SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número228Descrição de uma abordagem participada com vista ao redesenvolvimento da mina de São Domingos, Alentejo, PortugalRemuneração dos gestores hospitalares: evidência portuguesa índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.228 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018228.07 

ARTIGOS

A padronização em contexto: uma análise qualitativa sobre a incorporação das Normas de Orientação Clínica em Medicina Geral e Familiar

Contextual standardization: a qualitative analysis of the incorporation of Clinical Guideline Norms into General and Family Medicine

Hélder Raposo*

*H&TRC - Centro de Investigação em Saúde e Tecnologia, Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, Av. D. João II, Lote 4.69.01-1990-096 Lisboa, Portugal. helder.raposo@estesl.ipl.pt


 

RESUMO

A padronização em contexto: uma análise qualitativa sobre a incorporação das Normas de Orientação Clínica em Medicina Geral e Familiar. No quadro de um novo ambiente regulatório, o desenvolvimento de várias ferramentas formais para o reforço da objetividade das decisões médicas, como as Normas de Orientação Clínica (NOC), constitui-se com uma das orientações institucionais privilegiadas. Neste artigo empreendo uma análise compreensiva a partir da mobilização dos resultados empíricos decorrentes das sessões de Grupos Focais desenvolvidas em dois contextos organizacionais ligados à realidade profissional dos médicos de Medicina Geral e Familiar. Verificou-se que as NOC tendem a ser concebidas e mobilizadas apenas como uma das componentes dos processos de julgamento e decisão médica, o que é consistente com a ideia da natureza prática e reflexiva do conhecimento médico, mas também com a conceção do clínico como profissional autónomo que procura preservar a sua jurisdição profissional enquanto reduto das decisões individuais.

Palavras-chave: padronização; discricionariedade; Normas de Orientação Clínica; Medicina Geral e Familiar.


 

ABSTRACT

Under a new regulatory, the development of a variety of formal instruments to strengthen the objectivity of medical decisions is favored (namely, Clinical Guidelines). In order to explore the scope of standardization in clinical practice, I develop a comprehensive analysis grounded on the mobilization of the empirical results derived from the Focus Group sessions that took place in two organizational contexts related to the professional reality of GPs. It is concluded that Clinical Guidelines tend to be conceived and mobilized only as one of the components of the medical judgment and decision processes, which is consistent not only with the idea of the practical and reflexive nature of medical knowledge, but also with the concept of the clinician as an autonomous professional who seeks to preserve her/his professional jurisdiction as a safe haven for individual decisions.

Keywords: standardization; discretionary; Clinical Guidelines; General Practice.


 

INTRODUÇÃO

A natureza complexa e indeterminada do trabalho profissional médico corresponde a uma característica particular que não só tende a ser salientada como distintiva - devido à vinculação da medicina aos problemas existenciais da vida, do sofrimento e da morte (Toulmin, 1993) -, como se tem constituído como um dos principais substratos normativos que sustenta os valores fundadores do próprio profissionalismo médico. Nesse quadro referencial, a capacidade de adequar eficazmente o conhecimento teórico e abstrato ao âmbito complexo dos problemas concretos e das situações singulares é vista como a expressão da qualidade da “arte prudencial aristotélica” (Antunes, 2012, p. 37). Essa adequação das leis universais da ciência médica à condição concreta do indivíduo remete, portanto, para a importância do papel da experiência e do conhecimento tácito no julgamento clínico. Nesta aceção, o património de experiência clínica é, assim, o que torna possível o desenvolvimento de uma abordagem de natureza hermenêutica cujo principal desafio, como se sustenta, é o de fazer integrar, de forma validada, os “particulares nos universais” (Malterud, 2001) no exercício da prática clínica.

Importa, no entanto, notar que esta conceção tem vindo a ser crescentemente desafiada tanto no interior como no exterior da profissão médica, sendo que é a partir do período do pós-segunda guerra mundial que se vai tornando efetivamente notória a existência de um crescente consenso e empenho de múltiplos atores na cientifização da medicina e na formalização das decisões clínicas (Gordon, 1988; Berg, 1995). A desqualificação das formas de conhecimento baseadas na intuição e na experiência dá, assim, lugar à secundarização das dimensões qualitativas, designadamente ao papel dos elementos subjetivos enquanto componentes constitutivas de todas as formas de julgamento humano. Conduz, por conseguinte, à gradual sedimentação da ideia de que a arte do julgamento clínico acaba por ser uma forma de recusar os critérios explícitos da abordagem científica (Eddy, 1988), pelo que se preconiza que o papel desse julgamento deve ser radicalmente substituído pela evidência de base estatística e pela formalização de instrumentos codificados que sistematizam a informação proveniente da investigação científica, nomeadamente dos estudos clínicos experimentais.

Com efeito, o crescente privilégio epistemológico conferido às metodologias científicas de base estatística estabelece um novo entendimento quanto ao que conta como evidência válida e quanto às metodologias e técnicas que podem assegurar a aplicação de um conhecimento mais rigoroso e isento de variações, sendo este, de resto, um dos principais sustentáculos que está subjacente à própria emergência da chamada Medicina Baseada na Evidência (MBE) no início da década de 1990.

Afirmando-se como um processo de pesquisa e sistematização da evidência científica resultante da investigação clínica, a MBE tem, assim, como propósito explícito tornar possível a aplicação mais padronizada das provas científicas decorrentes da utilização das análises epidemiológicas a certos aspetos da prática médica, como a validação das terapêuticas ou as recomendações clínicas no formato de Normas de Orientação Clínica (NOC).

Atendendo à definição institucional da MBE, emerge, pois, com razoável clareza a expectativa conferida ao potencial da padronização para o reforço da objetividade das decisões médicas, dado que nessa mesma definição é sublinhada a ideia de que esta abordagem consiste no uso consciencioso, explícito e criterioso da melhor evidência científica disponível para a tomada de decisões sobre a saúde dos indivíduos. Sobretudo porque se sustenta que muitos aspetos dos cuidados médicos dependem de fatores individuais e de julgamentos valorativos que introduzem muitas variações nas práticas clínicas (Sacket et al., 1985).

É justamente nesta aceção que o pressuposto da indispensabilidade da padronização das práticas profissionais médicas passa a configurar-se como um imperativo cada vez mais incontornável, na medida em que se preconiza que a efetiva variação e diversidade dessas práticas é geradora de problemas não só ao nível da qualidade dos cuidados de saúde, mas também, e sobretudo, ao nível do controlo e da racionalização dos custos inerentes à prestação dos cuidados em contextos marcados por crescentes constrangimentos de sustentabilidade financeira.

Na ótica dos atores externos com responsabilidades ao nível da regulação e do financiamento do sistema de saúde, o tipo de evidência científica que é sistematizada no âmbito da MBE, bem como os instrumentos de formalização e codificação do conhecimento que esta torna possíveis, passam a constituir-se como critérios estratégicos de regulação política e de avaliação organizacional da própria qualidade do desempenho profissional dos seus intervenientes. Para além do seu uso enquanto critério de alocação financeira de recursos, essa evidência constitui-se, igualmente, como uma base fundamental para monitorizar resultados em matéria de avaliação da eficácia e eficiência das intervenções clínicas.

Todavia, e não obstante a ênfase e a prioridade regulatória conferidas a este tipo de enfoque, é importante salientar que o facto de existirem padrões não garante, por si só, que estes sejam efetivamente seguidos (Brunsson, Jacobsson, 2000, p. 8), pelo que se torna fundamental compreender as modalidades de mobilização das NOC no contexto prático do trabalho médico. É precisamente este desafio analítico que, em termos mais concretos, está subjacente à discussão a desenvolver no presente artigo, pois independentemente das lógicas de regulação externa que hoje enquadram o setor da saúde, é relevante empreender um esforço de compreensão relativamente às formas de adoção destes novos imperativos no modelo profissional da medicina. Tal pressupõe uma exploração sociológica relativamente à lógica de construção do conhecimento médico e, portanto, uma compreensão quanto ao modo como os profissionais mobilizam e efetivamente integram estes instrumentos no contexto da sua prática clínica.

Neste sentido, discernir de que modos os médicos avaliam, discutem, adaptam, incorporam ou articulam múltiplas fontes de evidência (como por exemplo as histórias clínicas, exames, testes laboratoriais, experiência clínica, intuição, discussão inter-pares, evidência científica de natureza epidemiológica, etc.) e, por conseguinte, como os diversos conhecimentos são valorizados e tendencialmente usados, partilhados e reproduzidos no contexto do seu exercício profissional, constitui, portanto, um dos enfoques privilegiados para captar e compreender a coexistência (muitas vezes competitiva entre si) de diferentes “vozes” na medicina (Atkinson, 1995), cada uma implicando diferentes orientações e atitudes, e cada uma ajudando a reconstituir a complexidade da cultura clínica e a heterogeneidade das suas ações pragmáticas decorrentes da reflexividade prática e do papel das próprias rotinas médicas (Berg, 1992).

Para proceder ao desenvolvimento deste enfoque analítico e, desse modo, perscrutar a forma como se desenvolvem os processos de aceitação e incorporação da evidência científica, bem como dos instrumentos que a sistematizam (NOC), foi assumida a seleção, dentro do escopo mais alargado das especialidades médicas existentes, do caso da Medicina Geral e Familiar (MGF). A pertinência desta escolha justifica-se pelo facto de se tratar de uma especialidade médica que está ideologicamente ancorada numa retórica profissional que valoriza a componente biográfica e holista (o modelo clínico centrado no doente) (Ramos, 2008) enquanto um elemento distintivo que foi, aliás, historicamente crucial para afirmar a diferenciação desta especialidade face à medicina hospitalar mais estruturalmente baseada no modelo biomédico (Armstrong, 1979). O que com isto se procura dizer é que, tratando-se de uma especialidade que está muito ligada à valorização do contexto (Jordão, 1995; Sá, 2002) e ao modo como este “alimenta” o conhecimento prático que subjaz ao julgamento clínico, acaba por ser bastante privilegiada a orientação para a compreensão situacional do todo por via do enquadramento relativo às circunstâncias particulares e contextuais do próprio doente.

Deste modo, e tendo como base as conceções dos profissionais de MGF - algo que, como se explicitará na secção relativa à metodologia, decorre das opções da estratégia de investigação assumida e que é concretamente operacionalizada através de um estudo de caso centrado em dois contextos organizacionais específicos- procede-se neste artigo a um trabalho de discussão analítica orientado privilegiadamente para a compreensão das formas de valorização, envolvimento e mobilização que estes especialistas fazem dos instrumentos formais de padronização, concretamente as NOC, no contexto da sua prática profissional.

Antes, no entanto, de proceder à discussão analítica do material empírico, é importante traçar o enquadramento geral da conceptualização que lhe está subjacente. Tratando-se de um modelo de análise que resulta da articulação de várias áreas disciplinares da sociologia (designadamente a sociologia das profissões, da saúde e dos estudos sociais da ciência - ESC), o mesmo acaba, no âmbito dos objetivos específicos desta discussão[1], por se estruturar em torno de um enfoque que é claramente mais tributário dos ESC, no sentido em que se enfatiza a problemática relativa ao entendimento das dinâmicas contingentes de negociação e de adaptação local da diversidade de normas, práticas e formas de conhecimento no contexto das suas práticas concretas.

O desafio analítico que se coloca privilegia, assim, o entendimento das mediações interativas do conhecimento sem que isso implique, no entanto, descurar as inter-relações mais estruturais no quadro dos contextos gerais de mudança regulatória no setor dos cuidados de saúde (Moreira, 2012). O foco da abordagem passa, portanto, por aferir o impacto efetivo da incorporação das NOC no contexto da MGF, pois embora estas possam estabelecer uma nova delimitação do espaço de discricionariedade destes profissionais, não suprimem, contudo, a sua autonomia clínica. Não só porque as organizações profissionais tendem a estar frequentemente no controlo dos processos de definição e estabelecimento desses instrumentos (Raposo, 2014) ou de outros mecanismos regulatórios similares (Chamberlain, 2009; Carapinheiro, Serra, Correia, 2013), mas também, e sobretudo, porque ao nível da sua utilização as NOC são, afinal, objeto de transformações e adaptações locais que estão diretamente vinculadas à experiência, aos conhecimentos tácitos e também à avaliação das necessidades individuais dos doentes (Serra, 2007). É este o enquadramento que se explicitará já de seguida.

DA IMPLEMENTAÇÃOÀ RECONTEXTUALIZAÇÃO PRÁTICA DA PADRONIZAÇÃO

Um dos aspetos cruciais que enforma o enfoque analítico desta investigação prende-se com a demarcação que é assumida face a qualquer tipo de ênfase apriorística nas consequências negativas da padronização e no impacto pretensamente hegemónico das NOC na prática médica (Timmermans, Kolker, 2004). A ocorrer, tal constituiria uma forma de reificar o próprio conceito, designadamente porque os resultados desses processos podem ser efetivamente diversos, contraditórios e até imprevisíveis (Timmermans, Almeling, 2009, p. 26). Deste modo, a implementação de padrões e protocolos, mais do que se limitar a instaurar mecanismos formais geradores de uniformização, requer um trabalho ativo de coordenação e articulação (Bowker, Star, 1999) para os integrar em contextos frequentemente marcados por outros padrões e rotinas (Berg, 1997).

Decorre, assim, desta linha de argumentação não só a ideia de que a implementação de padrões remete para um processo dinâmico e adaptativo, mas sobretudo a ênfase na indispensabilidade da agência necessária para proceder aos vários equilíbrios e articulações entre a flexibilidade e a rigidez dos mesmos, pois no fundamental a padronização consiste na compatibilização entre as condições locais da prática com a validação universal dos padrões; aquilo a que Timmermans e Berg (1997) designam de “universalidade local”. Dito de um outro modo, a apropriação de um protocolo em função das condições locais consiste, portanto, num “procedimento reflexivo, que contempla a possibilidade de autocorreção em função dos resultados da sua aplicação; e é um procedimento pragmático, na medida em que a sua utilidade e eficácia são avaliadas em função das condições específicas em que é mobilizado e, eventualmente, sujeito a adaptação ou reformulação” (Faria, 2001, p. 91).

Ora considerando o campo concreto da regulação da saúde, que tem sido efetivamente fértil na disseminação de mecanismos de escrutínio externo relativamente ao exercício profissional da medicina (Chamberlain, 2009), afigura-se como relevante equacionar em que medida questões como a distribuição e a adoção das NOC nos contextos institucionais concretos (Fitzgerald, Dopson, 2005), se constituem como dimensões cruciais que remetem a abordagem para um patamar de discussão que integra a heterogeneidade e a contingencialidade das práticas e dos conhecimentos profissionais. Práticas e conhecimentos que não estão, naturalmente, desprovidos das suas dimensões e dinâmicas sociais próprias.

De facto, estes aspetos são importantes e merecem ser levados em linha de conta, até porque contribuem para o esclarecimento de dinâmicas que muitas vezes tendem a ficar subsumidas nas preocupações de teor regulatório relativas à necessidade “virtuosa” da implementação da evidência e dos instrumentos formais que potencialmente asseguram a alteração de práticas profissionais e organizacionais. O que com esta ideia se pretende salientar é, no fundo, a constatação segundo a qual a questão da implementação se tornou numa das principais metas das entidades regulatórias que revelam, assim, a forte expectativa de que os profissionais alterem a sua prática clínica em conformidade com as orientações da evidência científica. Mas como influenciar os profissionais a alterar as suas práticas nesse sentido, quando aquilo que muita da evidência científica (Greenhalgh, 2006; Cabana et al., 1999; Grol et al., 1998; Burgers et al., 1998; Freeman, Sweeney, 2001) faz salientar é que os padrões parecem ter pouco efeito no âmbito das decisões médicas?

Sem dúvida que não têm faltado estratégias e recursos institucionais para assegurar a implementação de padrões e para tentar contrariar a sua não utilização, desde logo porque se tem verificado a crescente consolidação de toda uma infraestrutura complexa de auditores, monitores e consultores para implementar e avaliar a conformidade das práticas profissionais e organizacionais relativamente a esses instrumentos codificados (Power, 1999; Timmermans, Epstein, 2010). Todavia, os resultados da sua implementação prática são efetivamente complexos, parciais e difíceis (Brunsson, Jacobsson, 2000; Fitzgerald, Dopson, 2005) e, sobretudo, evidenciam a falibilidade das abordagens mais convencionais, designadamente as estratégias de educação médica que se baseiam no pressuposto de que a sistematização, disponibilização e difusão de novo conhecimento podem alterar, por si só, os comportamentos profissionais numa direção mais “evidence-based” (Greenhalgh, 2006). Ora não só a aplicação é difícil devido ao facto de os padrões serem gerais e abstratos quando, na prática, os problemas e as operações para a resolução dos mesmos são sempre concretas e específicas (Schon, 1983), como é frequente encontrar elevada relutância em implementar padrões em contextos de valorização da autonomia profissional e de margens efetivas de inovação (Brunsson, Jacobsson, 2000).

Sob este ponto de vista, uma das principais limitações que tende a ser atribuída aos modelos “clássicos” de difusão prende-se não só com o facto de os promotores da MBE tenderem a conceber o problema da implementação acima de tudo como um problema técnico de disponibilidade da informação de qualidade (Dopson et al., 2003, p. 317), mas também com o facto de estes raramente reconhecerem a heterogeneidade dos contextos organizacionais, bem como as dinâmicas locais de negociação da sua incorporação na prática (Fitzgerald, Dopson, 2005). Daqui resulta uma dificuldade concreta em compreender que a adoção dos padrões tende a ser seletiva e gradual e que, entre outros aspetos relevantes, depende muito do reconhecimento da credibilidade dos padrões e da relevância do conhecimento que estes incorporam para a resolução dos problemas específicos (Brunsson, Jacobsson, 2000).

Os problemas de aplicação dos sistemas formalizados no contexto da prática clínica e a questão da própria qualidade das NOC correspondem, assim, a uma dimensão problemática que não tem cessado de suscitar, no interior do próprio campo da medicina, uma abundante reflexão crítica sobre as dificuldades de tradução da evidência para a prática clínica (Woolf, 1999; Pazart et al., 1998; Grilli, 2000), nomeadamente em termos da sua aplicabilidade, da potencial conflitualidade entre NOC, do seu tendencial “anacronismo” e da rápida proliferação e imposição de novas NOC (Lohr et al., 1998). Aliás, muitos destes problemas que têm interpelado os clínicos acabam, em grande medida, por ser os mesmos que estão na base de várias iniciativas relacionadas com o desenvolvimento de esquemas de classificação sobre a qualidade da evidência (Lohr et al., 1998, p. 10) ou de instrumentos de qualidade específicos como o Strenght of Recommendation Taxonomy (SORT) (Ebell et al., 2004), The Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE), The GuideLine Implementability Appraisal (GLIA) (Shiffman et al., 2005) ou o Appraisal of Guidelines for Research and Evaluation (AGREE), este último visando avaliar vários parâmetros relativos ao conteúdo científico, ao processo de produção da evidência e à própria apresentação das NOC (Greenhalgh, 2006, pp. 142-145).

Um dos principais aspetos que diferencia este tipo de abordagem das análises mais qualitativas passa pelo facto de estas últimas conferirem uma maior centralidade analítica à compreensão dos contextos organizacionais, nomeadamente em relação aos modos como a evidência é incorporada na prática clínica; ao entendimento de que a adoção das inovações nas práticas concretas consiste num processo dinâmico e contínuo que para ser satisfatoriamente compreendido requer perspetivas de análise longitudinal. Pressupõe também a interpretação das ações e das lógicas características das práticas locais, assim como a compreensão da própria reflexividade profissional que está na base das formas de envolvimento, interpretação e mobilização das fontes de conhecimento formal e informal nas situações específicas de trabalho (Fitzgerald, Dopson, 2005; Caria, 2005). Aliás, não é de todo inusitado - mesmo em contextos de alta especialização técnica e tecnológica (o modelo de medicina tecnocrática, de que se constitui uma boa ilustração o domínio da transplantação hepática) (Serra, 2007, 2008) - que na prática profissional concreta prevaleça o primado da experiência clínica, circunstância que conduz frequentemente à secundarização de critérios mais padronizados, sobretudo os de natureza estatística. Verifica-se, assim, que não obstante os proclamados méritos dos protocolos remeterem para um horizonte de padronização de procedimentos, as margens de imprevisibilidade e o acionamento de saberes indeterminados acentuam lógicas de articulação e negociação, neste caso entre especialidades e entre profissionais, de carácter fortemente contingente.

Assim, e em lugar de uma abordagem baseada no pressuposto das virtudes da evidência e na ideia de que a implementação pode ser melhorada por via da procura das intervenções mais eficazes na difusão da evidência (Cabana et al., 1999; Shiffman et al., 2005; Lugtenberg et al., 2009), os enfoques mais qualitativos sublinham o carácter multifacetado e multidimensional dos contextos locais. Em vez de uma visão estática dos contextos que os entende como realidades que podem ser observadas e medidas por critérios quantitativos, estas abordagens permitem explorar dimensões relativas ao modo como os profissionais relacionam a evidência disponível com as suas práticas de trabalho e também ao modo como ativamente interpretam e reconstroem a sua utilidade e validade local.

Nesta medida, dimensões de análise centradas no papel do contexto micro para a incorporação da evidência na prática ou na importância das culturas profissionais enquanto uma forma identitária e uma experiência partilhada em situação na atividade sociocognitiva (Caria, 2008, p. 769), permitem mostrar que as “barreiras” à implementação efetiva dos padrões tanto integram elementos cognitivos como elementos sociais e identitários (Ferlie, 2005). Chamam também a atenção para a necessidade de compreender os processos sociais de atribuição de sentido a que é sujeito o conhecimento (seja ele explícito ou tácito) (Malterud, 1995), nomeadamente em termos dos seus modos de negociação, construção e internalização no contexto das práticas e das rotinas de trabalho (Gabbay, May, 2004).

Aliás, a compreensão das práticas profissionais e das suas modalidades específicas de reflexividade nos contextos concretos de ação mostra que as formas explícitas e codificadas de conhecimentos não são, com efeito, as únicas fontes de conhecimento legítimo para os profissionais. Pelo contrário, importa considerar, para efeitos de compreensão do papel do julgamento clínico no âmbito das práticas médicas, a centralidade que os conhecimentos tácito, experiencial e informal efetivamente assumem, dado que são justamente estas dimensões mais incorporadas (ou “encorpadas”, no sentido de estarem inscritas no corpo) (Gordon, 1988; Greenhalgh et al., 2008; Nettleton et al., 2008) que permitem dar sentido às particularidades e às exigências dos contextos, e, consequentemente, lidar com as singularidades e contingências que aí emergem (Henry, 2006). O mesmo significa dizer que os algoritmos de decisão das NOC acabam por se desligar paradoxalmente da complexidade da prática, na medida em que o âmbito de formalização destes instrumentos “apenas” institui uma lógica inferencial da decisão, quando esta tem subjacente um julgamento cuja perspetiva é intrinsecamente interpretativa (Huddle, 2007, p. 491).

METODOLOGIA

A estratégia de investigação que foi desenvolvida nesta pesquisa[2] insere-se no quadro de uma metodologia qualitativa-intensiva, tendo a mesma sido alicerçada na pesquisa de terreno enquanto método principal, designadamente através do recurso à observação direta (por via da participação em reuniões médicas semanais)[3], bem como por via da realização de sessões de Grupos Focais.

No âmbito desta abordagem metodológica, foi conferida uma clara primazia às preocupações de interpretação da realidade socioprofissional dos médicos da especialidade de MGF inseridos nos seus contextos organizacionais típicos. Esta circunstância constituiu, assim, a condição fundamental para a exploração e compreensão das conceções dos profissionais de MGF relativamente à utilização da evidência científica na prática clínica através de instrumentos formais de codificação do conhecimento, como são por excelência as NOC.

De um ponto de vista mais operacional, a opção pelo estudo aprofundado desta realidade traduziu-se na selecção de um estudo de caso que recaiu em dois contextos organizacionais típicos onde se desenvolve o trabalho dos médicos de MGF. A escolha dos casos foi pautada pela preocupação em explorar a sua exemplaridade, no sentido de os entender como casos que traduzem simultaneamente as diferenças organizacionais dos contextos de trabalho dos médicos de MGF, assim como aspetos que podem, com as devidas diferenças, ser transversais a esses mesmos contextos. Naturalmente que as pretensões analíticas são sempre pautadas pela devida prudência, uma vez que estas não assumem como propósito a produção ou a extrapolação de conclusões pretensamente extensíveis a toda a realidade organizacional da MGF.

Em termos concretos, a seleção dos contextos recaiu, por um lado, nas designadas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), que correspondem à configuração organizacional “tradicional” da prestação dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) por parte dos médicos de MGF, e, por outro, nas Unidades de Saúde Familiar (USF), que emergiram enquanto modelo inovador de um novo figurino organizacional que corporizou uma das expressões mais visíveis da reforma dos CSP que teve lugar a partir de 2005 (Teixeira, 2012).

No âmbito específico da pesquisa de terreno que foi desenvolvida, assumiu um particular privilégio o recurso à técnica dos Grupos Focais, tendo-se esta constituindo como o corolário de um percurso gradual e cumulativo de exploração empírica desenvolvida no quadro de um processo prévio de observação direta que decorreu entre dezembro de 2011 e julho de 2012. O recurso a esta técnica justificou-se pelo facto de esta proporcionar a ocasião e o estímulo para os membros de um determinado coletivo articularem pressupostos normativos que habitualmente não são explicitados ou que, pelo menos, não são objeto de particular reflexão por parte dos próprios indivíduos (Bloor et al., 2001; Barbour, 2010). Ou seja, a operacionalização desta técnica não só estimulou a interação dos participantes, “encorajando-os” a explorarem e a explicitarem as suas posições, conceções ou perspetivas - bem como as eventuais divergências ou experiências partilhadas entre o grupo -, mas também se constituiu como uma forma rápida e eficaz de aceder diretamente a formas de comunicação típicas das interações quotidianas dos indivíduos.

Em termos mais práticos, o recurso a esta técnica de recolha de informação traduziu-se na realização de quatro sessões que se debruçaram sobre as conceções dos profissionais de MGF relativamente ao papel da evidência científica e das NOC no âmbito da sua prática médica, tendo as mesmas decorrido entre o fim de 2012 e o início de 2013.[4] Duas delas envolveram médicos especialistas com responsabilidades formativas na orientação de internos (n = 14) e as outras duas envolveram os próprios internos da especialidade de MGF (n = 16), sendo respetivamente divididas pelos dois contextos organizacionais já identificados.

Assim, e tal como é possível constatar pela leitura do Quadro 1 - que sintetiza as várias características do perfil dos participantes -, as sessões de grupos focais envolveram um total de 30 médicos de MGF e a dimensão dos grupos variou entre os 6 e os 8 elementos. Ao nível da sua composição foi privilegiado como critério a sua relativa homogeneidade, não no sentido de os presumir como uniformes, mas por considerar que a circunstância de estes grupos já “pré-existirem” se constituiu como uma dupla vantagem. Por um lado, permitiu refletir mais fielmente as lógicas internas de funcionamento dos próprios grupos, e por outro, permitiu uma maior fluidez das conversações, para além de facilitar a análise das diferenças de perspetivas entre grupos. Os grupos constituíram-se, assim, como a unidade de análise e em cada um deles procurou-se analisar e compreender as interações ocorridas e, desse modo, o próprio contexto onde as ideias são formadas e partilhadas.

 

 

DISCURSOS E RACIONALIDADES PROFISSIONAIS SOBRE O PAPEL DAS NOC NA PRÁTICA CLÍNICA DE MGF

Substantivando esta discussão com o conteúdo das sessões de Grupos Focais, importa agora explorar as dimensões que melhor refletem o alcance e a natureza das reconfigurações que permeiam a realidade profissional dos especialistas de MGF. Um destaque que rapidamente emergiu como incontornável foi o que se referiu ao processo concreto da “recente” (iniciado em finais de 2011) implementação das NOC em Portugal, dado que o mesmo permitiu ancorar a discussão relativa aos aspetos específicos que enquadram e modelam a prática clínica destes profissionais. Trata-se de um processo que, com efeito, instituiu um novo enquadramento de natureza gestionária no mundo profissional da MGF, embora seja de grande pertinência fazer notar que, em bom rigor, o mesmo não se traduziu numa imposição unilateral que tenha forçado um contexto hostil às prerrogativas desta especialidade (Raposo, 2014). Os médicos de MGF não foram um alvo passivo e impotente face a qualquer arbitrariedade centralista do Estado, o que é claramente convergente, fazendo o paralelo com algumas reformas políticas na saúde com incidência na realidade hospitalar, com o argumento de que a profissão médica tem denotado uma adaptação resiliente (e não raras vezes uma incorporação estratégica) aos mecanismos de regulação externa (Carapinheiro, Serra, Correia, 2013).

Assim sendo, e relativamente ao estatuto das NOC e ao papel específico que estas podem desempenhar na prática clínica, é de destacar como um dos primeiros aspetos centrais a existência de um entendimento bastante consensual relativamente à sua utilidade, porém enquanto um instrumento de mera orientação que não dispensa o questionamento crítico dos especialistas sobre a sua validade científica, nem a sua preocupação de as ajustar aos casos concretos. A complexidade e a heterogeneidade intrínsecas dessas situações são concebidas como dimensões que extravasam o âmbito mais codificado das recomendações preconizadas pelas NOC, mesmo quando a sua robustez científica não está propriamente em causa. Dois excertos provenientes de sessões com médicos orientadores de UCSP e USF ilustram claramente esta ideia:

As normas são orientações para serem tidas em conta quando estamos na nossa prática mas depois temos de as adequar aos doentes que temos em frente. E só vamos aplicar as que nós achamos que têm uma base científica sólida. (…) Não vamos segui-las cegamente só por serem normas da Direção Geral de Saúde (DGS), é bom questioná-las. [MO4]

Mas é preciso que eu tenha a certeza que aquele documento está muito bem apoiado, que tem uma força de recomendação boa. Digamos que pode securizar um bocadinho a prática clinica, não sendo cego, para mim nãoé um documento cego (…). É uma orientação mas não mais do que isto. Enquanto orientação tem interesse para a prática, se eu quiser fazer trabalhos de investigação, naturalmente se todos nós nos cingirmos por determinadas normas é mais fácil fazer a investigação, mas não mais que isto. [MO9]

Já no caso em que as questões da qualidade científica das NOC não estão plenamente satisfeitas, as reservas relativas às suas potencialidades de uma aplicação mais universal são acentuadas pela prudência de não as assumir como intrinsecamente válidas. Por essa razão, e tendo em conta as vicissitudes caracterizadoras do arranque intensivo e heterogéneo do processo de implementação das NOC (Raposo, 2014), acaba por não ser uma constatação propriamente surpreendente o modo premente como se assume, enquanto requisito prático, a necessidade de desenvolver nos contextos locais um exercício de avaliação e discussão crítica para, justamente, aferir o rigor e a credibilidade científica de uma determinada NOC.[5] Trata-se, no fundo, de uma prerrogativa que decorre daquilo que foi a participação dos profissionais na modulação do processo de implementação das NOC, designadamente ao terem conseguido salvaguardar a margem para o julgamento clínico, requisito indispensável para a discricionariedade profissional (Raposo, 2014; Serra, 2016):

Mas para nós aplicarmos uma norma, mesmo que seja orientativa e não seja obrigatória, devemos refletir e olhar para o que lá está escrito e para a base com que foi construída. E esse processo é fundamental e foi o que tentámos fazer aqui na USF, sempre que saía uma norma um dos nossos interpares encarregava-se de ver o que lá estava escrito, de analisar, de ver a bibliografia em que tinha sido suportada essa norma mas também outra bibliografia que pudesse sustentar, ou não, o que lá estava escrito. Portanto, a evidência científica é fundamental mas atenção à evidência científica que se coloca lá e ao processo como é conduzido [MO2].

Acresce a esta conceção mais amplamente generalizada um outro aspeto que foi exclusivamente salientado pelos médicos internos, e que se prende com o facto de as NOC se poderem constituir - desde que comprovadamente robustas em termos do seu teor científico - como um elemento facilitador da sua formação, não só em termos de estudo para exames mas sobretudo para trabalhos de investigação. Os aspetos relacionados com as potencialidades de uma maior sistematização dos conhecimentos são, assim, uma das virtudes mais salientadas, como atesta, por exemplo, o seguinte excerto de uma interna inserida no contexto de uma USF:

Para mim as NOC são extremamente valiosas, primeiro porque nós como médicos de família temos uma abrangência muito grande em termos de conhecimentos e de áreas que temos que estudar e que saber e portanto é-nos impossível estudar outro tipo de artigos, de ensaios clínicos, as revisões, para cada tema estarmos a rever tudo isto. As NOC de certa forma acaba por ser toda essa informação digerida por uma entidade, mais ou menos credível. (Risos) (…) O ser obrigatório é outra questão! Mas a existência das normas em si eu acho que é uma grande mais-valia porque até à altura quando eu entrei no meu internato nós não tínhamos normas da DGS para estudar e, portanto, nós estudávamos por outras normas de orientação, por revisões, por outro tipo de artigos. Por isso o nosso esforço para sistematizar toda essa informação para estudarmos cada tema era muito superior. [MI15]

Já quanto aos posicionamentos relativos à aplicabilidade das NOC aos aspetos concretos do trabalho clínico, verifica-se que embora se confirme a aparente compatibilização entre o conhecimento de base epidemiológica e os critérios mais próximos dos fundamentos e dos pressupostos do modelo clínico centrado no doente, as reações são, contudo, um pouco mais ambivalentes. Assim, se é verdade que está bastante enraizado na larga maioria dos discursos dos intervenientes das sessões de grupos focais a ideia de que a autonomia clínica tem precedência sobre os aspetos mais prescritivos das NOC, no sentido em que o trabalho clínico pressupõe a capacidade de adaptação às dinâmicas e complexidades dos casos práticos, o espectro da impositividade não estava, no entanto, plenamente dissipado para todos os profissionais. Sem dúvida que prevalece como traço dominante o argumento - aliás, amplamente reiterado em vários momentos das diversas sessões - de que a perspetiva de incumprimento das NOC é algo de absolutamente “normal”, apenas requerendo a devida fundamentação clínica para suportar uma decisão diferente.

O longo excerto que a seguir se apresenta, e que capta a discussão entre vários médicos orientadores do contexto da UCSP sobre o alcance e as implicações da salvaguarda da justificação clínica do não cumprimento das NOC, elucida o sentido das considerações anteriores:

Há especificidades na medicina que me parecem que não podem ser renegadas. Eu tenho de tratar o doente, não me posso orientar só por uma norma, é o caso da polipatologia. (…) Eu estive com a X que me disse que eles vão fazer as avaliações dos diabéticos através da prescrição de metformina, quem não tiver metformina está mal medicado. Acontece que há diabéticos que não precisam de metformina nem precisam de nada. Não pode ser uma lei, não pode ser uma força, não podemos ser avaliados dessa forma, acho que é uma orientação. (…) Eu não vou prescrever metformina a um doente que não precisa só porque está na norma. [MO9]

Mas isso está previsto na norma, ou seja, quando há contraindicações para seguir aquela norma desde que fique registado no processo clinico o motivo por que se desobedeceu aquela norma, isso está previsto na elaboração da própria norma e portanto isso foi a atitude correta. [MO13]

Sim, isso foi a atitude correta, mas já viu o que é durante uma consulta estar sempre a justificar porque é que tomou aquela atitude?! Às tantas nós estamos de tal maneira burocratizados que em vez de tratarmos doentes fazemos… registamos orientações. [MO9]

Qualquer coisa pode ser justificável desde que a gente justifique no processo, não temos esse problema. A justificação é que eu não estou a fazer! [MO10]

Com efeito, embora esta dinâmica de discussão não coloque propriamente em destaque qualquer espécie de clivagem fundamental quanto ao entendimento de fundo acerca do privilégio do critério clínico face às orientações mais prescritivas das NOC, existem algumas dúvidas quanto a esse “equilíbrio de forças” que resultam muito da circunstância de o processo se encontrar, nesse período, numa fase relativamente embrionária. A esse propósito, e mais significativo ainda do que o facto de serem, à época, muito poucas as NOC efetivamente validadas, foi também a circunstância de as auditorias consistirem num processo que ainda não se tinha operacionalizado de uma forma regular e consistente.

O teor destas dúvidas quanto ao eventual perfil punitivo das NOC, no sentido em que estas teoricamente estabelecem o critério padronizado à luz do qual se procede à avaliação do desempenho dos profissionais, faz, assim, eco de muitas das reservas que marcaram a discussão e a negociação de todo este processo entre as entidades promotoras (DGS, Ordem dos Médicos e sociedades científicas) e os profissionais. Aliás, um dos focos de maior resistência e ceticismo sempre foi, justamente, a perspetiva do desenvolvimento deste processo poder traduzir-se numa lógica de validação externa face à jurisdição profissional e comportando potenciais implicações legais e profissionais nas situações de desvio à obrigatoriedade do cumprimento das NOC.

Nesta medida, portanto, qualquer horizonte de avaliação e de exigência de transparência que tenha como pressuposto regular as decisões dos profissionais que são definidas no âmbito do seu trabalho clínico constitui uma séria ameaça que vai à jugular da própria autonomia profissional, pois reflete a perspetiva de colonização das práticas profissionais, e da vida organizacional, por parte dos critérios managerialistas (Power, 1999; Chamberlain, 2009). Não foi, por isso, surpreendente que a evolução do processo de implementação das NOC, sobretudo na sua fase mais inicial de envolvimento, discussão e negociação dos pressupostos, requisitos e implicações da sua materialização, se tenha centrado muito exaustivamente - a par do envolvimento na avaliação crítica do conteúdo científico destes instrumentos - na questão das auditorias. Ou seja, um dos principais esforços consistiu precisamente na dissipação da imagem “negativa” da obrigatoriedade e da penalização inerente às auditorias, passando a prevalecer em seu lugar a ideia de um processo formativo, pedagógico, de aprendizagem e, acima de tudo, centrado no desempenho das organizações e não dos médicos tomados individualmente.

Também no caso dos internos, e conforme se pode verificar pelo excerto a seguir transcrito, algumas destas dúvidas e reservas manifestam a sua ressonância, sendo de notar que a ênfase é sempre colocada no privilégio do raciocínio clínico (Montgomery, 2006). Ou seja, a perspetiva das implicações nunca chega a constituir-se como um receio estruturante porque, apesar de tudo, existe a confiança de que a persuasão intrínseca desses raciocínios - mesmo que não plenamente formalizados e codificados - se basta a si própria para demonstrar a razoabilidade das decisões clínicas:

Eu acho que também é importante definir o que vai ser a avaliação e como vai ser. Eles dizem que temos de justificar um processo, se vais justificar tudo o que tens de justificar estás tramado. (…) A questão é esta, eu acho que apesar de tudo se vai implementar, se algum dia fores auditado por alguma razão, terás obviamente o teu direito a justificar o teu raciocínio clínico mesmo que o teu raciocínio não esteja todo escrito no processo clínico, senão ficavas com grandes processos clínicos que até nem dá para escrever! [MI9]

Não dá para escrever tudo! Todos os nossos raciocínios, é impossível… [MI15]

Nós temos muito medo de sermos avaliados. Eu acho que no geral, a qualidade dos serviços médicos é relativamente razoável e não temos de ter medo de ser auditados. O erro propositado e o erro premeditado é que é uma coisa a ser investigada… Agora obviamente todos nós vamos cometer alguns erros menores por desconhecimento, por acharmos convictamente que tal será o melhor quando não é. Temos depois é de nos justificar mediante a nossa prática médica. Quem provavelmente nos vai auditar não vão ser coveiros nem inspetores pidescos [MI9]

Outra das dimensões que se revelou analiticamente importante, por remeter para aspetos que são nucleares no profissionalismo médico - e neste caso na própria matriz identitária da especialidade de MGF -, diz respeito ao papel do julgamento profissional, na medida em que este se constitui como o elemento-chave para o desenvolvimento das competências de natureza hermenêutica tidas como indispensáveis para captar os aspetos significativos da condição concreta do indivíduo. Ora se em grande medida esta conceção mais não faz do que reatualizar um debate vetusto sobre a natureza distintiva da epistemologia médica (arte vs. ciência) (Malterud, 1995, 2001; Montgomery, 2006), no contexto da MGF ela ganha um redobrada acuidade, dado que no âmago desta especialidade se inscrevem pressupostos normativos sobre as potencialidades e as virtudes de uma abordagem biopsicossocial ideologicamente demarcada do enfoque biomédico mais estruturador da medicina hospitalar (Jordão, 1995, Sá, 2002).

É nessa medida que se pode entender a unanimidade dos posicionamentos dos participantes nas sessões dos grupos focais relativamente a este aspeto, pois não obstante os constrangimentos concretos decorrentes da acentuada marginalização destes fundamentos no quadro das dinâmicas da governação clínica (Charles-Jones et al., 2003), não deixa de ser notória uma espécie de lealdade intransigente aos princípios do modelo biográfico que está subjacente ao modelo clínico centrado no doente. Tal significa, portanto, que apesar de não haver nenhum tipo de recusa irredutível em integrar a síntese da evidência científica de base epidemiológica na prática clínica, o aspeto que é enfatizado e ativamente promovido é o que se refere às dimensões do contexto para a qual os atributos da experiência clínica são profissionalmente justificados como cruciais (Serra, 2008).

As normas em si não são um fim, são um instrumento, por isso é um progresso termos apoio científico, termos uma parte bem arrumada (…). A forma como foram fundamentadas, como estão a ser utilizadas, às vezes deixa muito a desejar. (…) devemos ter uma parte do conhecimento que está arrumado e dedicarmo-nos mais à pessoa, porque temos algumas coisas que estão bem arrumadas e já se fez o ponto da situação da ciência nesta área. Se souber de cor ou se tiver um fluxograma que me ajude eu posso deixar de parte e utilizar o meu tempo de uma forma mais dedicada à pessoa, ou a aplicar a norma ou a trabalhar os outros aspetos desta pessoa. [MO8]

Lidar com uma pessoa que tem hipertensão, tem um conjunto vasto de aspetos; os aspetos abordados pelas normas são 10/15/20%, se eu arrumar isso rapidamente liberto a cabeça para outros aspetos da vida: porque é que não come?; porque é que não sei quantos? Há um conjunto de aspetos que nunca podem ser normalizados e que são muito mais (MO7)… - A parte artística… (MO8) - Sim a parte artística é 75% que ocupa a cabeça… (…) Se eu levo muito tempo com a parte que não é contexto (…), se eu tiver mais ou menos as ideias mais simplificadas, e tiver mais ou menos uma hierarquia, as primeiras opções…: é isto, ou aquilo, ou aquilo e aqueloutro, é rápido. Se eu não tiver isto arrumado ponho-me eu a fazer quase a norma. Em cada doente estou a fazer uma norma e não estou a ouvir (o doente). Arruma-se a parte biomédica, fica mais padronizado - aquilo que é padronizável -, aquilo que há mais certeza, para libertar o tempo, a tensão, a mente, para a zona de incerteza, que existe permanentemente até nos exames mais simples. [MO7]

No caso dos médicos orientadores da USF, e tal como os excertos anteriores colocam em destaque, esta conceção relativa à lógica de compatibilização da padronização com o julgamento clínico é denotativa de uma certa visão instrumental e pragmática relativamente aos instrumentos codificados que sistematizam a evidência científica de base biomédica e epidemiológica (ou seja, orientada para a doença), uma vez que cumprem um papel de facilitador das vertentes vistas como padronizáveis da avaliação clínica. Esta conceção pragmática faz salientar a ideia de que as regras e as categorias universais de decisão, mesmo decorrendo da matriz do conhecimento biomédico, raramente se constituem como quadros únicos de referência, na medida em que os critérios de avaliação clínica se vão modificando e reconstruindo. Incluindo quando se inscrevem em algumas rotinas que, apesar de facilitarem o desenvolvimento de “automatismos”, se caracterizam por incorporar de modo inclusivo vários processos de articulação entre os diversos elementos heterogéneos que constituem o microambiente dos profissionais (Berg, 1992; Atkinson, 1995; Serra, 2007).

Igualmente convergente com estes aspetos relativos à lógica de articulação e compatibilização entre o potencial de padronização dos instrumentos codificados e a centralidade do julgamento clínico é o caso de um outro excerto,  mas desta feita retirado do contexto da UCSP. Também aqui é notória uma valorização inequívoca da vertente discricionária do julgamento profissional - e que neste caso em concreto é fortemente caucionado pelos atributos da experiência clínica pessoal (Montgomery, 2006) -, mesmo quando os exemplos mobilizados pelo médico orientador são, aparentemente, mais heterodoxos em termos das opções clínicas assumidas:

Corremos o risco de começar a tratar normas e não pessoas. Eu trato a hipertensão desligada do indivíduo, ou trato um pé, ou trato uma doença qualquer. Começo a tratar entidades abstratas desligadas do seu contexto local. Para mim não é o mesmo. Estas NOC, ou outras que sejam, facilitam esta visão que eu acho errada. Eu posso dizer, por exemplo, que já tratei um problema de coluna com antidepressivos. Se calhar se fosse à NOC ver como se trata uma fratura muscular ou uma lombalgia (…) no entanto naquele momento tratou-se com antidepressivos. (…) A ciência médica é muito volátil, é uma ciência que vai mudando e que exige até um esforço de adaptação e atualização permanente, claro que realmente são precisas normas, facilita-nos o trabalho até para saber quais são as últimas normas, as últimas orientações. Têm vindo a mudar e eu tenho 30 anos de carreira e com prática e já vi muita coisa. Eu comecei o meu curso com 250 como o limite do colesterol e neste momento estamos nos 190. Claro que eu pergunto se será a evidência científica se será a indústria farmacêutica. (…) As normas valem o que valem, servem se calhar para uniformizar critérios, para nós percebermos o que é que os colegas que também trabalham nisso estavam a pensar, mas nós temos de ter bom senso, consciência do peso relativo que elas têm. [MO11]

Torna-se, assim, notório que não há propriamente uma objeção ideológica de carácter irredutível em relação às NOC, porém a sua relativização (que se pode traduzir numa não utilização ou numa utilização parcial) mostra que estas acabam por se subordinar às necessidades práticas ou às exigências concretas dos aspetos mais intangíveis da avaliação clínica (Checkland, 2004, pp. 962-967). Por isso, e mesmo que existam atitudes positivas em relação às NOC ou aos próprios objetivos de melhoria da qualidade clínica por via de um reforço mais consistente das decisões que são suportadas por este tipo de instrumentos, o seu impacto prático acaba por ser relativamente diminuto dado estes aspetos estruturantes da mentalidade clínica (Freidson, 1970) e da cultura clínica (Atkinson, 1995; Berg, 1992).

Um dos elementos que evidencia claramente as razões dessa ausência de uma objeção ideológica em relação às NOC ou à própria MBE é o que diz respeito ao facto de existir uma crescente familiarização com as metodologias desta abordagem e um reforço das competências técnicas que permitem aferir a qualidade científica dos instrumentos codificados.[6] Com efeito, esta aproximação e incorporação estratégica aos critérios da MBE acabam por produzir reconfigurações epistemológicas, mas também reconfigurações identitárias que são analiticamente interessantes, sendo que as mesmas são especialmente mais visíveis junto dos internos[7]. Assim, e mesmo que ao nível das suas conceções profissionais seja bastante notório o impacto estruturante do marcador ideológico do modelo biográfico, adquire também um crescente protagonismo a já referida abordagem da MBE. A vinculação aos conhecimentos específicos que a MBE solicita passa, de resto, a constituir-se como um elemento diferenciador e distintivo face, nomeadamente, às outras especialidades hospitalares, tal como se pode constatar nos seguintes excertos, retirados das sessões realizadas com internos, neste caso de uma USF:

Nos hospitais é muito mais utilizado o conceito de opinião de peritos do que evidência científica. Enquanto nós na MGF temos muito mais a preocupação das revisões baseadas na evidência, na medicina hospitalar não, a maior parte dos nossos colegas internos hospitalares não têm essa preocupação. Há opinião de peritos, este colega que faz assim num determinado sítio…, mas a revisão depois de um… vários artigos, é muito mais rara. (…) As normas para a reumatologia, quando houve uma discussão clinica, e nós os internos que lá estavam de MGF, eram os únicos que tinham uma noção do que eram as NOC em termos de número de densitometrias, de quantos em quantos anos, a que é que se referiam as normas. A única que as preocupava naquela altura era ter havido uma NOC que se referia à limitação de utilização dos biológicos. Que era aquela que lhes saía do bolso, de resto não faziam a mais pequena ideia em termos de referências.

Os internos da nossa idade no mesmo ano de internato que nós na esmagadora maioria das especialidades não fazem ideia do que é uma norma, quer dizer uma NOC são capazes de ter ouvido falar mas não fazem ideia do que é uma revisão de medicina baseada na evidência… continuam a fazer uma medicina baseada na prática, na imitação e na experiência do dia-a-dia da equipa, portanto no consenso de peritos! [MI5]

Resulta destes excertos a constatação de que embora as ideologias profissionais (Chauvenet, 1973) dos internos estejam enquadradas e alinhadas com os fundamentos da especialidade, tal não invalida que se faça notar o carácter dinâmico das mesmas. Tal significa que se, por um lado, é expectável que a sua afirmação seja moldada e mediada por estratégias discursivas de distinção e pela produção simbólica de processos de desqualificação das outas especialidades (Carapinheiro, 1991), por outro, verifica-se um investimento ideológico numa dimensão científica que estaria, à partida, nos antípodas dos fundamentos desta especialidade, dado que remete para uma base mais biomédica. É um facto que a enfatização do discurso humanista e da orientação holista, que são os pilares que conferem especificidade ideológica a esta especialidade, permanecem como o principal marcador das conceções identitárias, mas passam agora a mobilizar outros fundamentos que acentuam o reforço do seu estatuto e autoridade profissional, dado que a MBE conota a medicina a um perfil de maior cientificidade.

Uma outra dimensão relevante prende-se com o modo como estes processos de disseminação de instrumentos de maior padronização das práticas clínicas acabam por desencadear dinâmicas adaptativas que combinam de forma compósita diferentes critérios e fontes de conhecimento (formal e informal). A reflexividade profissional que se gera traduz-se, assim, em múltiplos processos de discussão, negociação e internalização de consensos que se vão construindo localmente em virtude das situações específicas, potenciando, deste modo, o desenvolvimento de formas coletivas de conhecimento tácito (Gabbay, May, 2004; Greenhalgh et al., 2008).

No fundo, o modo como os profissionais relacionam a evidência disponível com as suas práticas de trabalho, e também o modo como ativamente interpretam e reconstroem a sua utilidade e validade local, foram aspetos particularmente notórios no contexto da USF, dado que as práticas de discussão e as iniciativas desenvolvidas por estes profissionais (por exemplo, jornadas mensais com duração de um dia e dedicadas a temas variados que cobrem a realidade da MGF e dos CSP) refletem uma promoção ativa de um clima de discussão e de práticas locais de reflexividade profissional interpares (Fitzgerald, Dopson, 2005).

Nessa medida, os processos de incorporação da evidência formal nas práticas profissionais acabam por não conhecer uma trajetória unidirecional e não raras vezes convocam outros tipos de conhecimentos e de evidência mais próximos dos fundamentos epistemológicos e normativos da especialidade, podendo, portanto, ser mais valorizados na resolução concreta de problemas práticos com que o grupo se depara. A mobilização de conhecimentos formais cientificamente ancorados na MBE, assim como a valorização dos fundamentos epistemológicos do modelo clínico centrado no doente, bem como o próprio património de experiência clínica acumulada, são, assim, componentes que se articulam e que vão sendo contextualmente validados e integrados. O excerto seguinte é, justamente, ilustrativo das dinâmicas subjacentes a estas lógicas de reflexividade profissional, embora baseadas na racionalização discursiva dos próprios profissionais:

O que é que tem a nossa USF? Para mim é ter espaço para discussão de tudo o resto, que é o tal 70%. (…). Nós continuamos a trabalhar a comunicação, a afinar as consultas, educação para saúde, trabalhamos as outras partes também, não nos deixamos invadir pela normalização. Sentimos a necessidade de trabalhar as outras partes, onde se baseia a ciência biomédica pura que as normas limitam-se a isso, arrumar o biomédico puro que já foi bem estudado e para nós termos espaço para o resto que é muito mais complexo, a comunicação, a relação… [MO8]

Estas normas estimulam o raciocínio clínico, porque eu ao passar um determinado exame, uma prescrição terapêutica ou ao recusar, eu tenho de pensar porque é que o faço ou porque é que recuso e justificar. Estas normas fizeram-nos raciocinar em conjunto quando apareceram e tivemos de comentar e depois no nosso dia-a-dia sempre que achamos que não se aplicam as normas temos de pensar porque é que não se aplicam. [MO4]

Eu acho que quase todas, se fores olhar bem, quase todas as normas trazem mais-valias à nossa prática. [MO6]

Pelo que discutimos e não pela norma. [MO7]

A ideia fundamental que daqui se pode destacar é, então, a de que a utilização efetiva do conhecimento formal explícito e codificado é relativamente limitado, dado que o esforço reflexivo mais explícito de comparação, avaliação e análise formal da evidência, não esvazia as dimensões mais informais e implícitas. As discussões a que o excerto faz referência constituem-se, assim, como momentos em que a evidência é convertida em conhecimento localmente consensualizado através da avaliação da sua razoabilidade quando confrontado com as preocupações, experiências e conceções inscritas nas práticas clínicas e nas rotinas dos seus contextos de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A valorização da autonomia e do poder discricionário enquanto elementos constitutivos do trabalho profissional da medicina (Freidson, 1970), e que justificam, assim, o carácter distintivo da profissão no modo como, para lidar com a indeterminação e a complexidade, é capaz de desenvolver um raciocínio de adaptação à singularidade (Antunes, 2012; Montgomery, 2006), explicam em grande medida os resultados relativamente “desapontantes” que o processo de implementação e disseminação das NOC tem genericamente conhecido ao nível da sua baixa adesão nas práticas clínicas concretas dos profissionais (Timmermans, Mauck, 2005).

Tende, assim, a verificar-se que não só as NOC são frequentemente “ignoradas”, parcialmente utilizadas ou estrategicamente mobilizadas para outro tipo de finalidades (Germov, 2005; Castel, 2009), tal como também é frequente que ao nível da sua utilização, estas tendam a ser objeto de transformações e adaptações locais. Tal significa que o conhecimento codificado, mesmo com a atual ressonância persuasiva dos novos ambientes regulatórios, tem um papel mais circunscrito do que se poderia assumir, uma vez que as NOC tendem a ser concebidas e mobilizadas apenas como uma das componentes dos processos de julgamento e decisão médica.

De facto, as dinâmicas específicas das suas adaptações locais (Berg, 1997; Fitzgerald, Dopson, 2005; Faria, 2001; Moreira, 2005) e a compreensão das modalidades de mobilização reflexiva dos diferentes tipos de conhecimento no contexto prático do trabalho médico, constituem, nesta investigação, uma orientação que não só permite evitar generalizações interpretativas sobre a natureza pretensamente monolítica do conhecimento médico, mas faz, acima de tudo, salientar o argumento segundo o qual os médicos, no contexto das suas decisões e julgamentos clínicos, mobilizam diferentes racionalidades e combinam interativamente processos formais e informais (Atkinson, 1995; Berg, 1992; Malterud, 1995, 2001; Montgomery, 2006; Henry, 2006). Daqui resulta, portanto, a ideia de que se procedem a formas distintas e diferenciadas de receção, acolhimento, incorporação, adaptação ou recusa dos dispositivos e ferramentas formais de padronização e explicitação das decisões médicas nas práticas profissionais concretas, o que é o mesmo que dizer que, em bom rigor, a padronização não pressupõe necessariamente o esvaziamento da discricionariedade e da autonomia profissional.

Nesta aceção, a permeabilidade à evidência científica acaba por ser particularmente pautada e mediada por preocupações acerca do seu valor prático e da sua adequação à complexidade e exigências dos problemas concretos, pelo que se pode considerar que o conhecimento dos profissionais acaba por estar mais integrado nos contextos onde o seu trabalho é desenvolvido do que propriamente dependente, em sentido estrito, da evidência científica de tipo formal e codificada (Serra, 2007). Esta natureza prática do conhecimento profissional funda-se em formas de reflexividade que exigem operações de tradução das diferentes fontes de conhecimento e mostra, portanto, que as NOC se tendem a revelar instrumentos intrinsecamente limitados para capturar a indeterminação do conhecimento médico. E torna também nítido que o essencial de muitas das principais resistências à adesão às NOC é consistente com a conceção do clínico como profissional autónomo que procura preservar a sua jurisdição profissional enquanto o principal reduto das decisões individuais. É, de resto, por esta razão que se tende a verificar que os profissionais lidam com as normas de orientação clínica mais como opções do que como verdadeiras normas (Timmermans, Mauck, 2005).

No caso da evidência empírica da presente investigação a convergência com estes aspetos é, com efeito, bastante notória, embora se possam sinalizar algumas diferenciações relacionadas ora com a diversidade dos contextos organizacionais (UCSP/USF), ora com o estatuto dos próprios médicos aí integrados (médicos orientadores/internos).

Assim, e sistematizando várias observações que foram sendo apresentadas no âmbito da discussão sobre a integração das NOC na realidade profissional dos médicos de MGF, é relevante destacar, no primeiro caso, a ideia de que em qualquer um dos contextos há um entendimento amplamente partilhado quanto à utilidade das NOC (enquanto mero instrumento de orientação); quanto à importância da salvaguarda da justificação clínica quando se equaciona a necessidade do seu não cumprimento; quanto à importância do julgamento profissional (de resto, o aspeto mais inequivocamente unânime); e quanto à assunção da razoabilidade das NOC se poderem instrumentalmente compatibilizar com a lógica do julgamento clínico. O aspeto que, contudo, só adquiriu visibilidade no contexto da USF é o que diz respeito à centralidade das práticas locais de reflexividade profissional interpares, na medida em que para além do aspeto mais “rotineiro” da apresentação e discussão das NOC, as atividades de discussão, análise e consensualização das conclusões em confronto com as características da atividade assistencial da unidade e com a prática clínica dos profissionais foram aspetos ativamente promovidos pelos participantes (orientadores e internos)[8] da USF.

No caso da segunda diferenciação sinalizada, importa notar que para além da expressiva valorização do valor do raciocínio clínico (fazendo, aliás, eco dos pressupostos normativos do próprio profissionalismo desta especialidade), há dois aspetos que foram exclusivamente patentes na realidade dos internos. Por um lado, a ideia de que as NOC passam pragmaticamente a constituir-se como um elemento facilitador da sua formação, designadamente para a preparação e desenvolvimento dos trabalhos de investigação exigidos no decurso do próprio internato desta especialidade. Por outro, a constatação - extensível tanto aos internos da UCSP como da USF - de que a familiarização com as NOC e o domínio das competências técnicas que lhes permite aferir e validar a consistência científica das mesmas, os colocam num estatuto de maior idoneidade científica face aos internos das outras especialidades, designadamente as hospitalares. Ou seja, a vinculação aos conhecimentos específicos que a MBE solicita reforça o perfil científico da MGF e, por consequência, concorre para a própria afirmação identitária de uma especialidade que foi historicamente subvalorizada nas lógicas da divisão social do trabalho médico.

Por fim, a análise que aqui foi desenvolvida é também convergente com vários trabalhos de investigação empírica que exploram o papel do julgamento profissional no contexto de diferentes facetas das práticas clínicas (Atkinson, 1995; Fitzgerald, Dopson, 2005; Greenhalgh et al., 2008; Nettleton et al., 2008; Serra, 2007), na medida em que estes tendem a salientar que o conhecimento explícito e tácito não são, de facto, categorias forçosamente separadas e que a dimensão tácita está sempre presente enquanto requisito indispensável para que o conhecimento explícito seja objeto de mobilização e de transação com as situações particulares (Schon, 1983; Caria, 2005). É, de resto, por esse motivo que os processos de incorporação da evidência formal nas práticas profissionais se revelam, afinal, e não raras vezes, bastante erráticos, sujeitos a múltiplas direções, velocidades e a formas de coexistência nem sempre harmoniosas com outros tipos de conhecimentos e de evidência que podem, justamente por isso, ser mais valorizados na resolução concreta de problemas práticos, não obstante até se poder reconhecer a robustez científica dos próprios padrões.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, J. L. (2012), A Nova Medicina, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.         [ Links ]

ARMSTRONG, D. (1979), “The emancipation of biographical medicine”. Social Science & Medicine, 13A, pp. 1-8.

ATKINSON, P. (1995), Medical Talk and Medical Work, Londres, Sage Publications.         [ Links ]

BARBOUR, R. (2010), “Focus groups”. In I. Bourgeault, R. Dingwall, R. de Vries (eds.), The Sage Handbook of Qualitative Methods in Health Research, London, Sage, pp. 327-352.

BERG, M. (1992), “The construction of medical disposals. Medical sociology and medical problem solving in clinical practice”. Sociology of Health & Illness, 14 (2), pp. 151-180.

BERG, M. (1995), “Turning a practice into a science: Reconceptualizing postwar medical practice”. Social Science & Medicine, 25, pp. 437-476.

BERG, M. (1997), Rationalizing Medical Work. Decision-Support Techniques and Medical Practices, Cambridge, MIT Press.         [ Links ]

BLOOR, M. et al. (2001), Focus Groups in Social Research, Londres, Sage.         [ Links ]

BOWKER, G., STAR, S. L. (1999), Sorting Things Out. Classification and its Consequences, Cambridge, MIT Press.         [ Links ]

BRUNSSON, N., JACOBSSON, B. et al. (2000), A World of Standards, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

BURGERS, J. et al. (2003), “Characteristics of effective clinical guidelines for general practice”. British Journal of General Practice, 53, pp. 15-19.

CABANA, M. et al. (1999), “Why don'tphysicians follow clinical practice guidelines? A framework for improvement”. JAMA, 282 (15), pp. 1458-1465.

CARAPINHEIRO, G. (1991), “Médicos e representações da medicina: humanismo e tecnicismo nas práticas médicas hospitalares”. Sociologia Problemas e Práticas, 9, pp. 27-41.

CARAPINHEIRO, G., SERRA, H., CORREIA, T. (2013), “Estado, medicina e políticas em Portugal: fluxos e refluxos de poder”. In F. Alves (coord.), Saúde e Sociedade: uma Visão Sociológica, Coimbra, Afrontamento, pp. 49-74.

CARIA, T. (2005), “Uso do conhecimento, incerteza e interacção no trabalho clínico dos veterinários”. In T. Caria (org.), Saber Profissional, Coimbra, Almedina, pp. 197-231.

CARIA, T. (2008), “O uso do conceito de cultura na investigação sobre profissões”. Análise Social, XLIII (189), pp. 749-773.

CASTEL, P. (2009), “What'sbehind a guideline? Authority, competition and collaboration in the French oncology sector”. Social Studies of Science, 39 (5), pp. 743-764.

CHAMBERLAIN, J. (2009), “The changing medical regulatory context: focusing on doctor'seducational practices”. Medical Sociology Online, 4 (2), pp. 26-34.

CHARLES-JONES, H., LATIMER, J., MAY, C. (2003), “Transforming general practice: the redistribution of medical work in primary care”. Sociology of Health & Illness, 25 (1), pp. 71-92.

CHAUVENET, A. (1973), “Idéologieset status professionnels chez les médecinshospitaliers”. Revue Française de Sociologie, XIV, pp. 61-76.

CHECKLAND, K. (2004), “National Service Frameworks and UK general practitioners: street-level bureaucrats at work?”. Sociology of Health & Illness, 26 (7), pp. 951-975.

DOPSON, S. et al. (2003), “Evidence based medicine and the implementation gap”. Health: An Interdisciplinary Journal for the Social Study of Health, Illness and Medicine, 7, pp. 311-330.

EBELL, M. et al. (2004), “Strength of recommendation taxonomy (SORT): a patient-centered approach to grading evidence in the medical literature”. American Family Physician, 69 (3), pp. 548-556.

EDDY, D. (1988), “Variations in physician practice: the role of uncertainty”. In J. Dowie, A. Elstein (eds.), Professional Judgement. A Reader in Clinical Decision Making, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 45-59.

FARIA, M. I. (2001), “Ciência com rede: protocolos e novas tecnologias da informação na investigação biomédica”. In J. A. Nunes, M. E. Gonçalves (orgs.), Enteados de Galileu? A Semiperiferia no Sistema Mundial da Ciência, Porto, Afrontamento, pp. 77-105.

FERLIE, E. (2005), “Conclusion: from evidence to actionable knowledge?”. In S. Dopson, L. Fitzgerald (eds.), Knowledge to Action? Evidence-Based Health Care in Context, Oxford, Oxford University Press, pp. 182-197.

FITZGERALD, L., DOPSON, S. (2005), “Knowledge, credible evidence, and utilization”. In S. Dopson, L. Fitzgerald (eds.), Knowledge to Action? Evidence-Based Health Care in Context, Oxford, Oxford University Press, pp. 132-154.

FREEMAN, A. C., SWEENEY, K. (2001), “Why general practitioners do not implement evidence: qualitative study”. BMJ, 323, pp. 1100-1102.

FREIDSON, E. (1970), Profession of Medicine. A Study of the Sociology of Applied Knowledge, Chicago, The University of Chicago Press.         [ Links ]

GABBAY, J., LE MAY, A. (2004), “Evidence based guidelines or collectively constructed “mindlines?”. Ethnographic study of knowledge management in primary care”. British Medical Journal, 329 (7473), 1013. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.329.7473.1013

GERMOV, J. (2005), “Managerialism in the Australian public health sector: towards the hyper-rationalisation of professional bureaucracies”. Sociology of Health & Illness, 27(6), pp. 738-758.

GORDON, D. (1988), “Clinical science and clinical expertise: changing boundaries between art and science in medicine”. In M. Lock, D. Gordon (eds.), Biomedicine Examined, Kluwer Academic Publishers, pp. 257-295.

GREENHALGH, J. et al. (2008), “Tacit and encoded knowledge in the use of standardized outcome measures in multidisciplinary team decision making: A case study of in-patient neurorehabilitation”. Social Science & Medicine, 67, pp. 183-194.

GREENHALGH, T. (2006), How to Read a Paper. The Basics of Evidence-Based Medicine, Blackwell Publishing/BMJ Books (3rd edition).         [ Links ]

GRILLI, R. et al. (2000), “Practice guidelines developed by specialty societies: the need for a critical appraisal”. The Lancet, 355, pp. 103-105.

GROL, R. et al. (1998), “Attributes of clinical guidelines that influence use of guidelines in general practice: observational study”. BMJ, 317, pp. 858-861.

HENRY, S. (2006), “Recognizing tacit knowledge in medical epistemology”. Theoretical Medicine and Bioethics, 27, pp. 187-213.

HUDDLE, T. (2007), “The limits of objective assessment of medical practice”. Theoretical Medicine and Bioethics, 28 (6), pp. 487-496.

JORDÃO, J. G. (1995), A Medicina Geral e Familiar. Caracterização da Prática e sua Influência no Ensino Pré-Graduado. Tese de Doutoramento, Lisboa, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa.         [ Links ]

LOHR, K., ELEAZER, K., MAUSKOPF, J. (1998), “Health policy issues and applications for evidence-based medicine and clinical practice guidelines”. Health Policy, 46, pp. 1-19.

LUGTENBERG, M. et al. (2009), “Why don'tphysicians adhere to guideline recommendations in practice? An analysis of barriers among Dutch general practitioners”. Implementation Science, 4, p. 54.

MALTERUD, K. (1995), “The legitimacy of clinical knowledge: towards a medical epistemology embracing the art of medicine”. Theoretical Medicine, 16, pp. 183-198.

MALTERUD, K. (2001), “The art and science of clinical knowledge: evidence beyond measures and numbers”. The Lancet, 358 (9279), pp. 397-400.

MONTGOMERY, K. (2006), How Doctors Think. Clinical Judgment and the Practice of Medicine, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

MOREIRA, T. (2005), “Diversity in clinical guidelines: the role of repertoires of evaluation”. Social Science & Medicine, 60, pp. 1975-1985.

MOREIRA, T. (2012), The Transformation of Contemporary Health Care: The Market, the Laboratory, and the Forum, Londres, Routledge.         [ Links ]

NETTLETON, S., BURROWS, R., WATT, I. (2008), “Regulating medical bodies? The consequences of the ‘modernization' of the NHS and the disembodiment of clinical knowledge”. Sociology of Health & Illness, 30 (3), pp. 333-348.

PAZART, L. H., MASSOL, J., MATILLON, Y. (1998), “Including practice data to improve evidence-based guidelines”. Journal of Evaluation in Clinical Practice, 4, pp. 317-323.

POWER, M. (1999), The Audit Society. Rituals of Verification, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

RAMOS, V. (2008), A Consulta em Sete Passos: Execução e Análise Crítica de Consultas em Medicina Geral e Familiar, Lisboa, VFBM Comunicação.         [ Links ]

RAPOSO, H. (2014), Entre Padronização e Discricionariedade: Reconfigurações do Conhecimento Médico na Medicina Geral e Familiar. Tese de Doutoramento em Ciências Sociais, especialidade de Sociologia Geral, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.         [ Links ]

SÁ, A. B. (2002), A Decisão em Medicina Geral e Familiar. Um Modelo de Decisão Clínica Tomando como Exemplo a Infecção Genital por Chlamydia Trachomatas. Tese de Doutoramento, Lisboa, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa.         [ Links ]

SACKETT, D. et al. (1985), Clinical Epidemiology. A Basic Science for Clinical Medicine, Boston, Little, Brown and Company.         [ Links ]

SCHON, D. (1983), The Reflective Practitioner. How Professionals Think in Action, Aldershot, Ashgate.         [ Links ]

SERRA, H. (2007), “Da construção e reprodução do conhecimento e discurso médicos. Para uma etnografia da transplantação hepática”. Revista Critica de Ciências Sociais, 79, pp. 113-131.

SERRA, H. (2008), “Maus fígados. A construção social da tomada de decisão médica”. Sociologia, Problemas e Práticas, 58, pp. 47-70.

SERRA, H. (2016), “Gamble on the uncertain. Negotiating medical decision-making”. Qualitative Sociological Review, 12 (4), pp. 44-59.

SHIFFMAN, R. et al. (2005), “The GuideLine implementability appraisal (GLIA): development of an instrument to identify obstacles to guideline implementation”. BMC Medical Informatics and Decision Making, 5, p. 23.

TEIXEIRA, L. (2012), A Reforma do Centro de Saúde. Percursos e Discursos, Lisboa, Editora Mundos Sociais.         [ Links ]

TIMMERMANS, S., BERG, M. (1997), “Standardization in action: achieving local university through medical protocols”. Social Studies of Science, 27 (2), pp. 273-305.

TIMMERMANS, S., KOLKER, E. (2004), “Evidence-Based Medicine and the reconfiguration of medical knowledge”. Journal of Health and Social Behavior, 45 (Extra Issue), pp. 177-193.

TIMMERMANS, S., MAUCK, A. (2005), “The promises and pitfalls of Evidence-Based Medicine”. Health Affairs, 24 (1), pp. 18-28.

TIMMERMANS, S., ALMELING, R. (2009), “Objectification, standardization, and commodification in health care: a conceptual readjustment”. Social Science & Medicine, 69, pp. 21-27.

TIMMERMANS, S., EPSTEIN, S. (2010), “A world of standards but not a standard world: toward a sociology of standard and standardization”. Annual Review of Sociology, 36, pp. 69-89.

TOULMIN, S. (1993), “Knowledge and art in the practice of medicine: clinical judgement and historical reconstruction”. In C. D. Hayes (ed.), Science, Technology, and the Art of Medicine. European-American Dialogues, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, pp. 231-249.

WOOLF, S., et al. (1999), “Potential benefits, limitations, and harms of clinical guidelines”. British Medical Journal, 318, pp. 527-530.

 

Recebido a 30-01-2017.

Aceite para publicação a 29-09-2017.

 

[1]       É de enfatizar que embora o enquadramento teórico que suporta o desenvolvimento analítico desta investigação empírica remeta, efetivamente, para uma problemática que se constrói a partir das já referidas articulações disciplinares, o enfoque específico que se mobiliza para esta discussão em particular, acaba por se circunscrever às dimensões mais diretamente conectadas com os ESC e com a sociologia médica, dada a especificidade dos objetivos já referidos. Tal não pressupõe, todavia, desconsiderar a constatação de que há um enquadramento e um contexto geral de acentuada mudança com efeitos que não são seguramente inócuos para o próprio profissionalismo médico. Aliás, as transformações produzidas pelo novo ambiente regulatório apontam para formas de colonização recíproca entre o mundo da gestão e o mundo profissional da medicina, o que faz denotar a existência de relações mais complexas e compósitas quanto ao modo como se concretizam as formas de regulação na saúde e o modo como se operam apropriações estratégicas na lógica da própria autorregulação profissional. Essa abordagem mais integrada é desenvolvida na investigação que suporta esta discussão mais delimitada (Raposo, 2014), pelo que é aqui explicitamente assumido um enfoque que força uma certa secundarização da análise relativa às condições e às estratégias de reconfiguração profissional desta especialidade médica.

[2]       Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito de uma tese de Doutoramento em Sociologia (Raposo, 2014). Neste artigo apresenta-se apenas uma parte dos resultados empíricos decorrentes dessa investigação, especificamente, e como já referido, os que se enquadram no âmbito da discussão analítica que aqui é proposta.

[3]       Relativamente à discussão analítica que é empreendida neste artigo, a mesma circunscreve-se aos resultados empíricos decorrentes das sessões de Grupos Focais. Os aspetos relacionados com a observação direta não são aqui especificamente mobilizados por remeterem para uma análise de outra natureza. Todavia, e de uma forma indireta, essa técnica constituiu-se como um importante complemento das sessões de Grupos Focais, no sentido em que ao ter implicado a presença prolongada e regular do investigador nos contextos sociais em estudo, bem como o contacto direto com os profissionais e com as dinâmicas e rotinas organizacionais, acabou não só por permitir adequar melhor o conteúdo dessas sessões, mas também por viabilizar a própria negociação dos aspetos práticos da sua implementação.

[4]       O guião estruturou-se em torno de um roteiro de quatro dimensões centrais - “Implementação das NOC”; “Especificidades da especialidade médica”; “Prática médica e raciocínio clínico”; “Contexto organizacional” (Raposo, 2014) - cada uma delas comportando desdobramentos por várias categorias mais específicas. O propósito principal consistiu na exploração dos entendimentos, das razões e das conceções dos profissionais envolvidos relativamente às dimensões referidas. Esse guião funcionou, acima de tudo, como um guia que permitiu assegurar a existência de uma linha condutora, mesmo quando as discussões seguiram rumos sequenciais distintos. A própria forma de condução foi deliberadamente flexível, mas suficientemente ativa para assegurar que os tópicos principais eram cobertos, dando, contudo, margem para que outros aspetos com estes relacionados pudessem emergir e ser integrados no contexto das próprias sessões. Já quanto à análise, embora o tratamento analítico da informação empírica não tenha colocado exigências quanto à necessidade de a suportar tecnicamente com ferramentas informáticas específicas para esse efeito, procedi à análise temática por codificação qualitativa tendo em conta as grandes dimensões de análise e o seu respetivo desdobramento pelas categorias específicas (Raposo, 2014).

[5]       A larga maioria das reuniões médicas a que assisti foram, de facto, subordinadas à apresentação e discussão das NOC que, nessa fase, ainda se encontravam numa etapa de discussão pública (mas de carácter colegial). Tal foi, apesar de tudo, mais recorrente na UCSP e não tanto na USF, dado que neste último caso, a agenda das reuniões era mais diversificada, privilegiando também questões de gestão relacionadas com a contratualização de indicadores (Raposo, 2014). No entanto, em ambos os casos essa apresentação foi sempre assegurada pelos internos que tinham neste tipo de tarefa uma componente importante das suas atividades de formação nas respetivas unidades de saúde.

[6]       É relevante fazer notar que a MGF, através da sua associação profissional (APMGF), desenvolveu no decurso da última década várias iniciativas de formação pós-graduada avançada dirigidas aos seus associados, designadamente através da promoção (em conjunto com a Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, CEMBE) de cursos sobre MBE que visavam fornecer aos profissionais “no terreno”, instrumentos e condições para melhorarem o seu desempenho (especialmente os médicos inseridos em USF) (Raposo, 2014).

[7]       A este propósito é de referir que os internos desempenham um papel importante no processo de apresentação e discussão do conteúdo das NOC no contexto das unidades onde estão inseridos. Cabe-lhes a eles, com o devido acompanhamento dos orientadores, assegurar as apresentações das NOC. Nessas sessões tendem a desenvolver-se discussões intensas (principalmente quando as NOC colidem com a experiência clínica) e tecnicamente muito detalhadas ao nível da exploração de eventuais lacunas do suporte científico das mesmas. Embora não seja um fator com um peso explicativo determinante (porque os outros médicos não estão alheados das competências científicas de base para a avaliação científica das NOC), não deixa de ser importante fazer notar a circunstância de que três dos nove médicos orientadores da USF estudada fizeram, formalmente, um curso de formação em MBE, neste caso na Faculdade de Medicina de Lisboa (Raposo, 2014).

[8]       A atestar este relativo contraste está a participação desigual dos profissionais nas próprias reuniões médicas. Tanto em número, quanto em envolvimento. No contexto da UCSP foi notória uma presença mais reduzida dos profissionais e um envolvimento que praticamente não extravasava o âmbito das NOC, ao passo que na USF esse número e participação foram mais expressivos. A esta circunstância não será alheio o facto de haver uma enorme preocupação por parte dos profissionais com o desempenho da unidade, tendo em conta o vínculo da mesma aos compromissos da contratualização que abrangem mais específica e consequentemente as USF (Teixeira, 2012; Raposo, 2014).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons