da Vaca Voadora - uma plataforma da blogosfera onde vários académicos e personalidades de esquerda produzem “opinião sobre tudo o que diga respeito não só a solução política ela mesma - ao seu passado, presente e futuro, às suas possibilidades e riscos - bem como às políticas que vão sendo propostas” (p. 182). A designação do manifesto recorre a uma piada que António Costa usou para deixar clara a mensagem de que “não há impossíveis”. Talvez faltasse a este livro uma reflexão sobre os potenciais efeitos da geringonça sobre o PSD, dadas as implicações que a solução inédita de um governo suportado pelos partidos de esquerda terá sobre a leitura de futuros resultados eleitorais, pois a geringonça abriu margem para uma diversidade de soluções governativas, maior do que aquela a que o PSD estava habituado.

O ineditismo da geringonça no contexto nacional e em contraciclo com a Europa marcará, seguramente, a narrativa da democracia portuguesa - com este livro de André Freire a afigurar-se como um importante documento de síntese e um contributo de capital importância para o conhecimento deste momento particular. Apenas a história e os próximos escrutínios eleitorais poderão confirmar se este compromisso histórico poderá “levantar voo e voar”, mudando “para sempre o sistema partidário” - como Paulo Portas profetizara - e como, seguramente, seria o desejo de André Freire.

 

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