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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.231 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019231.08 

RECENSÃO

Hespanha, António Manuel

Filhos da Terra. Identidades Mestiças nos Confins da Expansão Portuguesa,

Lisboa, Tinta-da-China, 2019, 366 pp.

ISBN 9789896714765

Rosa Maria Perez*
https://orcid.org/0000-0002-9648-2416

*CRIA, ISCTE-IUL. Avenida das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. rosa.perez@iscte.pt


 

A leitura de Os Filhos da Terra constitui um permanente exercício de sedução, iniciado desde o início pela metodologia adoptada, pouco ciosa dos limites e das especificidades de uma abordagem histórica, num envolvimento crítico com outras possibilidades de leitura, sobretudo antropológica. A definição do objecto tem a segurança e a lucidez de um observador experiente: os sistemas que construímos enquanto tal, como sistemas, conjuntos de relações entre elementos diferentes entre si, não resultam da natureza desses sistemas, mas, diz-nos António Manuel Hespanha, eles decorrem da “forma como antecipadamente os imaginámos” (p. 13). Por isso, o objecto de estudo tem, sugere-nos, um “carácter inevitavelmente construído” (p. 270). Eis o que, sendo enunciado no terreno da história, confere uma adequação muito particular ao objecto de estudo antropológico.

Efectivamente, tal como os historiadores, os antropólogos constroem o seu objecto, munindo-se de um sistema de classificações. Ora, mais do que classificar a diversidade dos “portugueses” das margens do império, este livro sugere a sua desclassificação, enquanto um sistema aberto que atribui, além de pluralismo lógico, pluralismo social e político aos grupos encontrados. O entendimento desses grupos - e do império - implica prescindir de um olhar que tem marcado os estudos sobre a expansão e que, mais do que as diferenças, procura e projeta os traços distintivos da portugalidade. Uma fixação que, cito, é o “produto de uma pré-compreensão do observador, que isola, descontextualiza e sobrevaloriza certas características dos observados” (p. 36).

Ashys Nandy, no ensaio History’s Forgottten Doubles afirmou que “Unlike the anthropologists, the subjects of history are dead, because they cannot speak” (Nandy, 1995, p. 61). Ora, Os Filhos da Terra dão voz e vida a essa mudez do passado, dão voz e vida a esses sujeitos da história que o autor aborda a partir das margens dos sistemas sociais e políticos. As pessoas e grupos que nos é dado observar e cujo espaço, de África ao Sudeste asiático, recobre a cartografia da expansão, não circulam nem se fixam nos canais formais. Eles movimentam-se e estabelecem-se - que não no sentido territorial do termo - nessa mancha a que Georges Winius chamou “império sombra”. Uma sombra que, sem que o autor alguma vez o afirme, vai sendo progressivamente preenchida e corporizada. Além disso, os “portugueses”, sempre escritos entre aspas, que constituem as memórias históricas e antropológicas das margens, adquirem no livro uma espessura e uma densidade - social, económica e política - que insinua que, em muitos dos contextos analisados, mais do que os portugueses sem aspas foram eles que materializaram culturas que perduraram, frequentemente mesticizadas. Dou o exemplo do papiamento, um crioulo com muitos vestígios de português, falado por cerca de 250 mil pessoas nas ilhas de Curacao, Bonaire e Aruba, e identificado desde o século XVII. Acontece que a maior parte dos jornais de Curacao é publicada em papiamento, tal como as rádios locais e a televisão. Acresce que, oficializado em 2007, como o holandês e o inglês, o papiamento é admitido nos debates parlamentares (p. 69).

Este império nas margens que António Manuel Hespanha analisa “against the grain” permite-nos focar nas instâncias onde a linha que separa colonizados e colonizadores é desfocada ou mesmo controversa. Como ele põe em evidência ao longo do livro, as fronteiras são sempre criadas, mais do ponto de vista de quem observa do que quem é observado.

A travessia do império conduz ainda António Manuel Hespanha ao questionamento das grandes dicotomias com base nas quais ele tem sido pensado: a oposição entre colónia e metrópole, colonizador/colonizado, e mesmo colonial/pós-colonial. António Manuel Hespanha convida-nos a desconstruir tanto essas dicotomias, analiticamente muito cómodas, como as continuidades que geralmente são identificadas no interior dos seus polos. Na verdade, somos progressivamente postos perante grupos extremamente heterogéneos, descontínuos e fraturados no seu interior, que usam e manipulam os poderes instalados, institucionais, à medida dos seus interesses comerciais, grupos que são mediadores entre outros grupos e agentes constantes de diálogo social e cultural. Eles evidenciam estruturas que coexistiram com o império e que o repudiaram ou o integraram em diferentes escalas de negociação, a natureza do poder e dos poderes nativos e a sua intersecção com o poder colonial, as formas de colonização locais, que em muitos contextos se expandiram para lá do final cronológico do colonialismo. Através desta etnografia do império, António Manuel Hespanha permite-nos, assim, identificar as categorias indígenas, formas de afinidades e de antagonismo, negociações endógenas e exógenas de cultura e de poder. Ao mesmo tempo que nos estimula a questionar convenções narrativas que tenderam a cristalizar os dados em estruturas opostas e descontínuas, e nos desafia a conceber discurso e realidade como mutuamente constitutivos.

Com os seus filhos da terra, António Manuel Hespanha convida-nos, sistematicamente, a decentralizar o olhar, a evitar as armadilhas de uma visão marcadamente metropolitana (estou a evitar, obviamente, terminologia gasta do eurocentrismo) e a dar atenção aos fenómenos locais que as narrativas coloniais não integraram, a estar atento ao que Gruzinski chamou os middle-grounds, para os quais convergem conceções do mundo, estratégias de apropriação e de resistência, lugares onde nasceram grupos e sociedades sem precedentes na história e onde se produziram os mecanismos para os reprimir e domesticar (Gruzinski, 2004, p. 115).

Li devagar este livro, como quem teme que acabe inesperadamente. Li e reli algumas passagens, espreitei as entrelinhas, deslumbrada por essas personagens que, às vezes, usam chapéuzinhos, outras vezes “go native” e voltam a aparecer em margens onde não suspeitava que existissem. É esta a minha melhor sugestão de leitura para os Filhos da Terra, também chamados da Índia, ou do Chão: que o leiam pausadamente, ao ritmo desta escrita plena de vivacidade, e se deixem levar por, para, essas malhas que o império não teceu.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRUZINSKY, S. (2004), Les quatre parties du monde: une histoire d’une mondialisation, Paris, Éditions de la Martinière.

NANDY, A. (1995), “History’s Forgotten Doubles.” History and Theory, 34(2), pp. 44-66.

 

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