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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa Dec. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.14 

RECENSÃO

Pereira, Miriam Halpern

A Primeira República. Na Fronteira do Liberalismo e da Democracia,

Lisboa, Gradiva, 2016, 2.ª ed., 219 pp.

ISBN 9789896167295

Manuel Baiôa*

* Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora (CIDEHUS-UE) e Instituto Politécnico de Beja, Palácio do Vimioso, Largo do Marquês de Marialva, n.º 8, - 7000-809 Évora, Portugal.


 

Miriam Halpern Pereira, Catedrática Emérita do iscte-iul, é atualmente uma das investigadoras mais experientes da historiografia portuguesa, com uma vasta obra publicada sobre temas diversificados de história contemporânea, com especial relevo para a história económica e social.

A autora elaborou uma síntese sobre a Primeira República (1910-1926), abrangendo um conjunto muito alargado de temas. É um livro particularmente útil para o público em geral e para os jovens estudantes universitários que pretendam tomar contacto com este período histórico. Nesse sentido, será possivelmente a melhor síntese de uma história total sobre a este período histórico, apresentando-nos para cada tema um resumo com o “estado da questão”, alicerçado num conhecimento profundo sobre a historiografia da Primeira República e num rigor e maturidade interpretativa. Aquando da comemoração do centenário da implantação da Primeira República foram publicados muitos livros síntese sobre este regime, mas ou abarcavam apenas questões de história política, ou foram elaborados por uma equipa de investigadores, o que lhes retirou a coerência e a interpretação de carácter global que este livro nos trás.

O livro está organizado em cinco capítulos, aos quais se somam um vasta introdução, uma breve conclusão e uma pequena bibliografia.

A introdução centra-se na história política, dividida em quatro tópicos: “Queda da Monarquia Constitucional” (pp. 11-22); “A ‘República Forte’ ” (pp. 22-34); “A ‘República Nova’ ” (pp. 34-39); “A ‘Nova República Velha’ ”(pp. 39-54). Nestas páginas a autora apresenta os principais acontecimentos da evolução política, bem como os protagonistas e as mais importantes organizações políticas, numa narrativa política que contextualiza o devir português no âmbito internacional. Nesta introdução teria sido mais didático e rigoroso, pelo menos na primeira referência, utilizar o nome oficial e completo dos partidos políticos: Partido Republicano Evolucionista e União Republicana, em vez de Partido Evolucionista e Partido Unionista (p. 25).

No primeiro capítulo denominado “Laicização e cidadania: o projecto cultural e político” (pp. 55-79) a autora apresenta os principais objetivos do regime republicano ao nível cultural e da cidadania. Os republicanos pretendiam a laicização da sociedade portuguesa e a sua concretização materializou-se na “Lei da Separação do Estado das Igrejas” (p. 62). Procuraram ainda impulsionar a cidadania através da educação, pelo que promoveram vários projetos ao nível do ensino primário, secundário e universitário, mas também ao nível da difusão da leitura pública (p. 76) e do apoio a associações que pretendiam “criar o ‘homem novo’ e a ‘sociedade nova’, em consonância com o ideal positivista de progresso” (p. 55).

O segundo capítulo aborda a relação entre o “Estado e a cidadania” (pp. 81-107). Em primeiro lugar analisa o adiamento da democratização do regime republicano pela não implantação do sufrágio universal e pela manutenção do caciquismo e de um sistema eleitoral com pouca lisura e transparência, que o aproximava mais dos países da América Latina do que dos países da Europa Ocidental (pp. 87-99). Aborda ainda o surgimento da nova elite política, que tem características diferentes do período anterior, pois a República propiciou uma maior “mobilidade social e política”, que provocou uma “profunda renovação do pessoal político”. A nova elite política da I República é mais jovem, tem menos experiência política e “recursos mais modestos” quando comparada com a elite da monarquia constitucional (p. 89). No entanto, a formação universitária continuou a ser preponderante, com um reforço significativo da presença de médicos e militares no Parlamento e no Governo. Ainda assim, foi possível, pela primeira vez, chegarem ao Parlamento alguns operários, devido ao alargamento das condições de elegibilidade do sufrágio passivo. Noutro subcapítulo aborda os “cidadãos e as armas” (p. 90), analisando as permanências e transformações que a República trouxe para as Forças Armadas e para as forças de segurança pública, como a serviço militar obrigatório, a preparação para a Grande Guerra, a criação da Guarda Nacional Republicana, a manutenção de uma atuação musculada das forças de segurança nas greves e manifestações e a progressiva militarização da política. Por fim aborda o “Estado e as relações laborais” (p. 97) e o “Feminismo e a cidadania” (p. 101). Nestas áreas a República trouxe alguns ventos progressistas, como o direito à greve, a redução do horário de trabalho, as leis do divórcio, da família e o fim da discriminação civil da mulher. No entanto, a lei da greve tinha muitas limitações, houve imensos obstáculos para concretizar uma verdadeira redução do horário de trabalho em muitos setores e a mulher não viu reconhecida a igualdade face ao homem na cidadania económica e política.

No terceiro capítulo estuda “o espaço público e cívico” (pp. 109-159), debruçando-se sobre a evolução da imprensa e dos movimentos socialista, anarquista, monárquico e católico. Posteriormente aborda com detalhe o associativismo patronal e sindical e o protesto popular. Por fim, debruça-se sobre o mutualismo e sobre a criação do seguro social obrigatório. A autora demostra que durante a Primeira República houve um grande crescimento na participação cívica, pelo que um grande número de portugueses que até aí estavam excluídos de qualquer atividade puderam, finalmente, participar pela primeira vez num amplo espectro de associações. Miriam Halpern Pereira explica esta alteração pela mudança de regime, mas na maioria dos países europeus, no mesmo período, também houve um crescimento substancial da participação cívica.

O quarto capítulo aborda a economia e as finanças (pp. 161-189). Analisa a evolução da agricultura, do comércio e da indústria, descrevendo detalhadamente a evolução de diferentes produtos e serviços. A agricultura continuou a ser o principal setor económico, e nos anos 20 foi o setor com maior crescimento anual relativo (p. 166). A Grande Guerra propiciou um crescimento da indústria nacional, mas reduziu as remessas dos emigrantes e desequilibrou as finanças públicas, que estavam equilibradas nos primeiros anos do regime republicano.

O quinto capítulo trata da dimensão colonial e da emigração (pp. 191-209). O republicanismo tinha uma forte dimensão colonial, o que contribuiu para que durante a I República houvesse uma consolidação e modernização do Império africano (p. 209). Os vastos planos e projetos de desenvolvimento da agricultura, da exploração mineira, das obras públicas e dos serviços ficaram limitados pela dificuldade em atrair investimentos e brancos da metrópole para as colónias. Nesse período a atração pela emigração para o continente americano e em especial para o Brasil foi mais forte e teve um forte impacto na entrada de divisas.

Na conclusão, a autora faz um resumo dos diferentes temas abordados nos capítulos anteriores e defende a seguinte tese: a Primeira República institucionalizou “um regime situado na fronteira entre o liberalismo e a democracia” (p. 213), que de resto dá nome ao livro. Miriam Halpern Pereira apresenta alguns bons argumentos para sustentar que a Primeira República aprofundou o liberalismo, retomando “alguns dos [seus] princípios fundamentais […] que tinham vindo a ser abandonados no período final da Monarquia Constitucional” (p. 212) e aproximou-se da democracia e de uma sociedade progressista, uma vez que os cidadãos passaram a ter uma participação mais ativa nas múltiplas associações que foram criadas neste período; a mulher conseguiu libertar-se de algumas “formas de dependência e de discriminação no âmbito familiar, civil e profissional” (p. 213); houve um aprofundamento da igualdade social; a política fiscal foi alterada para conseguir uma maior equidade; o projeto de laicização do Estado e uma maior abertura a outras confissões religiosas foi determinante para a modernização da sociedade e para a criação do “homem novo”; as novas leis da Separação do Estado das Igrejas, da greve, do divórcio, da família e do registo civil constituíram avanços culturais e cívicos na construção de uma mentalidade progressista e democrática; o alargamento do ensino público e da leitura pública permitiram um acesso mais fácil à plena cidadania; a renovação da elite política permitiu o acesso ao poder de novos estratos sociais; a obrigatoriedade do serviço militar reforçou a “equidade cívica face à defesa da Nação” (p. 214). Contudo, a autora não deixa de assinalar diversos bloqueios à afirmação plena da democracia e do pluralismo: na Primeira República “as limitações de género e de literacia continuaram a privar da cidadania ativa a maior parte da população portuguesa”; nas colónias a “descriminação racial continuava a cercear o acesso à cidadania portuguesa” (p. 213); a mulher continuou sem acesso à cidadania económica e política; a relação do regime republicano com o mundo operário ficou marcada por uma grande violência e por uma ausência de uma verdadeira concertação social; as Forças Armadas que inicialmente tinham sido concebidas como uma “escola cívica” foram politizadas e radicalizadas, tendo contribuído decisivamente para a queda da Primeira República; o regime republicano teve uma elevadíssima instabilidade e violência política e manteve as práticas de clientelismo, de caciquismo e de pouca transparência nos atos eleitorais, o que contribuiu decisivamente para descredibilizar e deslegitimar a Primeira República. Ainda assim, colocando nos pratos da balança os aspetos positivos e negativos, a autora deixa transparecer uma visão positiva sobre o regime republicano.

Miriam Halpern Pereira poderia ter dedicado algumas páginas ao debate historiográfico sobre a Primeira República, que é vivo e complexo. Começando pelo lado esquerdo, temos autores como A. H. de Oliveira Marques e Alice Samara, entre outros, que sublinham preferencialmente os aspetos modernos e positivos do regime, no sentido progressista e tendencialmente democrático. Ao centro, um conjunto alargado de historiadores, como António Costa Pinto, António José Telo, João B. Serra e Fernando Farelo Lopes, que valorizam as características liberais de continuidade da Primeira República: o sistema oligárquico manteve-se, pois os lugares cimeiros da sociedade continuaram a ser exercidos por uma elite com formação universitária, embora as classes médias republicanas tivessem tido um acesso mais facilitado aos postos mais elevados da administração; a República não facilitou o acesso à cidadania aos pobres, aos iletrados e às mulheres; as práticas políticas de caciquismo e de fraude eleitoral permaneceram quase inalteráveis; a Primeira República não acompanhou a onda de aprofundamento do liberalismo no sentido democrático, que ocorreu em muitos países europeus, no sentido de implantar o sufrágio universal e o sistema proporcional; as políticas sociais de apoio aos setores mais frágeis da sociedade foram muito ténues; a Primeira República foi o epílogo tardio do velho liberalismo em acelerado processo de falência. A visão que Miriam Halpern Pereira nos propõe oscila entre estes dois grupos, embora tenda mais para o lado esquerdo. À direita temos ainda um grupo de historiadores liderados por Vasco Pulido Valente e Rui Ramos, que sublinham o carácter iliberal e revolucionário da Primeira República. Para estes autores o regime republicano nunca passou de um estado de exceção, estruturalmente revolucionário, que manteve uma guerra civil larvar, em que uma vanguarda jacobina e intolerante protagonizada pelo Partido Republicano Português manejava uma ditadura de massas e atuava muitas vezes na ilegalidade. Nesse sentido, o regime republicano era pouco ou nada liberal e até bem menos pluralista do que fora o constitucionalismo monárquico.

Em conclusão, estamos perante um excelente livro de síntese da I República, numa visão madura, plural, global, bastante objetiva e fundamentada. Poderia ter dado um peso maior à temática cultural e ter proporcionado uma maior orientação bibliográfica aos que querem aprofundar esta temática. Ainda assim, é uma obra-chave da historiografia portuguesa.

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