SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue229Identidades: a Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa Dec. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.17 

RECENSÃO

Velez, Pedro

Das Constituições dos Regimes Nacionalistas do Entre-Guerras,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2016, 289 pp.

ISBN 9789726713807

Pedro T. Magalhães*

* Centre of European Studies (CoE in Law, Identity, and the European Narratives), University of Helsinki, Siltavuorenpenger 1a - 00014, Helsinki, pedro.tereso@helsinki.fi


 

A relevância do entre-guerras para compreender os desafios dos nossos dias tem sido avidamente explorada nos mais diversos quadrantes das humanidades e das ciências sociais. O interesse por tal período histórico é compreensível. Num presente lido predominantemente sob a óptica da crise, nada se afigura mais natural do que recuperar aquela instância da história moderna europeia que, balizada por duas traumáticas experiências de violência e horror, não se deixa ler sob outra perspetiva. Mais concretamente, à ciência política e ao direito tem interessado, sobretudo, a crise da democracia liberal no entre-guerras, onde buscam pistas para pensar os indícios de “desconsolidação” ou “regressão” que parecem colocar em causa um consenso demoliberal que, depois da Guerra Fria, chegou a ser pensado como fim da história.

Ora, sob este pano de fundo, a monografia de Pedro Velez sobre a configuração político-constitucional dos regimes nacionalistas do entre-guerras apresenta-se, essencialmente, como um estudo histórico. O seu objetivo primeiro não é recuperar o passado para pensar o presente - apenas na conclusão se faz breve referência à possibilidade de uma “reactualização parcial” (p. 260) do nacionalismo do entre-guerras na Hungria de Orbán e na Rússia de Putin -, mas restaurar pluralidade e diversidade a um conjunto epocalmente restrito de experiências político-constitucionais frequentemente agrupadas sob categorias imprecisas (sendo a etiqueta “fascismo” a mais polémica de entre elas). A questão que se coloca é saber se esse objetivo pode ser atingido sem resvalar para um registo idiossincrático que se perca nas minudências jurídico-constitucionais dos 21(!) regimes convocados para análise. A resposta, apesar dos inegáveis méritos da obra - que vão da sólida ancoragem filosófica do argumento ao exaustivo trabalho de revisão bibliográfica que subjaz a cada capítulo, abrangendo literatura de proveniência disciplinar e linguística diversa -, afigura-se-nos negativa. Passemos a explicar porquê.

A sinopse que apresenta o estudo, ainda antes da introdução propriamente dita, sintetiza com clareza a sua tese. O qualificativo “nacionalistas” surge de facto como aquele que permite um olhar de conjunto sobre os regimes em apreço, uma vez que todos eles se caracterizam pela sua tentativa de “elevação da comunidade política”, entendida como comunidade eminentemente estatal-nacional, “ao status de Bem Supremo” (p. 17). Essa elevação, contudo, nem sempre logrou conduzir-se ao absoluto. Num conjunto importante de casos, ela foi limitada pela persistência de um legado liberal herdado do constitucionalismo oitocentista. Noutro, a abertura da ordem constitucional a uma normatividade “transcendente” de proveniência religiosa (especificamente: católica) obstou a que a nação se alcandorasse a valor absoluto. Parecia gizar-se, pois, uma tipologia tripartida analiticamente promissora. Digo parecia porque o autor acaba por propor um quadro supostamente mais denso, mas que no limite se revela apenas mais confuso, do que aquele que a sinopse esboça.

Na introdução, faz-se breve referência a uma “indicação editorial” (p. 19) que terá sugerido restringir o foco aos casos relativamente menos explorados na literatura - sugestão com base na qual o autor justifica a opção de não considerar o fascismo italiano e o nazismo alemão. Se tais casos foram objecto de análise na dissertação de doutoramento na qual se baseia o livro, aparecem agora descartados em nome de um imperativo de “novidade” que carece de justificação substantiva. Na verdade, estamos perante ausências omnipresentes, na medida em que esses casos são constantemente invocados para, por aproximação ou diferenciação, precisar os contornos dos regimes efetivamente abordados. Note-se, por exemplo, que a redação do capítulo primeiro, nos seus parágrafos iniciais, pressupõe capítulos anteriores dedicados ao fascismo e ao nacional-socialismo (cfr. pp. 29-30, ns. 1-2). Mas o problema maior é que essas ausências dificultam, em vez de potenciarem, o esforço de síntese analítica. Na verdade, julgo, só a partir dos casos italiano e alemão se poderia construir, para falar em termos weberianos, um tipo-ideal de médio alcance que abarcasse e iluminasse as diversas experiências em que a (ou certas interpretações da) comunidade política estatal-nacional se erigiu tendencialmente a valor supremo. Experiências essas, que na taxinomia proposta por Pedro Velez se encontram dispersas por categorias de reduzido alcance heurístico.

A parte “empírica” da obra divide-se em sete capítulos. Seria suposto que estes nos devolvessem um retrato matizado, mas ainda assim globalmente iluminador, da paisagem político-constitucional em questão. No entanto, basta olhar para os seus títulos, isto é, para os guarda-chuvas conceptuais sob os quais se agrupam os casos, para nos apercebermos do seu desequilíbrio. Senão vejamos: “os novos ‘constitucionalismos’” (capítulo 1); “os ‘Estados católicos’” (capítulo 2); “o antinómico ‘monismo católico’” (capítulo 3); “os nacionais-cristianismos húngaro e francês” (capítulo 4); “os casos etnolátricos” (capítulo 5); “outras experiências político-constitucionais” (capítulo 6); “alguns exemplares extra-europeus” (capítulo 7).

De entre eles, como facilmente se intui, só uma minoria emerge como exemplo de construção conceptual bem conseguida, capaz de subsumir os casos a uma perspetiva precisa e relevante para o argumento geral da obra. Começando pelo fim, o critério geográfico que organiza o capítulo 7 é extemporâneo e arbitrário. Por razões óbvias, é mais aquilo que separa os dois regimes aí analisados - Estado Novo brasileiro e Japão neo-imperial - do que aquilo que a sua circunstância extraeuropeia alguma vez poderia aproximar. Por outro lado, quando um estudo comparativo recorre a uma categoria indiferenciada (capítulo 6) para aí depositar o que a sua grelha conceptual não logra distinguir com precisão, evidencia logo aí uma considerável insuficiência.

Em boa verdade, só os dois capítulos iniciais cumprem a promessa de lançar luz sobre o seu objeto. No capítulo 1, cinco casos (Polónia, Lituânia, Estónia, Jugoslávia e Roménia) são estudados sob a óptica de uma nova preeminência do “valor nação” que se articula, sendo por eles qualificada e mitigada, predominantemente em moldes e linguagem constitucionalistas herdados das experiências demoliberais que marcaram a sua (re)fundação como Estados independentes, no imediato após-I Guerra. O capítulo 2, por seu turno, sublinha a receção do catolicismo como elemento indispensável, mas que simultaneamente lhe impõe uma limitação “exterior”, do credo nacionalista nos regimes de Franco (Espanha), Salazar (Portugal) e Dolfuß/Schuschnigg (Áustria). A partir daí, porém, o quadro torna-se confuso.

O capítulo 3 corresponde a uma desnecessária problematização do caso espanhol, que é cindido em três para sublinhar as diferenças entre, por um lado, o franquismo tal qual se viria a consolidar como Estado católico (cap. 2) e, por outro, as tendências nacionalistas mais totalizantes que marcaram a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930) e os primeiros anos do regime de Franco. O capítulo 4 particulariza os casos húngaro (sob Horthy/Bethlen) e francês (Vichy) para falar de uma relação entre nacionalismo e cristianismo em que o primeiro, não absorvendo nem instrumentalizando o segundo, tão-pouco o reconhece como princípio normativo autónomo que se impõe à ordem política. Já o capítulo 5 destaca, em alguns regimes do Leste europeu, leituras étnicas plenamente “absorventes” do nacionalismo, sublinhando, em tons voegelinianos, o caráter herético da sua receção do “religioso tradicional” (p. 193). Nas duas não-categorias que já referimos acima (capítulos 6 e 7), são vertidos os casos remanescentes.

Em suma, o livro de Pedro Velez claudica ao nível da construção de conceitos que, num nível intermédio de generalização, sejam capazes de fazer a ponte entre a perspetiva jurídico-filosófica geral da obra e o seu estudo “microscópico” dos casos. Pode, claro está, dizer-se que o material é todo ele iluminado pela ideia condutora, explanada na introdução, do constitucional como lugar eminentemente religioso (e não apenas político) do direito. Contudo, para que a intuição teológico-política, de filiação schmittiana, dialogasse proficuamente com as peculiaridades deste ou daquele regime constitucional, seria necessária a intermediação de uma tipologia mais trabalhada. Na sua ausência, a viagem pela paisagem político-constitucional do entre-guerras perde fio condutor e caba por dispersar-se num registo que é mais de justaposição de casos do que de comparação reciprocamente iluminadora.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License