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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.229 Lisboa Dec. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018229.11 

RECENSÃO

Matos, Luís Salgado de

Cardeal Cerejeira. Um Patriarca de Lisboa no Século XX Português,

Lisboa, Gradiva, 2018, 187 pp.

ISBN 9789896168094

Duncan Simpson*

* Instituto de História Contemporânea, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-c - 1069-061 Lisboa, Portugal.


 

O novo livro de Luís Salgado de Matos oferece uma biografia concisa de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca de Lisboa entre 1929 e 1971, sem dúvida a figura mais controversa dentro da hierarquia eclesiástica portuguesa, e, mais latamente, do universo católico português durante o período do Estado Novo. O texto de Salgado de Matos tem origens longínquas. Trata-se de uma versão reescrita e alargada de um artigo publicado originalmente em 2001 (Matos, 2001), ele próprio baseado num verbete escrito em 1999 (Matos, 1999a). Deve assim considerar-se o presente livro como o resultado de uma aprofundada reflexão sobre o longo pontificado de Cerejeira, podendo no entanto lamentar-se o facto de que o autor se limita a mencionar en passant, na sua recensão das fontes disponíveis, os importantes trabalhos de José Barreto (1999, 2002), Irene Flunser Pimentel (2010) e Rita Almeida de Carvalho (2010), em vez de os integrar criticamente na sua análise. Como é característico dos trabalhos de Salgado de Matos, o texto é incisivo. Num tom voluntariamente provocatório, o autor toma o partido do Cardeal Cerejeira contra o que considera ser visões deturpadas e ideologicamente motivadas do seu pontificado. Nas várias sessões de promoção do livro, Salgado de Matos chegou mesmo a declarar ter escrito a obra “por uma questão de higiene”[1], descartando as “histórias à volta das relações entre o Cardeal Cerejeira e o Salazar” - resultantes da sua conhecida relação de amizade enquanto estudantes e universitários coimbrões - como sendo do âmbito do “mito urbano”.[2] Assim, o autor apresenta positivamente D. Manuel Gonçalves Cerejeira como “a figura mais marcante da Igreja em Portugal no século xx” (p. 11). Ao longo da obra, Salgado de Matos realça as realizações do seu pontificado nos seus diversos campos de ação, como também as suas capacidades de liderança, dotes intelectuais e qualidades de prosador (p. 29), fazendo até avaliações admirativas quanto aos atributos físicos do Cardeal (destacando, por exemplo, “a “acuidade e o sonho do [seu] olhar”, p. 15). Independentemente das interpretações defendidas pelo autor, a abordagem é, quanto a nós, benéfica. Numa conjuntura historiográfica em que os estudos sobre temáticas político-religiosas durante o Estado Novo tendem a basear-se predominantemente nas metodologias da história institucional, focada na análise de processos socio-religiosos de longa duração (como a laicização do Estado, a secularização da sociedade ou a gradual emergência da liberdade religiosa), o trabalho biográfico de Salgado de Matos tem o mérito de repôr no centro do debate historiográfico o papel ocupado por certas figuras históricas nestes processos impessoais. A dimensão ainda hoje sensível do pontificado do Cardeal Cerejeira, expressa na própria vontade de Salgado de Matos em defendê-lo, indica que a memória histórica à volta do seu papel - e, mais latamente, do papel da Igreja Católica - na ditadura salazarista, está longe de ser apaziguada. O assunto merece assim um debate aberto e alargado, que os historiadores, face à indisponibilidade da hierarquia eclesiástica em Portugal para proceder a uma avaliação crítica do seu desempenho durante o Estado Novo, podem contribuir para suscitar.

Dois principais eixos de análise destacam-se no livro de Salgado de Matos. O primeiro é original e convincente. Trata-se de uma caracterização da sensibilidade religiosa de Cerejeira no quadro do catolicismo português, assim como da obra de reestruturação eclesial desenvolvida por ele enquanto Patriarca.

O autor realça eficazmente a importância da génese ideológico-religiosa do futuro Cardeal para a compreensão do seu pontificado, enquadrando-a nas suas origens sociais e no contexto político de implantação da Primeira República. A origem minhota rural de Cerejeira não só terá contribuído para moldar nele uma eclesiologia tradicional herdada dos Concílios de Trento e Vaticano i - dinamizada “pela devoção individual”, organizada “pela disciplina social” e caracterizada pelo “apoio (…) insistente à autoridade legítima” (pp. 59-60) -, como também o “insensibilizara para a laicização, ou secularização, inerente à sociedade urbana, burocrática, industrial e pós-industrial” (p. 163). Quanto ao contexto político, marcado pela Lei da Separação de 1911, teve o duplo efeito de o empurrar para a primeira linha do militantismo católico enquanto estudante e docente da Universidade de Coimbra (1909-1928) - onde liderou, pela sua produção jornalística, doutrinária e académica, o combate intelectual contra o “paradigma positivista” da República (pp. 15-33) - e de o tornar “muito sensível a qualquer intromissão do laicismo estatal” (p. 163). A partir deste quadro de predisposições iniciais, analisadas na sua articulação com a evolução da doutrina papal, Salgado de Matos realça como uma das principais realizações do pontificado de Cerejeira o vasto programa de reorganização da Igreja liderado por ele a partir do início dos anos 1930, visando, pela valorização do clero diocesano, pelo renascimento da espiritualidade e pela organização do laicado (lançamento da Acção Católica Portuguesa [ACP] em 1933), a operar a “nova cruzada” de reconquista cristã em Portugal (pp. 49-62). Este programa desenvolver-se-ia em “articulação com o Estado - que, emendando-se do pecado laicista, passará a colaborar com a Igreja na escola, no hospital, na prisão, no quartel, na vida pública” (p. 62).

Na trajetória geral do seu pontificado, Cerejeira emerge assim, numa primeira fase, como um “chefe” da Igreja dinâmico e sintonizado com as orientações do papado - “renovador” e “modernizador”, nas palavras do autor (p. 64). Por contraste, numa segunda fase, já bem mais conhecida, começando nos anos 1950, o pontificado de Cerejeira será marcado pela gradual constatação de falhanço da estratégia de recristianização (includindo a queda da ACP), à qual se acrescenta a cada vez mais problemática gestão pelo Patriarca do processo de ajustamento pós-conciliar e a crescente contestação da sua liderança pelos elementos mais progressivos do clero e do laicado, que o autor descreve sucintamente (pp. 95-120).

O segundo dos principais eixos de análise desenvolvidos por Salgado de Matos foca-se na relação de Cerejeira com a política - e, por consequência, com o Estado Novo e com Salazar em particular - assim como no seu papel na reforma das relações da Igreja com o Estado. É, quanto à nós, muito menos convincente. Se o autor sinaliza devidamente o envolvimento de Cerejeira na ditadura salazarista enquanto “um dos fundadores do regime do Estado Novo” (p. 132), limita-se a fazê-lo de maneira essencialmente abstrata e seletiva. Assim, a análise das relações entre a Igreja e o regime é articulada à volta da teoria do autor sobre o “Estado de Ordens” que teria emergido após a queda da Primeira República (Matos, 1999b), “no qual a Igreja emparceirava com as Forças Armadas e a administração pública para definir as regras básicas da circulação do poder” (p. 131). Da mesma forma, o tratamento dado pelo autor à atitude de Cerejeira perante a política também se limita a explicá-la à luz dos seus princípios eclesiológicos. Assim, a “teoria da autonomia dos dois gládios (o civil e o religioso)”, que Cerejeira teria levado “a consequências extremas”, é vista como tendo tido por efeito o facto de que “para um católico, colaborar com o Estado Novo não era política” mas apenas “respeitar a autoridade legítima e praticar o bem de combater o laicismo” (pp. 136-137). Em consequência, opor-se-lhe também era “quase impossível na prática, pois dessa oposição decorreria o perigo do regresso do clericalismo e do anticlericalismo e, portanto, abalaria os alicerces da paz religiosa que, para ele, neste campo, estava acima de tudo” (p. 137). Mesmo se Salgado de Matos assinala, e bem, que o preço da paz entre a Igreja e o Estado Novo acabou por ser “elevado” - em consequência direta da “rigidez do esquema” de Cerejeira que impedia a Igreja de proferir “qualquer julgamento negativo sobre a actuação do governo” (p. 138) -, o efeito minimizador (ou eufemizante) do quadro analítico utilizado para avaliar o grau de envolvimento do Patriarca na ditadura é reforçado ainda mais pelo facto de que o autor aplica-se simultaneamente a demonstrar, com base em episódios cuidadosamente selecionados e interpretados, que Cerejeira não só sempre defendeu a Igreja contra as intromissões do poder temporal como preservou ciosamente a sua própria independência frente ao poder político. Limitarmo-nos-emos aqui, para os comentar criticamente, a quatro exemplos no texto.

(1) Sobre a ascenção de Cerejeira ao Patriarcado de Lisboa em 1929, Salgado de Matos limita-se a observar que a sua nomeação pela Santa Sé foi “controversa”, devido a uma “muito provável” conjura política - da qual Salazar “não estava a priori excluído” - contra um outro candidato à função, o prelado eborense D. Manuel Mendes da Conceição Santos (pp. 43-44). Cerejeira, observa o autor, terá ignorado aquelas manobras (p. 44). O autor deixa assim de lado qualquer tentativa de interpretar o sentido de tal “conjura política”. Uma interpretação possível, tal como o defendemos num artigo dedicado ao assunto com base nos relatórios da nunciatura para a Santa Sé (Simpson, 2009), assenta numa leitura da nomeação de Cerejeira enquanto sinal do apoio da Santa Sé para uma estratégia de “catolicização gradual” em Portugal - defendida, entre outros, por Salazar desde o seu posto ministerial na ditadura militar -, contra o “imediatismo” encarnado por D. Manuel Mendes da Conceição Santos, cujo pouco diplomático ativismo punha em risco a estabilidade do governo e os avanços da causa católica. Através da nomeação de Cerejeira, a Santa Sé valorizava essencialmente, na vertente política, as suas reconhecidas qualidades diplomáticas, num contexto doméstico em que o anticlericalismo e o laicismo tornavam a resolução da “questão religiosa” particularmente sensível. No entanto, a sua conhecida relação de proximidade com Salazar era também vista pelas autoridades religiosas pelo prisma estratégico, nomeadamente como um fator tendente a facilitar a afinação dos esforços combinados das autoridades eclesiásticas e políticas no cauteloso processo de “restauração” da posição da Igreja em Portugal. Os repetidos casos em que o Cardeal Cerejeira, no decorrer do seu pontificado, viria depois a corresponder-se confidencialmente com Salazar com o fim de minimizar o risco de ataques anticlericais ou laicos contra ele (Simpson, 2012, p. 408), contribuindo assim para a consolidação do seu poder político, parecem confirmar a posteriori esta interpretação.

(2) Segundo o autor, Cerejeira terá, durante o imediato pós-guerra, “flirt[ado] com um golpe de Estado democrata-cristão”, mostrando assim que “os interesses da Igreja estavam, para ele, acima dos de Salazar e do regime” (p. 72). Salgado de Matos refere-se aqui a um pouco conhecido episódio em que o Patriarca, desconfiado da capacidade de sobrevivência do regime depois da vitória das democracias, encarregou confidencialmente o padre Abel Varzim, influente “católico social”, cuja militância na Juventude Operária Católica (JOC) acabaria por ditar a sua incompatibilidade com Salazar, de “sondar políticos cristãos do regime sobre a formação de um partido democrata-cristão que substituísse o Estado Novo” (p. 72). A veracidade deste episódio está, de facto, comprovada - como demonstram, indiretamente, os arquivos da diplomacia britânica. No entanto, dificilmente pode ser interpretado como um sinal de “golpismo” da parte do Cardeal Cerejeira. Pelo contrário, se o episódio é devidamente colocado no contexto de incerteza gerado pelo final da Segunda Guerra Mundial, que obrigava a Igreja Católica a preparar-se estrategicamente para as mais diversas eventualidades - incluindo a não impossível queda do regime -, e se a inconsistência da própria démarche iniciada por Cerejeira é ela própria também devidamente levada em conta (em particular o desajustado perfil dos ministros católicos sondados para participar na iniciativa, um dos quais terá denunciado a história ao seu colega do ministério do Interior), o projeto democrata-cristão, como convincentemente argumenta José Barreto, “não parece ter passado aqui de um mero cenário de recurso para uma eventualidade não desejada, isto é, o afastamento de Salazar” (Barreto, 2002, p. 164). Outros episódios apresentados pelo autor como sinais de distanciamento da Igreja em relação ao regime devem também ser vistos à luz desta cautelosa gestão do posicionamento da Igreja perante o Estado Novo, cuja necessidade era acentuada pelo exemplo do tratamento pouco ameno então reservado aos bispos “petainistas” na França gaullista. Realça-se em particular, nesta perspetiva, a posição assumida publicamente pelo Cardeal Cerejeira durante a campanha para as eleições legislativas de novembro de 1945, através da publicação de uma nota oficial no jornal Novidades, interpretada pelo autor como dando “apenas orientação para votar”, e não “orientação de voto” (p. 71). Deixando de parte a discutível leitura que Salgado de Matos faz desta nota - cujo conteúdo incluía, se bem que de forma levemente camuflada, uma clara orientação de voto a favor da União Nacional (v. Simpson, 2014, pp. 131-132) -, o autor abstém-se também de mencionar os esforços simultaneamente desenvolvidos pelo Cardeal Cerejeira, de maneira confidencial, para instar Salazar a manter-se firme na condução da política nacional. Referimo-nos à conhecida carta da Irmã Lúcia - na qual a vidente de Fátima afirmava, “por indicação divina”, ser Salazar “a pessoa por Ele (Deus) escolhida para continuar a governar a nossa Pátria” - que Cerejeira no dia 13 de novembro de 1945 enviou ao ditador, no intuito abertamente expresso de lhe trazer “consolação e confiança” “nesta hora de tantas preocupações, desgostos e talvez dúvidas para ti”.[3] Para além de revelar de maneira clara a preferência de Cerejeira na contenda eleitoral (a campanha do MUD sendo vista por ele pelo prisma das “preocupações” que causava a Salazar), o episódio fornece também um exemplo particularmente expressivo, entre muitos outros possíveis, das bem reais dinâmicas políticas inerentes à relação de proximidade entre Cerejeira e Salazar, que Salgado de Matos pretende reduzir a um “mito urbano”.

(3) Um dos argumentos centrais na análise desenvolvida pelo autor é o de que Cerejeira se mostrou sempre “cioso da sua independência e da defesa do seu poder como chefe da Igreja” (p. 144). O Patriarca é assim apresentado como um firme defensor da autonomia do movimento católico. O autor realça o caso da JOC, que Cerejeira teria “sempre defend[ido] contra as constantes arremetidas do Estado Novo” (p. 146), como por exemplo pela sua intervenção durante o atribulado congresso nacional de 1955 (p. 130). Na verdade, nem pelos próprios militantes da JOC a ação do Cardeal Cerejeira era assim interpretada, sendo pelo contrário vista essencialmente como um exercício de permanente contemporização em relação ao tratamento da “questão social”, cujo resultado foi de dissuadir qualquer ambição reformista na ACP e assim garantir, ao preço de sistemáticos compromissos para com os ditames do regime, a preservação das boas relações com as autoridades políticas. Como o recordaria mais tarde um destacado membro da comissão executiva do congresso da JOC em 1955, os “excessivos conselhos de prudência” repetidamente dirigidos por Cerejeira “a dirigentes e sobretudo a assistentes da Acção Católica” só poderiam ter tido como efeito “o de travar o ímpeto de intervenção social da Igreja militante” (Simpson, 2014, p. 163). Outro exemplo dado pelo autor para ilustrar “até que ponto o Cardeal Cerejeira era cioso da sua independência” é a recusa do Patriarca em nomear, sob pedido do presidente da República (Américo Tomás), um “capelão da Presidência” para substituir o padre Felicidade Alves, no seguimento de um desentendimento entre este e Tomás. “Quem manda na Igreja não é o presidente da República”, teria então declarado Cerejeira (p. 145). A este exemplo, poder-se-iam, no entanto, contrapor inúmeros outros casos, muito mais significativos em termos das suas consequências, ilustrando a magnitude dos compromissos consentidos pelo Cardeal Cerejeira na sua gestão da articulação da Igreja com os imperativos políticos do regime - precisamente aqueles compromissos que levariam o padre Abel Varzim a concluir, em 1948, que “quem manda[va] na Igreja” era “o Estado-Salazar” (Rodrigues, 1990, p. 199). Citaremos apenas: o afastamento do próprio padre Varzim das suas responsabilidades na JOC, em 1946, para acabar com o seu incómodo ativismo social; a tácita aceitação do exílio forçado do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, entre 1959 e 1969, não sendo feita uma única referência à sua condição nas pastorais coletivas produzidas pelo episcopado português naquela década; o silenciamento de qualquer voz crítica quanto à censura estatal imposta aquando da visita de Paulo vi a Bombaim em 1963, o Cardeal Cerejeira chegando mesmo, nesta ocasião, a proibir a publicação de uma nota pastoral da conferência espicopal para enquadrar a visita papal no seu contexto religioso - causando assim um profundo mal-estar na própria hierarquia eclesiástica, e levando o bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, a afirmar que a Igreja tinha “perd[ido] uma ocasião oportuna de manifestar corajosamente o seu ponto de vista” (Trindade, 1993, p. 291).

(4) Em relação à guerra colonial, o autor observa que o Cardeal Cerejeira, pelo seu interesse na “missão providencial da nação portuguesa que abrangia as colónias”, defendia “a integridade da pátria à qual Deus atribuíra um particular desígnio missionário” (pp. 154-156). No seu papel enquanto Patriarca, ter-se-á no entanto limitado “a impedir (…) que a Igreja questionasse o comportamento do governo - salvaguardando o status quo institucional” (p. 154). Convém acrescentar, neste aspeto, que pelo que Cerejeira, nas palavras do autor, “se limitava a impedir”, estava-se também a permitir, mais latamente, o desenvolvimento de um quadro de legitimação da guerra colonial, que nos anos seguintes esteve no cerne do discurso da Igreja institucional (quer nas declarações da hierarquia, quer na imprensa católica), contribuindo diretamente para a mobilização dos fiéis em apoio do programa estadonovista de defesa das “províncias ultramarinas” (Simpson, 2014, pp. 205-208). Salgado de Matos afirma igualmente que Cerejeira, “ao invés de louvar a guerra, limitou-se a condenar o pacifismo, que ‘seria demissão covarde de graves deveres’ ” (p. 156). Na prática, no entanto, a diferença entre condenar o pacifismo e louvar a guerra não era tão claramente discernível como o sugere a conclusão do autor. Algumas das declarações públicas do Patriarca podem perfeitamente ser lidas como apelos positivos para a participação dos jovens portugueses no esforço de guerra. Para citar apenas um exemplo, no Grande Encontro da Juventude organizado em Lisboa em abril de 1963, Cerejeira exortou os 50 000 jovens presentes a responderem ao “apelo de Portugal (…), nesta hora grave da Nação, em que o sangue já corre, heróico, das veias de alguns dos vossos irmãos, oferta generosa à Pátria” (Cerejeira, 1964, p. 211). Querer limitar o discurso do Cardeal Cerejeira a uma condenação do pacifismo não dá devidamente conta do tom bem mais belicista das suas declarações, nem, mais largamente, do contributo real da Igreja Católica na legitimação da guerra colonial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Declarações à Rádio Renascença em março de 2018, relatadas em https://rr.sapo.pt/noticia/107620/um-livro-sobre-a-vida-e-obra-do-cardeal-cerejeira-escrito-por-uma-questao-de-higiene, consultado no dia 08-11-2018.

[2] Declarações à TSF no dia 31-03-2018, gravação disponível em https://www.tsf.pt/sociedade/interior/cardeal-cerejeira-o-principe-da-igreja-que-salazar-nao-soube-derrotar-9218143.html, consultada a 09-11-2018.

[3] Para uma cópia da carta, que se encontra no Arquivo Salazar (ANTT), v. Barreto (1999, p. 263).

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