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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.230 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2019230.08 

RECENSÃO

Pinto, Alberto Oliveira

História de Angola da Pré-História ao Início do Século XXI, 2.ª ed.,

Lisboa, Mercado de Letras, 2017, 830 pp.

ISBN 9789728834265

Maria da Conceição Neto*

* Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Agostinho Neto, Avenida Ho Chi Minh, n.º 56, Caixa Postal n.º 1649, Luanda, Angola.


 

Alberto Oliveira Pinto é mestre e doutor em História de África pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com vários ensaios publicados. É também um homem da literatura, membro da Associação Portuguesa de Escritores e da União dos Escritores Angolanos, e já recebeu prémios em Portugal (Associação Portuguesa de Escritores, 1990) e em Angola (Prémio Sagrada Esperança, 1998). Os livros mais recentes incluem Imaginários da História Cultural de Angola (Prémio Sagrada Esperança, 2016) e A Criança Branca de Fanon. Ensaio Ego-Histórico sobre o Facto Colonial Angolano. Esta pequena nota biográfica, que os leitores facilmente poderão ampliar, justificaria por si só a expectativa criada pela sua História de Angola - da Pré-História ao Início do Século XXI, agora em 2.ª edição.

O título é ambicioso e excessivo para o que a obra nos apresenta, como veremos, mas talvez se deva aos interesses do editor, de olhos no mercado. O livro contém 20 capítulos, um prefácio do consagrado historiador e professor de história de África Elikia M’bokolo e um posfácio do historiador e crítico de arte Adriano Mixinge. Além das breves notas do autor à 1.ª e 2.ª edições, há um índice remissivo e um “Mapa de reis, governadores, altos-comissários e presidentes” de Portugal, da colónia de Angola e de alguns antigos Estados africanos. Esta 2.ª edição não difere da 1.ª na estrutura nem no conteúdo (com muito poucas alterações). O maior número de páginas deve-se à inclusão de uma resenha de opiniões elogiosas sobre a 1.ª edição (pp. 21-27), uma nota do autor à 2.ª edição (pp. 29-30) e um índice remissivo (pp. 803-820).

Desde o início, Oliveira Pinto avisa que, apesar de “susceptível de consulta e de leitura por outros académicos” este “não é, de modo algum, um livro académico” pois “destina-se a qualquer leitor” (p. 33). E faz bem em dizê-lo, já que a obra será estimulante sobretudo para quem não conhece o tema, incentivando o interesse por factos ali abordados e chamando a atenção para datas, episódios e personagens ignorados ou esquecidos do grande público. Uma boa ideia, considerando esse público, é a sintética cronologia que abre cada capítulo. O livro, porém, apresenta demasiadas lacunas e insuficiências para servir de guia num nível mais especializado, como o ensino universitário. Ao assumir que não fez um “livro académico”, o autor justifica também a quase total ausência de referências de suporte às afirmações e interpretações que apresenta. É um ponto de vista defensável numa obra de divulgação, evitando o recurso constante a notas de rodapé. Mas em obras deste tipo é usual indicar, por exemplo, as leituras fundamentais para cada capítulo. Deixar apenas uma bibliografia final, onde tudo se mistura - fontes primárias, obras de referência, literatura de ficção - não resolve o problema da necessária indicação das fontes mais confiáveis e pouco ajuda o leitor que queira avançar na exploração dos temas.

Apresentado o livro no geral, há que reconhecer o óbvio: na ausência de sínteses da história de Angola (excetuando sínteses parcelares, como as que Jill Dias (1825-1890) e Aida Freudenthal (1890-1930) redigiram há 20 anos para a Nova História da Expansão Portuguesa) esta proposta de panorâmica geral de Alberto de Oliveira Pinto terá por um bom tempo público garantido, em países de língua portuguesa, ao trazer uma apreciável soma de informações (sobretudo na primeira metade do livro, anterior ao século XVIII) e usar um tom narrativo suficientemente atraente para manter o interesse pela leitura. Precisamente por tentar preencher um vazio evidente, não lhe faltaram os elogios, antes de leituras mais atentas lhe apontarem as debilidades. As críticas vieram sobretudo de colegas que investigam e ensinam história de Angola e não entendem a omissão de bibliografia fundamental (o século XVII sem Beatrix Heintze?…) que teria evitado não poucos erros e o relativo alheamento de conceções historiográficas menos descritivas e mais problematizantes. Note-se que a bibliografia não poupa espaço para incluir literatura de ficção, de Júlio Verne a Bocage, de Castro Soromenho a Reis Ventura e Pepetela.

Nos limites desta recensão não cabe comentar, capítulo a capítulo, os erros factuais, as insuficiências bibliográficas, as opções temáticas ou as conceções historiográficas subjacentes a essas opções. Erros à parte, é normal que Oliveira Pinto defenda as suas escolhas. O que, porém, não é “normal” são os graves desequilíbrios no tratamento dado a diferentes períodos, regiões e temas, que impedem esta obra de ser “abrangente” ou “exaustiva” (adjetivos do próprio autor), ou de ser apresentada como uma súmula da investigação contemporânea sobre história de Angola.

Não se justifica, por exemplo, que o século XVIII ocupe pouco mais de 50 páginas (pp. 421-476) e quase exclusivamente consagradas à área Kongo (a sul e a norte do rio Zaire) e aos “governos pombalinos” e outros aspetos da pequena colónia portuguesa de então. A produção historiográfica das últimas três décadas permitiria um panorama muito diferente, disponibilizando fontes e estudos sobre regiões de Angola fora do controlo português e daquele quadrante noroeste cuja “supremacia” historiográfica (devida, precisamente, às fontes existentes) já não tem tanta justificação depois do século XVII. Considerando o que o tráfico transatlântico de escravos implicou de dinâmicas, relacionamentos mais ou menos distantes, crises e ajustamentos, no território de Angola e zonas vizinhas (e não se entenderá a “história de Angola” sem elas), são autores inadmissivelmente ausentes Joseph Miller (Way of Death) e José Curto, para indicar os mais óbvios. Ao século XIX, para o qual a historiografia vem cobrindo, também há décadas, quase todo o território angolano, são dedicadas 140 páginas (pp. 477-617). Ou seja, o livro reserva a estes dois séculos apenas 200 das suas mais de 700 páginas. Assim, quando precisamente se entra no período em que podemos, com mais segurança, integrar na “história de Angola” regiões e povos que virão a constituir “Angola” atual, o autor volta as costas à bibliografia essencial e parece reduzir o seu interesse pelos processos em curso nas sociedades africanas independentes.

Alguma disparidade entre povos e áreas geográficas seria sempre inevitável, dado o contraste entre zonas “ricas” e zonas onde a escassez de fontes disponíveis deixa vazios dificilmente superáveis. Porém, não seria difícil referir com mais destaque as regiões do leste, do centro e do sul. Esta é uma “história de Angola” centrada no noroeste angolano, incluindo a colónia portuguesa que, até meados do século XIX, se limita a uma parte dessa região, à excepção do eixo Benguela-Caconda, mais a sul. O argumento de falta de estudos para o resto do território, legítimo para épocas anteriores, não faz sentido para os séculos XVIII e XIX. O autor ignorou tanto a bibliografia contemporânea como a ajuda de documentação publicada desde os tempos coloniais sobre as terras “do sul” (como os dois volumes de Ao Sul do Cuanza ou A Famosa e Histórica Benguela de Ralph Delgado). Autores notoriamente ausentes são (numa indicação sumária, já que facilmente se encontrarão as referências online) Maria Emília Madeira Santos, Beatrix Heintze (para além de duas obras citadas) Roquinaldo Ferreira, Mariana Cândido, Linda Heywood, Jan Vansina (How Societes are Born), entre outros. Um exemplo bastará: apesar de ser o comércio de marfim, cera, oleaginosas e, depois, borracha, a alimentar a economia de Angola quando declina o tráfico de escravos, nos capítulos XIV, XV e XVI que cobrem a segunda metade do século XIX não se mostra interesse pela expansão dos Cokwe nem pelo comércio de longa distância dos Ovimbundu ou dos Bazombo.

Quanto ao século XX, com cerca de 150 páginas, bastaram 17 para “resolver” o período 1961-1974 (pp. 710-727), no qual esperaríamos ver, por um lado, o desenrolar da guerra pela independência (várias organizações, várias frentes e formas de luta) e, por outro lado, mudanças legislativas, económicas e sociais que acompanharam a resposta militar portuguesa e sem as quais não se entende a sociedade angolana na altura da independência. De novo, mais do que apontar os erros factuais, criticaremos a ausência de autores obrigatórios: John Marcum, René Pélissier (La colonie do Minotaure), Christine Messiant, Marcelo Bittencourt, Jean-Martial Mbah, Didier Péclard, Franz Heimer, entre outros.

Não se trata de exigir um saber enciclopédico ou obra definitiva, que não existe em história, mas de reconhecer que qualquer história de Angola “condensada num só livro” (p. 31) deve trazer ao leitor um quadro equilibrado e o mais abrangente possível. Como justificar a não utilização de bibliografia que permitiria cumprir, apesar de inevitáveis lacunas, esse objetivo?

Fica também por explicar a distinção “Angola” e “Cabinda” nos títulos (ver capítulo XII e seguintes). Deduz-se das indicações do próprio autor que pretendeu escrever uma história das sociedades existentes no espaço que veio a ser ocupado pelo país (atual) Angola, cujas fronteiras não faz sentido projetar para o passado. Por isso, não se entende destacar “Cabinda” a partir de certa altura quando, na mesma época (século XVIII), também o reino do Kongo não era “Angola”, nem a Matamba o era, nem Kasanje, Mbalundu ou Viye nem, na verdade, a maior parte do que no futuro faria parte da colónia portuguesa. Além disso, Oliveira Pinto parece usar “Angola”, em capítulos seguintes, para designar o limitado espaço dominado por Portugal ou com relações diretas com ele. Introduz-se, assim, um elemento de confusão no leitor sobre o que é “história de Angola”, ou “história da colónia portuguesa de Angola”, ou “história da presença portuguesa em Angola”, confusão que, noutras ocasiões, o próprio autor rejeitou.

O índice remissivo (pp. 803-820), instrumento inegavelmente útil, ganhará em ser revisto em próximas edições. Nele se encontram “telefones” e “queimadas” mas não chefes políticos referidos no texto como Ndunduma, Ekwikwi II e o seu sucessor Numa, Sihetekela, e outras personalidades e lugares importantes.

Grandes desequilíbrios cronológicos, regionais e temáticos (as questões económicas perdem, de longe, para as literárias…) pesam sempre negativamente em obras deste tipo e impedem que possamos considerar o livro de Oliveira Pinto uma boa “síntese” da história de Angola, muito menos um “manual” para universitários. Os programas de História de Angola em vigor em universidades angolanas há décadas, ou as atas publicadas de várias conferências internacionais de História de África e de História de Angola, algumas organizadas ou co-organizadas pelo Ministério da Cultura angolano, revelam uma história (e uma historiografia) mais diversificada do que o autor faz supor.

Propositadamente mencionamos Angola, pois é estranho que Oliveira Pinto, visitando Luanda várias vezes, ignore o que tem sido publicado, de angolanos e não angolanos, pelas editoras Kilombelombe, Nzila, Mayamba, Mulemba e pelo próprio Arquivo Nacional de Angola. Não se trata de sobrevalorizar a modesta historiografia angolana, mas da obrigação de conhecer não só resultados de investigações como reflexões metodológicas que, dentro e fora de Angola, vêm permitindo aprofundar a sua história.

São muitas as dificuldades no caminho de quem pretenda fazer obra deste género, sintetizando o melhor da historiografia existente e, simultaneamente, cartografando os vazios que se fazem sentir, quer se considerem horizontes geográficos, temporais ou epistemológicos. O insucesso de tentativas anteriores (p. 31) justificou os aplausos ao facto de Alberto Oliveira Pinto ter enfrentado o desafio e publicado a sua “história de Angola”. Para muitos poderá ser uma útil iniciação, com informação interessante e nem sempre fácil de obter fora de restritos círculos académicos. Mas o resultado ficou muito aquém do anunciado e do que poderia ter sido, se o autor se libertasse mais dos seus trabalhos anteriores e explorasse melhor a vasta bibliografia existente (estudos de caso, sínteses parciais, edições críticas de fontes, debates metodológicos) dentro e fora dos espaços de língua portuguesa. Isso permitiria, também, evitar muitos dos erros veiculados no texto. Fundamentalmente, é preciso que não se confunda a síntese histórica, mesmo assumidamente provisória e lacunar, com um repositório de factos mais ou menos interessantes, temperados com digressões literárias, adjetivação e comentários libertos da obrigação de se justificarem. Citando o autor (p. 30), “a concretização de projectos mais abrangentes sobre a história de Angola… continua a ser uma premência”. E, acrescentamos, uma promessa adiada.

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