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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.228 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.31447/as00032573.2018228.11 

RECENSÕES

ALMEIDA, Ana Nunes de, VIEIRA, Maria Manuel, RIBEIRO, Ana Sofia e CORREIRA, Sónia Vladimira (coords.)

Gestão e Financiamento das Escolas em Portugal. Indicadores, Políticas e Atores

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, 363 pp.

ISBN 9789723116038

Leonor L. Torres*

*Instituto de Educação da Universidade do Minho, Campus de Gualtar - 4710-057 Braga, Portugal. leonort@ie.uminho.pt


 

A análise da gestão e financiamento das escolas embate com uma questão de fundo: o que diferencia uma instituição escolar de outras organizações sociais? O que as aproxima e distancia do ponto de vista político e organizacional? Aparentemente linear, esta interrogação encerra vários sentidos de resposta consoante os referenciais teóricos adotados. Entre o grau máximo e mínimo de diferenciação, subsiste a natureza inalienável do projeto educativo da modernidade - a gestão escolar, longe de se restringir a um conjunto de técnicas e procedimentos, é também um processo eminentemente educativo, que comporta dimensões socializadoras e de aprendizagem, que interpelam diretamente as responsabilidades éticas, morais e políticas do sistema escolar. Como tal, o modelo de gestão e financiamento das escolas ultrapassa largamente as meras questões procedimentais e operativas; pelo contrário, transporta na sua matriz as dimensões fundacionais do processo de democratização da educação (Lima, 2018).

Parti para a leitura do livro Gestão e Financiamento das Escolas em Portugal. Indicadores, Políticas e Atores, com a expectativa de encontrar novos elementos e pistas reflexivas sobre a gestão em contexto escolar, um dos temas mais estudados em Portugal nas últimas décadas. Uma primeira curiosidade consistia em compreender as circunstâncias que levaram à produção deste estudo, cujos contornos aparecem elucidados na “Apresentação” (da autoria de José Joaquim Gomes Canotilho) e na “Introdução” ao livro. O contexto de crise e as suas repercussões no campo educativo, a par da “opacidade dominante em alguns campos de análise” constituíram “motivos de desassossego da Fundação Calouste Gulbenkian” (FCG) (p.6), tendo conduzido à constituição de um grupo de reflexão e à estruturação de um projeto de pesquisa que se debruçou sobre o estudo do modelo de gestão e financiamento das escolas portuguesas do ensino básico e secundário dos setores público, privado e cooperativo. A obra apresenta os resultados deste projeto realizado entre 2014 e 2016 por uma equipa de investigadoras do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tendo como fio condutor duas questões nucleares: “como se gerem e quem paga as escolas de ensino não superior em Portugal?” (p. 18). Ao longo de sete capítulos estruturados em duas partes, as autoras percorrem vários caminhos analíticos no encalço de novas evidências empíricas sobre os processos e as práticas de gestão e financiamento da educação. A opção teórico-metodológica por uma abordagem multidimensional, ancorada em diversas escalas e planos analíticos permitiu aceder a diferentes perspetivas, racionalidades e lógicas coexistentes no sistema educativo português, revelando-se uma estratégia particularmente profícua e desafiadora da própria “artesania investigatória” (p. 6) desenvolvida com mestria ao longo do projeto.

Os três primeiros capítulos incluídos na parte I oferecem uma leitura panorâmica, extensiva e institucional das dinâmicas de gestão e de financiamento da educação no contexto português. Apoiada em três registos diferenciados (dados estatísticos, legislação e depoimentos de representantes institucionais), a abordagem sinaliza algumas linhas evolutivas em matéria de gestão e financiamento, sem deixar de destacar algumas especificidades nacionais e regionais, tendo como referência o cenário europeu. Este primeiro “sobrevoo” pelos números e estatísticas (capítulo 1) e pelos normativos (capítulo 2) revela uma paisagem educativa trespassada por dinâmicas, tendências e ruturas, mas igualmente por regularidades estruturantes (continuidades) que se vêm sedimentando no sistema educativo português.

Um primeiro desafio heurístico interpela o leitor - para quem estuda a problemática da administração educacional, pressente-se a necessidade de construir dispositivos para captar a historicidade da instituição escolar, interrogando criticamente os seus alicerces fundacionais. Ora, o estudo em apreço ganharia em imergir mais incisivamente nestas dimensões substantivas da vida e da dinâmica da instituição escolar. Perante as sucessivas mudanças e alterações políticas e legislativas ocorridas nas últimas décadas no campo educativo, torna-se indispensável apreender as permanências sistémicas que configuram o sistema educativo português. No fundo, identificar as regularidades no fluir das descontinuidades. No cerne desta questão emerge como perplexidade a resistência de uma forma escolar secular à vertigem das transformações sociais, tecnológicas, económicas e culturais. Por outras palavras, a configuração organizacional da instituição escolar permanece inalterável ao nível dos princípios fundacionais, designadamente políticos (modelo assente na centralização, com focos desconcentrados), institucionais (modelo de governação técnico-burocrático), organizacionais (estruturas verticais e assentes na especialização), culturais (cultura diferenciadora alicerçada na segmentação e individualização) e pedagógicas (modelo de ensino aprendizagem baseado no agrupamento turma, no currículo hierarquizado, nos tempos e espaços racionalizados, na avaliação uniformizada). A essência da configuração escolar subsiste a inúmeras alterações e mudanças que parecem atuar nas periferias e ramificações do sistema, ou nas “nervuras escolares” (p. 6), sem no entanto atingir o tronco e a raiz do problema. O último capítulo desta primeira parte (capítulo 3) reforça justamente estes aspetos ao revelar as opiniões de vários atores institucionais, dando conta de um défice de participação democrática na escola pública portuguesa, para além de confirmar os resultados obtidos em inúmeras pesquisas realizadas no campo da administração educacional, particularmente desde meados da década de 80: ausência de autonomia efetiva, recentralização da administração e burocratização crescente das escolas, desconfiança e resistência ao processo de transferência de competências para os municípios, ausência de participação dos pais, dos alunos e dos professores na vida da escola, entre outras dimensões relevantes.

Ao incidir na primeira parte do livro sobre uma das problemáticas mais estudadas no domínio educativo, teria sido oportuno revisitar e por à prova alguns contributos teórico-empíricos produzidos sobre a realidade portuguesa, designadamente aqueles que procuraram romper com um enfoque normativo e legalista que dominou a administração educacional até meados da década de 1980, e que procuraram aduzir reflexão sociológica às práticas e às estruturas da escola como organização. O espólio de investigações acumulado nas últimas três décadas sobre as várias facetas da gestão escolar é muito rico em evidências empíricas denunciadoras de uma contradição entre a retórica política (nível discursivo e legislativo) e a realidade concreta (nível das práticas em contexto), mostrando as diferentes lógicas que se cruzam nos dois mundos (Lima, 1992; Torres, 2004, Torres e Palhares, 2010). As categorias jurídico-normativas que enformam as narrativas e os discursos dos legisladores, responsáveis políticos e profissionais da comunicação social - e.g. descentralização, autonomia, liderança, gestão democrática - têm sido objeto de ressemantizações várias por força da expansão de políticas de inspiração neoliberal e de práticas gerencialistas, exigindo, portanto, um exercício de problematização sociológica capaz de ampliar e repor os múltiplos sentidos que tais categorias congregam. Pressupor, a priori, que o programa de reforço da autonomia das escolas e a transferência de competências para os municípios produz escolas mais autónomas no quadro de um sistema mais descentralizado significaria admitir uma sobredeterminação formal-legal das dinâmicas organizacionais e, em específico, das práticas de gestão. Ora, inúmeras pesquisas confirmam a não correspondência entre a enunciação política dos conceitos e a sua apropriação contextual. Este livro não deixa, também, de levantar o véu a esta espécie de máscara, sobretudo quando mergulha nos contextos, nos palcos da ação e nas perceções e práticas dos atores.

A parte II do livro, composta por quatro capítulos correspondentes a cinco estudos de caso realizados em escolas de diferentes tipologias localizadas em Lisboa, Coimbra e Alentejo, privilegia um olhar meso e micro analítico, no encalço das lógicas de apropriação local das políticas de gestão e financiamento. A exploração de casos concretos, com atores e situações específicas, revelou-se fundamental para apreender as práticas vivenciadas em contexto, as inúmeras contradições e desarticulações entre as ordens do instituído, do assumido, do apropriado e do praticado. Igualmente a este nível de análise ressalta a tensão entre mudança e permanência, entre retórica e ação, tanto no setor privado como no público. A excelente narrativa de cada caso, sempre apoiada num enquadramento metodológico rigoroso e elucidativo, oferece ao leitor uma incursão visual pela ambiência e cultura de cada escola estudada. A combinação de várias técnicas de pesquisa para perscrutar a realidade de cada escola resultou num exercício laborioso de escuta e observação ativa das diferentes facetas do fenómeno, sem o qual seria difícil desenvolver uma abordagem holística do tema.

A pesquisa de terreno mostrou de forma muito clara a força da regulação burocrática presente nas instituições escolares. Apesar da enorme diversidade de contextos (sociais, culturais, regionais), de formatos e configurações organizacionais e de públicos escolares, persistem, paradoxalmente, uniformizações a vários níveis, que reforçam o controlo burocrático destas instituições. Nas conclusões finais, as autoras sinalizam alguns exemplos paradigmáticos: a missão da escola plasmada nos projetos educativos decalcada dos documentos legais, não espelhando a identidade de cada escola/agrupamento; a configuração semelhante dos websites; a mimetização dos rituais praticados nas escolas; as retóricas discursivas dos diretores sobre a identidade e cultura dos agrupamentos, entre outros aspetos, mostram a presença de uma cultura escolar centralmente instituída.

À questão inicial “como se gerem e quem paga as escolas de ensino não superior em Portugal?”, este estudo fornece elementos empíricos relevantes que vêm confirmar não só a presença de um modelo de gestão e financiamento escolar de feição centralista e gerencialista, como os seus efeitos ao nível da democratização da educação. A acelerada redução do número de estabelecimentos escolares e a sua fusão em agrupamentos e mega-agupamentos de extensões e perfis muito variados gerou, por um lado, novas dinâmicas e problemas de gestão e financiamento e, por outro, intensificou a vertigem técnico-burocrática ampliada pela tecnologia digital. Pesquisas recentes (Ozga, 2016; Abubakre, Ravishankar e Coombs, 2017; Meira, 2017) vêm justamente mostrar que a tecnologização da governação das escolas, aludida no posfácio 2, da autoria de Maria José Ascenção, tem exercido um impacto significativo nas dinâmicas escolares. Este filão investigativo merecerá, certamente, novas abordagens e olhares plurais, cujas sementes podem ser encontradas em alguns dados empíricos divulgados neste livro.

Concluo esta apreciação retomando a questão inicial sobre a especificidade educativa da gestão escolar. Os resultados divulgados neste livro indiciam a presença, tanto no ensino público como no ensino privado, de práticas de gestão e financiamento de feição racionalizadora e gerencialista, apontando cenários de aproximação às lógicas de gestão empresarial. A adesão a esta orientação técnico-burocrática parece esvaziar a liderança escolar do seu sentido mais democrático, remetendo-a à mera esfera da gestão e da implementação, com evidentes impactos no enfraquecimento do seu potencial educativo e transformador. Os processos de gestão, para além dos seus elementos técnicos e procedimentais, configuram quadros intensos de socialização e de apropriação de princípios e valores, não deixando, por isso, de induzir modelos educativos. A alienação participativa e democrática dos atores escolares sobressai neste estudo como um traço estruturante do sistema escolar. Não será esta a razão de fundo que justifica a “profunda e infeliz desconfiança” das escolas em relação ao papel da investigação científica (Miguel St. Aubyn, posfácio 1, p. 352)? Eis aqui um sinal do atual quadro da modernidade que apela à reflexão sociológica, ela própria estimulada pela leitura deste livro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABUBAKRE, M., RAVISHANKAR, M. N., COOMBS, C. (2017), “Revisiting the trajectory of IT implementation in organisations: an IT culture perspective”. Information Technology & People, 30 (3), pp. 562-579.

LIMA, L. L. (2018), “Por que é tão difícil democratizar a escola pública?”. Educar em Revista, 34 (68), pp. 15-28.

MEIRA, M. V. (2017), A Burocracia Electrónica: Um Estudo sobre as Plataformas Electrónicas na Administração Escolar. Tese de Doutoramento, Braga, Instituto de Educação da Universidade do Minho.         [ Links ]

OZGA, J. (2016), “Trust in numbers? Digital education governance and the inspection process”. European Educational Research Journal, 15 (1), pp. 69-81.

SILVA, L. C. (1992), A Escola como Organização e a Participação na Organização Escolar. Um Estudo da Escola Secundária em Portugal (1974-1988), Braga, Universidade do Minho.         [ Links ]

TORRES, L. L., PALHARES, J. A. (2010), “As organizações escolares. Um croqui sociológico sobre a investigação portuguesa”. In P. Abrantes (org.), Tendências e Controvérsias em Sociologia da Educação, Lisboa, Mundos Sociais, pp. 133-158.

TORRES, L. L. (2004), Cultura Organizacional em Contexto Educativo. Sedimentos Culturais e Processos de Construção do Simbólico numa Escola Secundária, Braga, Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho.         [ Links ]

TORRES, L. L. (2018), Recensão Gestão e Financiamento das Escolas em Portugal. Indicadores, Políticas e Atores, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017”. Análise Social, 228, LIII (3.º), pp. 788-793.

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