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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.228 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018228.14 

RECENSÕES

SIMPSON, Duncan

A Igreja Católica e o Estado Novo Salazarista

Lisboa, Edições 70, 2014, 296 pp.

ISBN 9789724417745

Nuno Palma*

*School of Social Sciences, University of Manchester, Oxford Road, Manchester M13 UK. nuno.palma@manchester.ac.uk


 

Esta obra de Duncan Simpson corresponde à investigação feita no âmbito de uma tese de doutoramento realizada no King's College da Universidade de Londres, sob orientação de Francisco Bethencourt. É, infelizmente, um trabalho relativamente pouco conhecido, mas que deveria merecer uma maior atenção por parte de todos os que se interessam pelo período do Estado Novo em Portugal.

Simpson assume uma posição intermédia entre a “perspetiva católica de Braga da Cruz… [que] vê uma relação colaborante enraizada em interesses convergentes e um nível genuíno de autonomia institucional” (Simpson, 2014, p. 19), e o “anticlericalismo marxista” de Fernando Rosas, que “vê a subserviência da Igreja ao regime” (Simpson, 2014, p. 20).

É difícil estar aqui em desacordo com o autor do livro. Desde o aparecimento dos chamados “católicos progressistas”, no final dos anos 60, que certos segmentos intelectuais, de alguma forma ligados à Igreja, procuram distanciar a mesma de toda e qualquer responsabilidade no suporte ao regime representado pelo Estado Novo. Esta é uma posição evidentemente indefensável, mesmo tendo em conta que o Estado Novo esteve longe de ter tido uma identidade uniforme ao longo do tempo.

Por outro lado, a posição de Rosas de que “[A] Concordata de 1940… [representou a] subordinação funcional da Igreja Católica aos objetivos políticos e ideológicos do Estado Novo” (citado em Simpson, 2014, p. 20) também é difícil de aceitar, à luz da insatisfação do Vaticano com os termos da mesma, dada a melhoria significativa da situação negocial de Salazar relativamente a apenas alguns anos antes (Meneses, 2010).

O autor queixa-se, a certa altura, das dificuldades que teve em consultar certos documentos históricos, nomeadamente a correspondência entre o cardeal Cerejeira e Salazar existente no “fundo Cerejeira” do Patriarcado de Lisboa. É lamentável esta política do Patriarcado, mas Simpson compensa esta situação através de uma consulta detalhada aos Arquivos Secretos do Vaticano (até 1939), complementados pelos arquivos da sede romana dos Jesuítas, e, para o período mais recente, pela produção pastoral da hierarquia eclesiástica, da imprensa católica e dos arquivos do Estado Português.

De acordo com Simpson, para compreender a legislação religiosa e social dos fundadores da República, é preciso vê-la não apenas como a expressão de uma perspetiva positivista e racionalista, mas também como “retaliação direta pelo papel que atribuíam [à Igreja] na manutenção do regime monárquico” (p. 34). Se nos lembrarmos que os republicanos consideravam o declínio histórico português como provocado, em boa medida, pelas ligações que aquele regime mantinha com a Igreja Católica, não será de estranhar a posição assumida por eles.

O autor defende que, a longo prazo, a Lei da Separação acabou por ser uma bênção para a Igreja, essencialmente por criar um inimigo comum, levando a que o movimento católico emergisse da Primeira República mais coeso do que tinha sido no período final da monarquia constitucional e abrindo caminho a que Salazar pudesse brandir a reabertura da “questão religiosa” como uma arma para manter a Igreja sob controlo (Simpson, 2014, p. 48).

Simpson não considera explicitamente a principal dificuldade inerente a este tipo de exercício que é a de conhecer o contrafactual. Ou seja, será que, independentemente da secularização do Estado, a primeira República teria sido viável como sistema político? Será que, com a passagem do tempo, ter-se-ia verificado na mesma uma reação conservadora e nacionalista, como aconteceu noutros países europeus? Aliás, o período que se seguiu ao fim da Primeira Guerra Mundial correspondeu a um reacender de forças religiosas em toda a Europa e é perfeitamente possível considerar que, em Portugal, não teria sido muito diferente. Uma maior atenção comparativa ao que se passou noutros países, na mesma altura, teria sido bem vinda.

Compreendo muitos dos princípios que estão na base do programa republicano de secularização do Estado, apesar de não concordar com a ideia de que era o regime monárquico liberal o principal culpado do atraso Português. No entanto, a interpretação mais razoável é que a mudança empreendida nessa altura foi demasiado radical para o que a sociedade portuguesa desejava e estava preparada (Palma e Reis, 2018). É muito difícil mudar de repente, de “cima para baixo”, toda uma sociedade. Consequentemente, mudanças demasiado radicais falham quase sempre. Em Portugal, a partir de meados dos anos 1920, esta questão viria a ser internalizada pela Igreja, que não tentou recuperar tudo de uma vez, nem sequer tentou voltar ao status quo do início do século XX - talvez por ter observado o anterior falhanço das próprias elites republicanas em mudar o país mais depressa do que teria sido possível.

Simpson descreve bastante bem a forma como a Igreja teve de reimpor gradualmente as suas “liberdades” perdidas, tomando como adquirido que “o Estado Novo salazarista permanecia empenhado na causa católica mas condicionado pelo ambiente sociocultural e político adverso no qual era obrigado a funcionar” (Simpson 2014, p. 41, sendo meu o ênfase na palavra “adverso”; ver também p. 43, 52, 65, 80, 235). Convém deixar claro que Simpson não se refere apenas a certas elites, mas também a grandes segmentos da população, nomeadamente no norte do país. Em sua opinião, aconteceram “esforços combinados por parte das autoridades eclesiásticas e políticas na execução do processo de catolização gradual de Portugal” (Simpson, 2014, p. 52, ênfase no original).

É interessante o argumento do autor de que a imagem cultural do povo português, como sendo intrinsecamente religioso, é em grande parte um efeito cultural resultante da própria sombra do Estado Novo, pois não corresponde totalmente à situação do país no início dos anos 30. Não deixa de ser significativo que, no censo de 1940, 4,5% da população se tenha declarado “sem religião” - um número que até talvez peque por defeito, devido ao eventual medo de represálias, tendo em conta que, como Simpson assinala (2014, p. 43), nessa época “qualquer confissão de agnosticismo estava perigosamente próxima da dissidência política”. Mas estes são ainda assim números pequenos, ainda mais tendo em conta que as represálias eram essencialmente dirigidas à oposição organizada, e por isso nesta matéria o ponto de vista de Simposon parece-me exagerado, e demasiado influenciado por uma leitura de certas fontes que poderia ter sido mais crítica, tendo tido mais em conta as motivações de quem as escreveu, ou o contexto durante o qual foram produzidas. É questionável que as épocas liberal e republicana tenham de facto deixado uma “marca laica e anticlerical” (Simpson, 2014, p. 79). Certas elites republicanas eram, sem dúvida, militantemente anti-clericais. Simpson (2014, p. 91) nota que dos cerca de 5 mil professores secretamente avaliados pelos sacerdotes paroquianos a nível nacional, apenas 16,4% foram tidos como tendo a “devoção certa” (Simpson 2014, p. 91). Mas o mesmo não seria verdade sobre o povo, o que por sua vez ajuda a compreender a adesão do mesmo a muitas das políticas da Ditadura Nacional e do Estado Novo, por exemplo, no que diz respeito à política educativa (Palma e Reis, 2018). Salazar não inventou um país católico - pelo contrário, o seu sucesso político deveu-se em grande parte ao seu alinhamento cultural com um país que já existia.

De qualquer modo, mais uma vez, é difícil saber como teria sido a trajetória da atitude de religiosidade do povo português na ausência do Estado Novo, ou seja, se a “Primeira República” tivesse continuado. Para isso, seria útil discutir não apenas as características culturais de diferentes partes do país, o que o autor faz soberbamente, mas também estabelecer algumas comparações internacionais, que poderiam eventualmente ilustrar como se comportou Portugal relativamente à tendência internacional. De facto, num trabalho mais recente, Simpson reconhece que havia muito apoio das bases ao regime do Estado Novo, mesmo nas suas décadas finais (Simpson, 2018).

A posição de Simpson converge frequentemente com a de Meneses na sua biografia de Salazar, por exemplo ao argumentar que este, tendo usado a Igreja para obter o poder, depois procurou minimizar a sua interferência no campo político (Simpson, 2014, p. 78). Como já atrás referi, um aspeto que se encontra pouco desenvolvido neste livro é a dimensão comparativa. Mas por vezes são deixadas pistas interessantes, em particular em relação à Espanha franquista. Por exemplo, o facto de a política religiosa do Estado Novo sempre ter permanecido relativamente branda, em comparação com o nacional-catolicismo imposto por Franco, poderá estar ligado às diferenças significativas que existiram no modo como o poder foi obtido e consolidado no âmbito dos dois regimes e nas relações de força que caracterizaram cada um desses processos. Simpson deixa, a este propósito, um pista muito interessante que deveria merecer um estudo mais aprofundado, quando refere que, em Portugal, ao contrário do que aconteceu em Espanha, onde foi aplicado um programa de catolização bastante profundo da sociedade e do próprio Estado, “as forças anti-clericais não tinham sido fisicamente eliminadas”, havendo mesmo necessidade de “para grande consternação do episcopado… ter em conta as suas susceptibilidades” (Simpson, 2014, p. 41).

Ou seja, se o regime franquista conseguiu aplicar um programa de catolização muito mais profundo da sociedade e do próprio Estado em Espanha, é porque chegou ao poder através da sua vitória na cruzada católica de 1936-39 (guerra civil), construindo em parte a sua “legitimidade” no esmagamento do anticlericalismo. As condições de emergência do Estado Novo são bem diferentes, e condicionavam naturalmente o governo para uma gestão mais subtil e “moderada” do relativamente maior setor laico ou mesmo anticlerical.

Apesar de o país (e, em especial, o povo) ter sido provavelmente bem mais católico do que Simpson defende, parece-me que as principais teses desta obra estão corretas. A mais importante é, porventura, a noção de que a Primeira República contribuiu para a polarização política crescente da sociedade no período que antecedeu a Ditadura Militar e o Estado Novo. A Primeira República foi disfuncional, não apenas em termos políticos - dada a bem conhecida instabilidade governativa, assim como a natureza antidemocrática do seu largo domínio por parte de apenas um partido -, mas também social. E foi-o em grande parte por estar intelectualmente comprometida com o “mito” de que a monarquia era diretamente responsável pelo declínio económico português, e, do meu ponto de vista, por insistir em mudar a sociedade de forma demasiado rápida, em confronto com as crenças culturais de grande parte da população.

Do meu ponto de vista, este livro contribui para uma das atividades mais importantes dos historiadores: a destruição de mitos amplamente difundidos. Como afirma Simpson na sua conclusão, “Salazar não foi, de todo, um idealista católico” (Simpson, 2014, p. 241). Nem podia ter sido. Ser idealista não se compactuava com a necessidade prática de conseguir um certo consenso para governar o país, mesmo no contexto de uma ditadura.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MENESES, F. R. de (2010), Salazar, Lisboa, Leya.         [ Links ]

PALMA, N., REIS, J. (2018), “Can autocracy promote literacy? evidence from a cultural alignment success story”, EDP-1805, Manchester, University of Manchester.

SIMPSON, D. (2014), A Igreja Católica e o Estado Novo Salazarista, Lisboa, Edições 70.         [ Links ]

SIMPSON, D. (2018), “The ‘sad grandmother', the ‘simple but honest Portuguese', and the ‘good son of the Fatherland' letters of denunciation in the final decade of the Salazar regime”. Análise Social, LIII (226), pp. 6-27.

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