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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.230 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019230.09 

RECENSÃO

Navarro, Bruno J.

Um Império Projectado pelo “Silvo da Locomotiva”. O Papel da Engenharia Portuguesa na Apropriação do Espaço Colonial Africano. Angola e Moçambique (1869-1930),

Lisboa, Colibri, 2018, 602 pp.

ISBN 9789896891794

Hugo Silveira Pereira*

* Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Campus de Caparica, Edif. VII, piso 2 - 2829-516 Caparica, Portugal


 

A investigação sobre a história dos caminhos-de-ferro no território continental português tem conhecido robustos desenvolvimentos desde as seminais teses de Lopes Vieira, Magda Pinheiro ou Fernanda Alegria. Contudo, a produção académica sobre a ferrovia no antigo ultramar português não tem merecido igual interesse, contando-se um número bastante inferior de artigos, livros, obras coletivas ou dissertações (para um estado da arte recente: Pereira, 2015). Neste sentido, o livro Um Império Projectado pelo “Silvo da Locomotiva”. O Papel da Engenharia Portuguesa na Apropriação do Espaço Colonial Africano. Angola e Moçambique (1869-1930), de Bruno J. Navarro (que reproduz, grosso modo, a dissertação de doutoramento do autor, defendida em 2016 na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa) constitui um enorme contributo para aquele campo historiográfico.

Em termos formais, a obra está bem escrita e é de agradável leitura, mesmo para um público não-académico, ainda que o excessivo recurso a citações textuais e o tamanho de muitas das notas de rodapé torne a interpretação de algumas partes do texto menos imediata. Algumas destas informações podiam ser colocadas em anexo, inseridas no corpo de texto ou suprimidas, por não adiantarem muito mais à argumentação.

Estruturalmente, o livro está dividido do seguinte modo: à introdução, segue-se uma descrição detalhada da moldura legal e administrativa subjacente ao investimento, biografias de três engenheiros que se destacaram na implementação de vias-férreas em Angola e Moçambique e uma longa exposição sobre as linhas construídas no período indicado.

Na introdução, os objetivos são identificados de forma clara: demonstrar como o caminho-de-ferro contribuiu para o esforço colonizador nacional e para afastar a cobiça de outros países sobre os territórios sob soberania portuguesa, através de um exame crítico da implementação da ferrovia nos territórios angolanos e moçambicanos, desde as primeiras expedições de obras públicas (1869) ao Ato Colonial de 1930, realçando o papel da engenharia colonial portuguesa na política ferroviária ultramarina. A apresentação dos objetivos é acompanhada por uma apreciação do estado da arte sobre a história de Portugal em África, na qual se evidencia o défice de estudos sobre o império visto da perspetiva da história da tecnologia.

O autor recorreu a ferramentas teóricas que privilegiam a tecnologia como uma construção social, designadamente as metodologias actor-network, technopolitics e technopolitical regimes e o conceito de apropriação - este último é apresentado com o referencial teórico de Kostas Gavroglu, mas a perspetiva oferecida por Kärrholm (2012, pp. 137-138) seria porventura mais eficaz. Em todo o caso, ao longo do texto, o leitor fica com a sensação de que aquela estrutura analítica foi usada mais como guia orientador do que como metodologia operacional, acabando por prevalecer a hermenêutica histórica tradicional, eminentemente descritiva. Nada de censurável existe nesta escolha: como ensina Fátima Bonifácio (1999, pp. 97 e 124), uma das funções do historiador é “tornar inteligível o que aconteceu [já que] a história não pode perder toda a relação com a narrativa sob pena de deixar de ser história”. De qualquer modo, esta opção poderia estar mais explícita na introdução. Ainda sobre a metodologia, e considerando que a política ferroviária ultramarina favoreceu em grande medida a construção de linhas transnacionais, o recurso aos conceitos de cross-borders e landlocked countries (Faye et al., 2004) enriqueceria a análise. Tendo também em conta que o livro engloba três exercícios biográficos, nota-se a ausência das bases metodológicas deste método, sobretudo do conceito de persona científica (Darston e Sibum, 2003), que a curta menção a Söderqvist, Shortland e Yeo (p. 141) não supre completamente.

Seguidamente, o autor fornece uma contextualização do objeto de estudo com uma elaborada caracterização da estrutura administrativa (metropolitana e colonial) que geria a construção de obras públicas no ultramar. Embora a análise se pudesse ter limitado à organização dedicada à ferrovia, a inclusão de toda a máquina administrativa de obras públicas é bem-vinda, constituindo um instrumento para futuras investigações sobre a história da construção de estradas, barragens, telégrafos, etc. nas antigas colónias.

Nesta parte da obra, sente-se a falta de uma caracterização física dos territórios de Angola e Moçambique. Considerando que o caminho-de-ferro é uma realidade histórica com uma forte componente geográfica, convinha saber como era a orografia, hidrografia, clima, potencial mineral e agrícola dos domínios ultramarinos portugueses, e sobretudo o grau de conhecimento dos engenheiros e decisores políticos sobre esta realidade geográfica. Neste sentido, sente-se igualmente a falta de mapas que auxiliem a localização dos acontecimentos narrados no livro. As cartas geográficas escolhidas (pp. 574-576) praticamente só permitem apreciar a configuração dos territórios; a sua dimensão, escala e demais informação incluída dilui a presença das linhas férreas.

No capítulo 3, Bruno J. Navarro oferece três detalhadas biografias de engenheiros que se destacaram no setor das obras públicas em Angola e Moçambique: Joaquim Machado, Lisboa de Lima e Lopes Galvão. A escolha é arriscada, mas acertada. Arriscada, porque o elenco podia incluir outros personagens (desde logo, Costa Serrão); acertada, porque aqueles foram agentes fulcrais da história da presença técnica dos portugueses em África. Novamente, o autor optou por não centrar o seu foco no caminho-de-ferro e compilar a heterogénea carreira daqueles homens, o que traz vantagens e desvantagens. Se, por um lado, a análise é enriquecida com uma perspetiva mais ampla, por outro lado a questão ferroviária dissolve-se na narrativa. De qualquer modo, o exercício surte o efeito desejado e permite examinar a implementação da ferrovia na África Portuguesa através da visão dos principais protagonistas.

Seguidamente, entramos no capítulo relativo aos caminhos-de-ferro coloniais propriamente ditos. A análise foi dividida por linhas, uma escolha acertada, que permite uma organização da informação mais intuitiva. A tarefa de recolha de dados é, a todos os níveis, notável, ainda que tenha resultado numa narrativa demasiado descritiva. A compilação de diversas e abundantes fontes inéditas (relatórios técnicos impressos e manuscritos, correspondência, periódicos coevos) completa e aumenta o conhecimento preexistente, produzindo uma detalhada descrição da evolução dos sistemas ferroviários angolano e moçambicano, incluindo as grandes linhas de penetração e transnacionais, as vias de interesse local e os projetos que foram idealizados, mas não realizados, abordando questões como a discussão política, o financiamento das obras, a organização dos trabalhos, as especificações técnicas e as negociações diplomáticas. O trabalho é particularmente relevante para o sistema ferroviário de Angola, para o qual a produção bibliográfica preexistente não é tão abundante.

Os dois últimos capítulos fecham o livro. As conclusões são adequadas ao que foi escrito nas páginas que as antecederam, ainda que se note um algo excessivo protagonismo concedido aos engenheiros nacionais (que se nota inclusivamente no título da obra). Se é verdade que este grupo teve uma presença assídua na planificação, estudo e promoção da ferrovia como instrumento de império, também é certo que a construção e operação dos caminhos-de-ferro foi deixada, na maioria dos casos, a cargo de técnicos estrangeiros (já para não falar do facto de que o suporte financeiro para aqueles empreendimentos, que acabava por determinar o seu controlo, era também estrangeiro). Apenas as linhas de Moçâmedes e Suazilândia (e a de Lourenço Marques, depois da nacionalização, além das vias de interesse local) foram construídas e operadas por engenheiros do Estado; todas as outras foram dominadas por capital e expertise externos.

Seria também benéfica uma comparação mais articulada com o exemplo do sistema ferroviário metropolitano. Da leitura, fica a sensação de que os tecnocratas portugueses não tinham uma experiência prévia com os desafios da construção ferroviária, quando na verdade muitos dos problemas enfrentados em África (empreiteiros menos escrupulosos, forte presença de capital estrangeiro, ausência de uma planificação geral…) já se tinham colocado no assentamento da rede metropolitana.

De qualquer modo, nada disto põe em causa o mérito do trabalho em questão, compreendendo-se igualmente que nenhuma dissertação consegue abarcar todos as vertentes do tema que analisa. Aliás, esta obra tem a qualidade de ser um fim em si mesmo e um instrumento para futuras investigações. Fornece uma visão abrangente sobre um tema pouco conhecido na historiografia nacional e funciona como meio para esmiuçar a história das ferrovias coloniais com análises mais focadas em conceitos específicos (questão laboral, globalização, relação Estado-privados, história empresarial, análise estatística da operação e construção, tecnodiplomacia, estudos de paisagem, Antropocénico…), que a abundância de fontes também permite.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONIFÁCIO, M. F. (1999), Apologia da História Política. Estudos sobre o Século XIX Português, Lisboa, Quetzal.         [ Links ]

DARSTON, L., SIBUM, O. (2003), “Introduction: scientific personae and their histories”. Science in Context, 16(1/2), pp. 1-8.

FAYE, M. et al. (2004), “The challenges facing landlocked developing countries”. Journal of Human Development, 5(1), pp. 31-68.

KÄRRHOLM, M. (2012), Retailising Space. Architecture, Retail and Territorialisation of Public Space, Burlington, Ashgate.         [ Links ]

PEREIRA, H. S. (2015), “Portuguese railway history: still a field of opportunities?”. Mobility in History, 6(1), pp. 105-112.

PEREIRA, H. S. (2019), Recensão Um Império Projectado pelo “Silvo da Locomotiva”. O Papel da Engenharia Portuguesa na Apropriação do Espaço Colonial Africano. Angola e Moçambique (1869-1930), Lisboa, Colibri, 2018”. Análise Social, 230, LIV (1.º), pp. 185-189.

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