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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.230 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019230.12 

RECENSÃO

Neves, Barbara Barbosa, Casimiro, Cláudia (eds.)

Connecting Families? Information & Communication Technologies, Generations, and the Life Course,

Bristol, Policy, Press, 2018, 302 pp.

ISBN 9781447339946

Cristina Ponte*

* Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26 - 1069-061 Lisboa, Portugal, cristina.ponte@fcsh.unl.pt.


 

Como se vive em família em tempos e espaços marcados por meios digitais é uma questão social com implicações para políticas públicas. Em Portugal, onde a investigação é ainda escassa, as diferenças geracionais nos acessos são acentuadas não só entre filhos, pais, avós e bisavós, mas também por género, em etapas avançadas do curso de vida. Importa por isso considerar as famílias como unidade de análise. Esta obra contribui para orientar esse conhecimento ao “analisar de modo crítico como se processa a interseção da vida familiar e o uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) em várias gerações e numa perspetiva de curso de vida, o que se modificou nesta penetração nas últimas duas décadas” (p. 1). A proposta de Bárbara Barbosa Neves e de Cláudia Casimiro mobilizou perto de 30 autores e reúne estudos que situam relações familiares em todos os continentes.

Família é aqui entendida enquanto processo dinâmico e marcado pela fluidez de relações entre membros cuja composição se caracteriza hoje pela sua diversidade; a geração familiar como grupo de pessoas que partilha diferentes níveis de parentesco e se reconhece nos objetivos e interesses comuns; curso de vida é considerado enquanto instrumento analítico e enquanto conceito teórico, nos eixos propostos por Glen Elder: desenvolvimento físico, psicológico e social do indivíduo ao longo da vida; tempo e lugar(es) histórico(s) da sua vida; tempo social de acontecimentos fulcrais que vive; interdependência com vidas de outras pessoas; e agência humana nos processos de escolha.

Se estas perspetivas surgem bem sustentadas, já a caracterização das TIC nos parece demasiado restrita, na enumeração de dispositivos (computadores, internet e telemóveis) que serão considerados. Na desejada fertilização teórica terá sentido enfrentar os desafios de uma definição extensiva de TIC que não as reduzam à sua dimensão de objetos. Destaco a estabelecida teoria da “domesticação dos média”, trabalhada desde os anos 1980 na Sociologia dos Média e nos Estudos Culturais por Roger Silverstone, David Morley e outros. Esta teoria surgiu precisamente a partir da investigação etnográfica junto de famílias, quando novas tecnologias digitais estavam aí a chegar, desenvolveu conceitos como “economia moral da família”, e marcou processos de domesticação das TIC - apropriação, objetivação, incorporação e conversão. Considera-se que, além de objetos, as TIC transportam conteúdos carregados de significados simbólicos, e são apreendidas em contextos de consumo, numa tripla articulação que os meios móveis vieram acentuar. Vários capítulos deste livro, de resto, incorporam o conceito de affordance ligado a esta tripla articulação.

A obra está organizada em duas partes, a primeira com capítulos de natureza teórica e metodológica e a segunda reunindo um conjunto de estudos empíricos.

No primeiro capítulo, Natascha Mauthner e Karolina Kazimierczak destacam a relevância de teorias como construtivismo social, ator-rede e pós-humanismo para contrariar o popularizado determinismo tecnológico - e que tende a sustentar políticas públicas como aconteceu em Portugal com os programas e-escolas. Relativamente ao uso de tecnologias na vida familiar e nas transições de vida, Geoffrey Mead e Bárbara Barbosa Neves articulam recursivamente a teoria ator-rede e a teoria da estruturação para o estudo desta relação, ilustrando cada uma com aplicações e assinalando como as suas particularidades podem ser adequadas aos objetivos de um campo sobre o qual “não há uma perspetiva única e inquestionável” (p. 53). Anabel Quan-Haase e colegas apresentam o “individualismo em rede” como modelo conceptual e analítico para dar conta de transições que têm marcado famílias e comunidades em países de modernidade avançada, como o Canadá. No ensaio onde discute questões relacionadas com a circulação de imagens digitais, Amanda Du Preez reflete sobre a partilha de selfies a partir da sua posição geracional de mãe de um jovem que critica o modo como o expõe nesse processo. A sua reflexão, que recorre a conceitos do filósofo Paul Virilio sobre relações espaço-tempo, velocidade e aceleração, discute práticas parentais de vigilância digital sobre os filhos, sobre-exposição das suas imagens, e implicações de interações momentâneas em tempo real e logo dissolvidas.

Articulando e sistematizando as affordances de entidades digitais - redes, big data e ubiquidade - na recolha e análise de informação para o estudo de unidades de análise do curso de vida (como rotinas e transições), Alexia Maddox discute igualmente as limitações e as questões éticas colocadas por essas metodologias. Uma reflexão sobre benefícios e desafios de conjugar técnicas de pesquisa é o tema do capítulo assinado por Bárbara Barbosa Neves e colegas. O projeto multidisciplinar de investigação-ação sobre a adoção de tecnologias em idades avançadas como meio de quebrar o isolamento social e a solidão fez uso de metodologias mistas provenientes de áreas distintas - no caso, sociologia e ciências da computação. A encerrar a primeira parte, o capítulo de Cláudia Casimiro e Magda Nico revê a dupla relação entre tecnologias digitais e família. Apresenta um levantamento de estudos sobre usos e impactos das TIC nas relações familiares - as TIC enquanto objeto de estudo - e foca-se nas TIC enquanto instrumento de pesquisa, no caso, software de análise qualitativa de dados assistida por computador.

A investigação empírica dos seis capítulos da segunda parte do livro cobre relações entre membros da mesma geração familiar e entre membros de gerações familiares distintas, por vezes marcadas pela distância territorial - e não só - como nas famílias migrantes. Encontramos neste conjunto de estudos um acentuar de questões de género, de curso de vida, de posição social e mesmo da importância do contexto onde decorrem as relações entre gerações, como é o caso de famílias transnacionais.

A análise longitudinal assinada por Siyun Peng e colegas dá conta de como, nos Estados Unidos na última década, cresceu o uso de meios digitais por parte de mulheres idosas com o propósito de manter a relação com os seus filhos adultos. Nesta “solidariedade digital”, contudo, as autoras identificaram que dimensões como idade, estado de saúde, escolaridade, distância geográfica e etnia fazem diferença nessa prática. Analisando as narrativas das próprias, o capítulo de Sandra Cuban mostra as “cadeias do cuidado” a cargo de mulheres adultas imigrantes, que fazem uso das tecnologias para cuidar dos seus pais e familiares distantes, em África ou América Latina, e questiona as políticas de imigração norte-americanas que dificultam a reunião familiar. Por sua vez, o capítulo assinado por Yuka Sakamoto incide sobre a mediação das TIC na tensão entre trabalho profissional e família considerando as práticas de pais e de mães de crianças pequenas, em três áreas metropolitanas do Japão. O estudo, que recorreu a questionários online, concluiu que o maior grau de uso das TIC não fez reduzir a tensão entre aquelas duas esferas. A construção de uma “vigilância íntima” e a monitorização de parceiros proporcionada pelas tecnologias móveis é trabalhada no capítulo de Bernadette Kneidinger-Muller, que analisa o contexto de jovens adultos alemães, e no capítulo de Jolynna Sinanan e Larissa Hjorth, que analisam famílias com diferentes composições e origens a viver em Melbourne, Austrália. Por último, o modo como a partilha de vídeos e mensagens digitais pode ligar famílias colombianas afastadas geograficamente, explorado por Catalina Patiño, destaca as oportunidades dessas narrativas digitais, e faz notar também que o leque de competências implicadas leva a que membros mais velhos se possam sentir esmagados pelo ritmo intenso das mudanças tecnológicas (p. 215).

Os capítulos evidenciam assim tensões e contradições que emergem da relação entre tecnologias e famílias, gerações e curso de vida, “desconstruindo “visões utópicas e distópicas”, outro dos objetivos das organizadoras (p. 3).

Para o prosseguimento de uma agenda de pesquisa deste campo, o texto final que sintetiza e discute a obra, de Elizabeth Silva, aponta a exigência de “compreender os trabalhos do poder (institucional, corporativo, nas divisões sociais por idade, género, sexualidade, classe e etnicidade) como forma de captar as dinâmicas correntes das ligações digitais na vida familiar” (p. 285). Como sublinha, “a intervenção das ciências sociais neste campo implica que o material de pesquisa não seja dissociado do contexto onde se insere, a nível da sua produção, leitura, reprodução e releitura” (p. 287). Por isso sustenta que questões complexas de pesquisa (como estas) implicam um ecletismo teórico que proporcione interpretações segundo diferentes ângulos e a partir de diferentes métodos (p. 289).

No prefácio, Barry Wellman dava conta de como as famílias contemporâneas se diferenciam das de há 50 anos na sua composição, possibilidades de estarem conectadas territorialmente e nos seus “lares em rede”. Na perspetiva da fecundação interdisciplinar, assinalo por isso contributos da teoria da construção mediada da realidade (Couldry e Hepp, 2017) e destaco o estudo liderado por Ingrid Paus-Hasebrink (2019), que investigou processos de “fazer família” junto de 18 famílias com crianças, ao longo de 12 anos, indo da sua infância ao final da adolescência e de como os média fizeram deles parte. A triangulação teórica e metodológica deste estudo longitudinal constitui certamente um contributo para os estudos sobre TIC, famílias, gerações e curso de vida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COULDRY, N., HEPP, A. (2017), The Mediated Construction of Reality, Londres, Polity Press.         [ Links ]

PAUS-HASEBRINK, I., KULTURER, J. e SINNER, P. (2019), Social Inequality, Childhood and the Media. A Longitudinal Study of the Mediatization of Socialisation, Londres, Palgrave.         [ Links ]

PONTE, C. (2019), Recensão Connecting Families? Information & Communication Technologies, Generations, and the Life Course, Bristol, Policy, Press, 2018”. Análise Social, 230, LIV (1.º), pp. 200-203.

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