SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue230Europeans Globalizing: Mapping, Exploiting, ExchangingConnecting Families?: Information & Communication Technologies, Generations, and the Life Course author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.230 Lisboa Mar. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019230.11 

RECENSÃO

Marcus, Nathan

Austrian Reconstruction and the Collapse of Global Finance 1921-1931,

Cambridge, MA, Harvard University Press, 2018, 560 pp.

ISBN 9780674088924

Rui Pedro Esteves*

* Graduate Institute of International and Development Studies, Chemin Eugène-Rigot 2.ª, Case Postale 1672, 1211 Genève 1, Switzerland, rui.esteves@graduateinstitute.ch


 

A Áustria saiu da I Guerra Mundial derrotada e com um estatuto diminuído. Do centro de um império com 53 milhões de habitantes, o novo Estado viu-se reduzido a 6,5 milhões de austríacos, um terço dos quais em Viena, uma capital desproporcionada para um pequeno país. O princípio da auto-determinação proclamado pelo presidente Wilson legitimou a independência das populações polacas, eslavas e magiares do império Habsburgo. Contudo, séculos de coabitação dificultaram este processo de separação étnica. A Áustria foi ideada como o Estado para as populações alemãs do império, mas quase metade destas ficaram de fora das suas fronteiras. Por seu turno, muitos austríacos preferiam jogar o seu futuro numa união com a Alemanha. Os aliados, contudo, opunham-se a este pan-germanismo que teria de esperar pela ocupação nazi em 1938.

Se a convivência étnica questionava a razão de ser do Estado austríaco, a sua sobrevivência económica também estava em causa. Tradicional centro administrativo e de serviços do império, a Áustria viu-se subitamente desligada dos seus mercados, um choque agravado pelas forças do nacionalismo que criaram novas barreiras à circulação entre os anteriores territórios do império. As consequências foram bastante negativas para todas as nações envolvidas e fazem parecer insignificantes os temores do impacto de um Brexit desorganizado.

É neste contexto que Nathan Marcus, professor na Escola Superior de Economia de São Petersburgo, inicia a sua história política e financeira da república austríaca na década de 20. As autoridades de Viena confrontavam-se com um acumular de dificuldades no pós-guerra. Um setor produtivo desorganizado pela guerra e pelo encerramento de fronteiras, insuficiência alimentar, um crónico deficit comercial, elevada despesa e baixas receitas públicas. O deficit orçamental não tinha solução à vista pois, por um lado, o governo sentia-se responsável pelo elevado número de funcionários públicos (herdados da administração imperial) e, por outro, um súbito aumento dos impostos era politicamente impossível. Entretanto, os Aliados enquanto não decidiam que reparações exigir à Áustria, haviam imposto um hipoteca sobre todos os ativos do Estado. Nestas condições era impossível ao governo colocar novos empréstimos domésticos e, sobretudo, externos, restando-lhe recorrer ao Banco Nacional (OeNB) para monetizar o deficit. Como resultado houve dois períodos de hiper-inflação entre 1920 e 1922, durante os quais o nível de preços se multiplicou por mais de 2000.

E, no entanto, comparada com a Alemanha, a situação da Áustria parecia menos complicada. Contrastando com a vontade de punir a Alemanha pela sua alegada culpa no despoletar da Guerra, os Aliados rapidamente abandonaram a ideia de exigir reparações imediatas à pequena nação austríaca. França, Itália e Reino Unido tinham igualmente interesse em estabilizar a nova nação como baluarte contra a ameaça comunista que quase havia tomado o poder na vizinha Hungria e na Polónia. Mas esta boa vontade política de pouco servia no curto prazo. O governo austríaco recusava-se a adotar as reformas necessárias para estabilizar as suas contas até que os Aliados lhe permitissem financiar o ajustamento. Por seu turno, os Aliados e os bancos internacionais faziam depender novas linhas de crédito da adoção prévia de medidas para eliminar o deficit e travar a hiper-inflação. A solução acabou por surgir, inesperadamente, de Genebra. A Liga das Nações havia recentemente entrado em funções e, como nova organizacão internacional, procurava legitimizar a sua existência. A Liga ofereceu-se rapidamente para intermediar entre a Áustria e os banqueiros internacionais na colocação de um empréstimo para estabilizar a situação monetária e financeira. Em contrapartida, o governo austríaco aceitaria o controlo financeiro da Liga para assegurar os credores internacionais da prossecução das reformas.

A solução não era inédita, tendo sido aplicada a vários países mediterrânicos antes de 1913 (Tunísia, Grécia, Egito, Império Otomano). A novidade estava em aplicá-la a uma nação avançada (uma Kulturland em alemão). Para a historiografia austríaca, o governo de uma nação exangue teve de capitular perante o imperialismo financeiro em troca de um empréstimo colocado pelos banqueiros J. P. Morgan de Wall Street, graças ao qual a inflação estabilizou e a economia recuperou rapidamente. Uma das contribuições do livro é mostrar como a realidade das negociações tinha pouco que ver com o nacionalismo ferido dos contemporâneos. Apoiando-se em arquivos diplomáticos, o autor mostra como a solução encontrada convinha tanto aos Aliados como ao governo, que secretamente admitia preferir lidar com um organismo tecnocrático e politicamente independente. O sucesso do empréstimo austríaco foi depois copiado por cinco outros países europeus que recorreram à Liga para estabilizar a sua economia. A Liga erigiu-se então numa espécie de FMI avant la lettre, uma tecnocracia internacional com experiência e credibilidade para resolver os problemas macro-económicos dos Estados-membros.

A peça-chave da intervenção da Liga era o controlo das finanças, personificado num comissário geral enviado para Viena com vastos poderes, ao menos em teoria. A escolha recaiu num holandês pouco diplomático, Alfred Zimmermann, que controlava a utilização dos fundos do empréstimo internacional e tinha poder de veto sobre parte dos impostos austríacos e, sobretudo, sobre o levantamento de novos empréstimos. A imprensa da época e a historiografia desde então representam-no como uma espécie de procônsul financeiro. Esta fama convinha ao próprio governo que se podia servir do comissário geral como bode expiatório para medidas impopulares (outro paralelo com o FMI). Outra originalidade deste livro está em mostrar como a agressividade de Zimmermann se devia não aos seus tiques ditatoriais mas ao facto de o governo austríaco o ignorar. Após a estabilização monetária, a economia recuperou mais depressa do que o esperado, permitindo ao governo adiar as reformas prometidas. Uma vez equilibrado o orçamento, a urgência de cortar a despesa pública desapareceu, ainda que Zimmermann exigisse o despedimento de 100 mil funcionários em 2 anos. O OeNB recusou-se igualmente a aumentar as taxas de juro para forçar a descida dos preços, porque as contas externas haviam melhorado. Embora o deficit comercial permanecesse, era agora facilmente financiado por capitais externos atraídos pela segurança da tutela da Liga.

Em 1926, contra a recomendação dos próprios funcionários, a Liga terminou o controlo financeiro, segundo Nathan Marcus porque interessava à Liga fazer da sua primeira intervenção um “caso de sucesso”, fingindo ignorar a natureza instável da recuperação austríaca. Não só o governo não havia reduzido a despesa pública, como a economia dependia do crédito externo a curto prazo. Como os economistas da Liga advertiam, bastaria uma inversão nas expectativas dos credores externos para precipitar uma crise de financiamento. Mas o sucesso era sobretudo do governo que tinha ultrapassado a crise sem sacrificar níveis de vida nem enfrentar os conflitos redistributivos decorrentes do aumento das taxas de juro ou da deflação. Na expressão inglesa, they had their cake and ate it too.

A última parte do livro percorre o período até à crise bancária de 1931. Todo o estudante do período entre-guerras terá lido sobre a crise iniciada pela falência do Creditanstalt, o maior banco austríaco. O facto de a crise austríaca preceder em alguns meses crises bem mais importantes na Alemanha, Reino Unido e EUA levou muitos historiadores a concluir que houve um contágio da primeira para as últimas. Ao iniciar a fuga de capitais da Europa, a Áustria teria começado o efeito dominó que levaria ao colapso da finança internacional nos anos 30. Nathan Marcus discorda e tenta mostrar com novos dados financeiros e trabalho de arquivo que a crise austríaca havia sido travada com sucesso graças ao apoio do recém-criado Bank of Internacional Settlements (BIS) e do Banco da Inglaterra. O BIS, outra organizacão internacional sediada na Suíça, é conhecido como o banqueiro dos bancos centrais e ironicamente teve o seu batismo de fogo com a Áustria, tal como a Liga das Nações 9 anos antes. O colapso de dois dos maiores bancos alemães, poucos meses depois, é que teria dado início à crise financeira internacional. Esta interpretação não é nova, pois outros autores já haviam defendido a ausência de contágio da crise austríaca, mas este livro reforça-a.

Este livro recomenda-se sobretudo pela visão revisionista da história política e financeira da Europa Central e das suas implicações para a Grande Depressão. O leitor atento terá certamente notado as semelhanças com a crise do Euro e o próprio autor faz uma ligação explícita à crise grega no capítulo final. Desequilíbrio orçamental e externo, falta de autonomia monetária e intervenção tutelada por organizações internacionais parecem fazer do caso austríaco um prelúdio da crise do Euro. Mas é preciso ter cuidado com as analogias históricas e perguntar se as condições de partida e os processos históricos se assemelham verdadeiramente. Desde logo, os programas da Troika foram influenciados pelo que se julgava serem as lições da história dos anos 30. Em vez de arriscar uma crise bancária pan-europeia, a Troika disponibilizou financiamentos de emergência bem mais generosos que os empréstimos patrocinados pela Liga 90 anos antes. Os programas associados a estes empréstimos recordam as reformas exigidas à Áustria em 1922, mas mesmo aqui há diferenças. Por exemplo, a Troika nunca impôs um representante local com poder de veto sobre a política fiscal dos países envolvidos. Esta seria porventura outra lição da história. A caracterização dos credores externos como bodes expiatórios, se útil no curto prazo, ajudou à radicalização política com a ascensão de partidos populistas e nacionalistas e ao descrédito da cooperação internacional. Em 1933 a democracia austríaca cedeu perante um golpe de estado da direita conservadora. Quanto à Liga das Nações, apesar dos seus sucessos na década de 20, a história recorda-a sobretudo pela sua impotência em travar os conflitos que levaram à II Guerra Mundial. Resta esperar que a crise do Euro, o enfraquecimento do projeto europeu e a vaga populista que varre o mundo político não completem a analogia.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License