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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa Dec. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.13 

RECENSÃO

Ferreira, Eduardo P.

Os Anos Trump: O Mundo em Transe,

Lisboa, Gradiva, 2018, 236 pp.

ISBN 9789896168308

Pilar Damião de Medeiros*

* Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais - CICS.UAC/CICS.NOVA.UAC, Universidade dos Açores, Avenida de Berna, 26-c - 1069-061 Lisboa, Portugal, pilar.sl.medeiros@uac.pt


 

Em Os Anos Trump: O Mundo em Transe, Eduardo Paz Ferreira convida-nos a refletir criticamente sobre a desumanidade dissolvente e a estranheza do nosso modus vivendi, agora temperado pela ação de um protagonista que mais parece ter saído de uma peça do teatro do absurdo: Donald Trump. Pese embora ter a realidade norte-americana como principal objeto de análise, o autor destaca, por um lado, os efeitos nefastos do impulso impessoal do neoliberalismo encabeçado pelo “Homem de Davos”, e, por outro, condena o regresso aos populismos étnico-culturais tribalistas, aos autoritarismos, aos ódios nacionalistas e racistas, que ressoam aos velhos tambores das reivindicações territoriais. Eduardo Paz Ferreira denuncia a crescente indiferença moral das consciências entorpecidas que se alimentam abundantemente de um ethos infantil da cultura fun, e desconstrói quadros de narrativa suportados pela atual hipersimplificação política e mediática. Através do seu saber enciclopédico, da sua eloquência crítica e do seu agudo sentido analítico, Paz Ferreira alerta-nos para os perigos de uma caixa de Pandora que se abriu e ameaça a sobrevivência da humanidade. Bem sabe que o status quo não é uma solução viável. Ou o alteramos e melhoramos ou destruímo-lo.

Quando Noam Chomsky pergunta no seu mais recente livro: Quem Governa o Mundo?, Paz Ferreira certamente responderia: “Os homens de Davos” que, anualmente, tomam de assalto a “montanha que já não é mágica”, de Thomas Mann. Para o autor, Davos é sinónimo de poder financeiro e é, sobretudo, habitado por homens de fé religiosa na infalibilidade do mercado desregulado, que preferem um mundo “sem regras e em que a força e o poder económico tudo comandam”.

Logo após a inesperada eleição de Donald Trump para 45.º presidente dos Estados Unidos, o “Homem de Davos” fica sem saber o caminho a seguir: “liberalismo multilateral ou o nacionalismo económico”? Mas mais grave ainda, o mundo apercebe-se de que “(o) problema Trump está longe de ser apenas uma questão americana” (p. 14) e muito menos um problema reduzido ao milieu financeiro. Para Paz Ferreira, Trump “cria uma situação de instabilidade global, põe em causa valores civilizacionais que pareciam assentes na história da humanidade, legitima os mais odiosos ditadores, não respeita o Estado de Direito e está apostado em destruir tudo o que de belo e sábio trouxeram a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos” (p. 78). Receio este também partilhado por um vasto número de leitores esclarecidos que, imediatamente após a vitória de Trump, fazem dos clássicos distópicos bestsellers: 1984 e a Quinta dos Animais, de Orwell; O Admirável Mundo Novo, de Huxley; Isso não Pode Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis; A História de uma Serva, de Margaret Atwood.

Para o autor, a presidência de Donald Trump corresponde “a um dos períodos de maior retrocesso civilizacional, no seu país, mas também noutros, onde as coisas não começaram com ele, mas ganharam uma força tremenda que nos leva a falar do mundo em transe. Um mundo de injustiça, de individualismo feroz, de voyeurismo, de populismo, de indiferença ao sofrimento dos outros, de insegurança e incerteza quanto ao futuro” (p. 209). Desde a campanha eleitoral que Trump recorre a um extremismo discursivo e a uma retórica recheada de hostilidades, aversões, ódios e falsidades. “Cria um ambiente de guerra civil, bem como as condições para uma tensão internacional que se não sabe até onde pode ir (…)” (p. 78). Os slogans “Make America great again” e “America first” estão intimamente enredados à imagem da América distorcida dos Rust Belt States. Uma América alimentada pelos ideais radicalizados do Tea Party, bem como de outros movimentos tão mais perigosos e ideologicamente grosseiros como o White Supremacism e o Neo Nazism, reunidos no grupo Alt-right, “em que juntaram isolacionistas, protecionistas, anti-semitas, racistas, nazis, islamofóbicos, anti-feministas” (p. 109).

Paralelamente a um discurso visivelmente racista, Trump não deixa descurar a sua obsessiva perseguição aos imigrantes ilegais. Prometeu a construção de um muro, onde morreram já 5000 pessoas (p. 160) e onde foram cometidas as maiores atrocidades contra os Direitos Humanos. Trump vai fabricando estereótipos, exageros, previsões alarmistas e, acima de tudo, bodes expiatórios. Convém lembrar que a criação de bodes expiatórios conferiu poder aos Nazis. O ato de degradar e perseguir os judeus ajudou a intensificar a imagem demoníaca do inimigo. Amparados num discurso de medos: medo dos imigrantes, medo dos refugiados, medo do Islão, medo do terrorismo, medo da incerteza económica - Trump e muitos outros protagonistas políticos como Erdogan, Putin, Nick Farrage, Viktor Orban, Marine Le Pen, os líderes da extrema-direita italiana Liga do Norte, o partido alemão Alternativ Fuer Deutschland que vão germinando por entre as brechas de uma Europa ainda cicatrizada, têm conseguido criar uma aversão social e cultural ao “Outro”.

Para o autor, “(n)um mundo cheio de sinais autoritários e anti-liberais, corre-se o risco de regresso a períodos negros da história e ao desaparecimento dos valores que fazem a vida digna de ser vivida” (p. 78). Com as características de uma “personalidade autoritária”, já previamente delineada no estudo multidisciplinar de Theodor Adorno (1950), Trump traça uma agenda que visa essencialmente “a dominação dos que estão num plano inferior, a desvalorização da atividade intelectual, a sobrevalorização do poder e da dureza, a tendência para culpar os outros, ser cínico e acreditar em superstições e teorias da conspiração” (p. 205). Perante, por um lado, um partido republicano que vendeu a sua alma ao diabo e, por outro, a fragilidade da esquerda Americana que “(n)um movimento similar ao da esquerda europeia” tende “a preservar, acima de tudo, a aparência de moderação - a que associam um sinal de responsabilidade - como se fossem ‘os único adultos no salão’”, o caminho de Trump fica cada vez mais liberto. Um comportamento da esquerda, reitera o autor, que até pode ser compreensível em tempos de normalidade, mas deixou de o ser quando se vivem tempos (…) retrocesso civilizacional e se é confrontado com práticas despóticas e contrárias à lei” (p. 107). Deste modo, a esquerda não tem permitido criar condições para travar o êxito do filho fecundo do narcisismo e da indecência moral. Eduardo Paz Ferreira esclarece que, sem respeitar os valores democráticos, as regras do jogo de Trump são agora outras: para a Casa Branca escolhe “(…) políticos com passados extremamente controversos, empresários sem experiência governamental, amigos (…) e agitadores políticos extremistas” (p. 89); para mobilizar a opinião pública, recorre às redes sociais onde, com o apoio dos movimentos das extremas-direitas, distorce a realidade e vai piscando o olho ao seu “amigo” russo; como demonstração de poder absoluto ignora as estruturas do Estado (p. 120) e entra em guerra aberta com o fbi; prejudicando diretamente os mais pobres, que tão ironicamente foram alvo de atenção e suposta solidariedade de Trump na campanha, introduz uma reforma fiscal para os ricos, revoga o Obamacare, corta no Medicare e no Medicaid, nos selos para a alimentação, nos transportes e noutros serviços federais essenciais aos mais necessitados (p. 179). Para além de todas estas medidas internas, na política externa mostra uma clara hostilidade à nato; abandona o acordo de Paris sobre o clima, fazendo os Estados Unidos perder autoridade moral no assunto” (p. 183) e, finalmente, nos acordos comerciais internacionais os resultados são visíveis com a paragem do acordo negocial com a União Europeia, a retirada da Transpacific Partnership, e a imposição ou ameaça de imposição de taxas aduaneiras na importação de produtos provenientes do exterior, que se tem vindo a concretizar, nos últimos meses, em especial em relação à China” (p. 183). Enfim, tudo medidas que não só violam os Direitos Humanos e ameaçam a democracia, mas também limitam o prazo de validade da própria Humanidade.

Contra um guia zarolho alimentado pela barbárie-ódio, exige-se, assume o autor, uma “frente intransigente, assente nos valores que permitiram criar condições para a felicidade aos cidadãos” (p. 79). Eduardo Paz Ferreira acredita que, pese embora todas as dificuldades, “(…) são muitas as pessoas que, com grande coragem, têm enfrentado a ‘revolução cultural trumpiana’ e que elas merecem de todos nós uma palavra de ânimo e apoio” (p. 210). Vejamos por exemplo a Marcha das Mulheres, a resistência das cidades-santuário às medidas federais e o papel dos jovens e das minorias neste projeto de mudança política radical (p. 234).

Em suma, Eduardo Paz Ferreira assume que necessitamos de “acordar definitivamente do pesadelo” (p. 234) e garantir o respeito pela dimensão humana de todos os homens e mulheres. Começar de novo implica uma mobilização de consciências, uma reciprocidade entre resistências locais e transnacionais, ou seja, uma posição firme dos cidadãos e governos democráticos a favor da solidariedade, da paz, da justiça social e dignidade humana. Noutras palavras, a criação de uma terra pátria de todos que contemple a riqueza intrínseca das singularidades da humanidade.

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