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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.227 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.17 

RECENSÕES

GASPAR, Carlos

O Pós-Guerra Fria,

Lisboa, Tinta da China, 2016, 448 pp.

ISBN 9789896713492

Nuno P. Monteiro*

*International Security Studies, Political Science Yale University. Horchow Hall #207, 55 Hillhouse Ave - New Haven, CT 06511, EUA. nuno.monteiro@yale.edu


 

O Pós-Guerra Fria, de Carlos Gaspar, é sem qualquer dúvida a mais importante obra de teoria das relações internacionais e análise do mundo contemporâneo publicada em Portugal nas últimas décadas. Mais, é uma obra que merece maior destaque internacional pois figura entre as melhores reflexões sobre estes temas, independentemente da origem geográfica. Gaspar é um dos raros analistas das relações internacionais contemporâneas que combinam três competências: fino entendimento teórico, profundo conhecimento histórico, e experiência política, neste caso ganha ao longo de décadas como conselheiro da Presidência da República. Para além disso, Gaspar evita na sua escrita jargões técnicos desnecessários, e a sua prosa límpida permite compreensão imediata ao leitor interessado, mas não necessariamente especialista no tema. Em suma, O Pós-Guerra Fria é ao mesmo tempo um tour d'horizon das principais dinâmicas que condicionaram a ordem global das últimas três décadas e um tour de force na criação de um quadro teórico eclético capaz de organizar uma época de grandes sobressaltos e mudanças profundas – e de servir como base para pensar a sua evolução futura.

Na primeira das quatro partes de O Pós-Guerra Fria, intitulada "Continuidade e mudanças no pós-guerra fria," Gaspar começa por cobrir as várias escolas teóricas sobre relações internacionais e os principais argumentos sobre o papel da balança de poder – material e ideológico – e das instituições na definição da ordem internacional. Teorias realistas, liberais, e idealistas; autores europeus e norte-americanos; Gaspar cobre o terreno de uma forma eclética, absorvendo de cada uma destas visões os elementos mais importantes para podermos compreender as relações internacionais do princípio do século XXI.

Na segunda parte de O Pós-Guerra Fria, Gaspar analisa o final da Guerra Fria. Em menos de 100 páginas, proporciona ao leitor uma análise dos principais acontecimentos da crise de 1989-1991: a falhada tentativa de reforma do regime soviético levada a cabo por Gorbachev, o desmoronamento do Bloco de Leste, a integração alemã ancorada na NATO e, por fim, a dissolução da URSS.

A terceira parte do livro trata da "década de transição" entre o desaparecimento da União Soviética e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Os anos 90 são um período de consolidação do poder unipolar dos EUA – particularmente após o sucesso estrondoso da sua operação militar no Kuwait, em que o poderoso exército de Saddam Hussein é derrotado com baixíssimos custos humanos para as forças americanas. Na Europa, este é um período de aprofundamento do processo de integração e, mais importante ainda, do seu alargamento a Leste. São anos de grande otimismo, dominados por uma visão progressista da ordem internacional, com os frutos da vitória ocidental na Guerra Fria a serem distribuídos por um número sempre crescente de Estados. Consequentemente, a legitimidade do poder acrescido dos EUA não é posta em causa; pelo contrário, parece possível que Francis Fukuyama estivesse correto quando anunciou o fim da história e o triunfo do liberalismo democrático.

Segue-se, na quarta parte de O Pós-Guerra Fria, um estudo sistemático das principais "crises da ordem internacional" que marcaram o período desde 2001, em profundo contraste com a década anterior. O primeiro choque sistémico é introduzido pelo surgimento brusco do terrorismo como ameaça à hegemonia norte-americana. O 11 de setembro de 2001 marca o princípio do fim da estabilidade da ordem do pós-Guerra Fria. A reação de Washington a estes ataques será, porventura, a principal força desestabilizadora da ordem mundial das últimas duas décadas, ao agir de uma forma que é vista como crescentemente ilegítima pela sociedade internacional. Esta falta de legitimidade é talvez mais evidente na decisão de invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003; e é depois reforçada pela crise financeira de 2008, que colocou em questão o modelo económico liberal. Desde aí, a incapacidade de Washington para resolver focos de conflito pelo globo fora – mas principalmente no Médio Oriente, que se encontra num processo de convulsão cada vez mais generalizado desde a intervenção americana de 2003 – aprofunda a erosão da ordem internacional, que é hoje muito mais caótica. Hoje, os EUA são comummente vistos como uma potência hegemónica muito debilitada; se é que ainda se podem chamar de potência hegemónica, tão debilitados que estão pelo revisionismo russo, pelo crescimento do poder económico-militar chinês, pela incapacidade de resolver a crise do Médio Oriente e, desde 2017, pela liderança errática e ensimesmada de Donald Trump.

No seu conjunto, estas três partes de O Pós-Guerra Fria dão ao leitor uma boa visão analítica à vol d'oiseau dos últimos 30 anos. Chegamos ao fim desta análise histórica com um mundo em crise, em que o poder militar americano continua a ser ímpar, mas já não é apoiado por um conjunto de normas e instituições – herdadas da Guerra Fria – capazes de lhe dar legitimidade.

Mas é na sua conclusão substancial que reside a principal contribuição de O Pós-Guerra Fria. Aliás, se há um comentário a fazer em relação à organização do livro é que talvez tivesse sido benéfico colocar esta análise no início, como matriz de entendimento da sucessão de acontecimentos históricos, já que é esta mesma matriz o elemento mais original do trabalho de Gaspar.

O ponto de partida para compreender a situação em que nos encontramos é, para Gaspar, a novidade histórica que foi o final da Guerra Fria – uma transição de poder pacífica, em que a ordem mundial foi reorganizada em torno de uma nova distribuição de poder que privilegia os Estados Unidos, e em que a mudança se dá sem ser resultado de uma guerra hegemónica, como tinha sido o caso com as anteriores transições de poder da era moderna, em 1648 (Vestfália), 1815 (Viena), 1919 (Paris), e 1945 (o conjunto de instituições criadas no final da Segunda Guerra Mundial). Desta transformação resulta um mundo que é, na visão de Gaspar, unipolar por um momento (porque os Estados Unidos possuem um poder militar ímpar), mas multipolar na sua base (porque outros, como a China, os BRIC, ou a União Europeia continuam a ser grandes potências). Resulta também uma ordem mundial que, ao não ser fruto de novas conferências de paz, continua a ser organizada pelas instituições (NATO, UE, ONU) e normas (não-proliferação de armas nucleares, livre comércio global, soberania dos estados, e posição privilegiada da democracia entre os regimes políticos) que tinham sido criadas para combater a URSS durante a Guerra Fria – e para evitar que esta se tornasse uma guerra aberta.

É nas profundas tensões entre estes elementos de mudança e de continuidade que reside o argumento central de O Pós-Guerra Fria. As crises que afetam o mundo contemporâneo, e que têm vindo a criar problemas consideráveis para o funcionamento da ordem global desde o virar do século, resultam para Gaspar de uma transformação da ordem mundial, que introduziu pela primeira vez na história moderna uma potência militar inigualada, mas que ao mesmo tempo manteve muita da maquinaria institucional e normativa da ordem anterior – maquinaria esta que tinha sido concebida para organizar um dos blocos (o Ocidente) numa ordem bipolar. Os problemas do mundo de hoje decorrem, para Gaspar, da incapacidade desta maquinaria em ordenar as relações entre estados quando um destes – os Estados Unidos – possui um poder dominante. Aliás, Gaspar tem aqui um insight particularmente importante e original: as crises da ordem mundial contemporânea decorrem da inversão entre o que era continuidade e o que era mudança em 1989-1991 e hoje. Então, a continuidade vinha da manutenção da maquinaria institucional e normativa da Guerra Fria; a mudança vinha do poder unipolar que os EUA adquiriram. Hoje, em contraste, a continuidade vem deste poder unipolar e a mudança vem da falência do modelo institucional e normativo da ordem liberal internacional. Enquanto não conseguirmos criar um outro modelo de ordenamento da sociedade internacional compatível com a subjacente balança de poder, não conseguiremos reestabelecer uma ordem internacional legítima e funcional.

Claro que nenhum livro é perfeito e O Pós-Guerra Fria tem, como é típico das obras maiores, os defeitos das suas qualidades. Ao endossar um ecletismo teórico muito amplo, Gaspar dá à sua análise um maior poder interpretativo da ordem internacional das passadas três décadas. Ao mesmo tempo, porém, o preço deste ecletismo teórico está precisamente na dificuldade em gerar soluções para os problemas contemporâneos, já que cada uma das teorias a que Gaspar recorre apresenta uma visão própria do mundo. O quadro teórico que constrói impede-o, portanto, de fazer previsões para a evolução da ordem internacional, permitindo que o leitor termine O Pós-Guerra Fria sem ter uma bússola que o oriente neste complicado mundo novo. Mas talvez isto seja um problema menor pois, como disse Niels Bohr, é muito difícil fazer previsões, particularmente sobre o futuro.

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