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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.227 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.11 

RECENSÕES

VILAÇA, Helena, PACE, Enzo, FURSETH, Inger e PETTERSON, Per (orgs.)

The Changing Soul of Europe. Religions and Migrations in Northern and Southern Europe,

Nova Iorque, Routledge, 2014, 280 pp.

ISBN 9781472434692

Clara Saraiva*

*Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal. maria-saraiva@campus.ul.pt


 

Este livro resulta da conferência internacional intitulada Diversity and Global Challenges: Religions and Migrations in Southern Europe, que congregou académicos da Europa do Sul, para uma discussão sobre a crescente diversidade religiosa na Europa, desafiando alguns clichés, como a imagem da tradicionalmente católica Europa do Sul. Este fenómeno é salientado pelos editores, na introdução, quando explicam que durante séculos a alma da europa foi dominada pelo cristianismo, mas que essa alma está hoje em dia em mudança acelerada. O livro pretende mostrar, através de uma dupla abordagem teórica e etnográfica, o impacto da mobilidade e do transnacionalismo religioso em sociedades em que os cenários religiosos são cada vez mais diversos.

De facto, pondo em destaque a crescente heterogeneidade cultural, étnica e religiosa nas sociedades ocidentais desde o pós segunda guerra, acompanhando as sucessivas vagas de migrações e de circulação de pessoas, a obra combina teoria com etnografia. Na primeira parte analisa-se a relação entre religião e migração, numa perspetiva teórica e metodológica. Na segunda parte discutem-se estudos empíricos, com exemplos da Europa do Norte e do Sul.

Na primeira parte, no capítulo inicial, Enzo Pace parte do conceito de mudança social, da crise a nível mundial, e da reestruturação do Estado moderno para refletir sobre a relação entre religião e migração a partir da perspetiva da teoria social, examinando os efeitos da migração na estrutura social. Deste modo, toca temáticas como o papel das igrejas em tempo de crise, o modo como a etnicização do mercado de trabalho reproduz clivagens religiosas, a ressurgência de nacionalismos religiosos, o impacto das diferenças religiosas na ordem jurídica dos países que acolhem imigrantes e ainda os efeitos da desterritorialização que a migração provoca no campo religioso, já que a religião é um fator importante de mudança social. Pace explicita que através da religião as pessoas experienciam modernidades múltiplas, i. e., níveis diversos em que se entrecruzam desenvolvimento económico, cultura empresarial e adaptação de formas de capitalismo com símbolos religiosos que parecem resistir à mudança social, mas que simultaneamente também suportam os processos de transformação em curso. Reflete ainda sobre a presente tensão entre dois modelos de construção da nação, o nacionalismo baseado na cidadania e o baseado na etnicidade.

Em seguida, Madureira Pinto discute os novos padrões migratórios resultantes da globalização económica e das mudanças políticas a nível global, e o papel que a religião e os sistemas de crença têm na gestão de afinidades simbólicas. Tuomas Martikainen foca o papel do estado social no estabelecimento das religiões imigrantes, pensando o contexto de receção como um elemento-chave para a integração dos imigrantes e para a forma como as suas religiões encontram espaço nas sociedades de acolhimento.

A segunda parte do livro baseia-se em exemplos etnográficos de trabalho de terreno. Um primeiro capítulo de Elisabeth Diamantopoulou foca a complexa relação da igreja ortodoxa com o nacionalismo grego e o seu papel na gestão da imigração na Grécia, num contexto de crise económica, em que a instituição organiza vários serviços de apoio a imigrantes. Afirmando que a liberdade religiosa, proclamada na Constituição de 1975, é fictícia na prática, a autora dá exemplos como a proibição de proselitismo ou as dificuldades nas práticas religiosas de grupos islâmicos minoritários, mostrando como muitas ambiguidades e contradições se ligam à experiência histórica da formação da nação, das relações difíceis com os países vizinhos e suas minorias, que contribuíram para as noções de diferença étnica e religiosa prevalecentes na Grécia.

 O segundo capítulo, de Helena Vilaça, centra-se num país que do mesmo modo proclama na sua Constituição a liberdade religiosa plena, Portugal, e na análise da relação entre a igreja Católica e as igrejas trazidas pelos imigrantes da Europa de Leste, sobretudo o caso dos ritos Bizantino, Ortodoxo e Católico. Vilaça mostra como o ritual é uma peça-chave na vida dos imigrantes e funciona como fator de sociabilidade e solidariedade, e como o discurso dos crentes e dos responsáveis religiosos dessas igrejas oscila entre a necessidade de desenvolver uma identidade étnica ligada à atração religiosa, e a promoção da união dos imigrantes, baseando-se nas afinidades religiosas que permitiriam ultrapassar diferenças políticas e étnicas. O texto analisa ainda o modo como a igreja Católica capitaliza as afinidades religiosas com estes grupos e tem estabelecido com eles pontes, promovendo um sentido de missão e de integração, em que tanto a Igreja Católica como as associações de imigrantes rentabilizam o seu capital social através de redes e interações várias.

Roberto Ricucci fornece o retrato das transformações, em Itália, nas gerações mais jovens, descuradas nos estudos sobre migração e religião, como as oriundas de países tradicionalmente católicos de diferentes regiões mundiais (como o Perú, as Filipinas e a Roménia), onde o processo de secularização tem sido bem mais lento que nas chamadas sociedades ocidentais. Baseando-se em excertos de entrevistas com jovens, Ricucci explora as tensões entre crença, prática religiosa e sentido de pertença enquanto cidadãos italianos, processo em que se entrecruzam a sua juventude, o processo de assimilação na sociedade católica italiana, e etnicidade.

O capítulo de Donizete Rodrigues, traçando o historial da crescente diversidade religiosa em Portugal relacionada com a imigração, sobretudo no pós 1974, e a entrada de Portugal na EU, analisa a expansão das igrejas neo-pentecostais e a sua "reverse mission". Destaca a importância da imigração brasileira em Portugal e o estudo de caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), as características da sua "teologia da prosperidade" e o seu investimento no proselitismo, tendo como alvo a população de imigrantes brasileiros, dos Roma, mas também muitos Portugueses, sobretudo oriundos de camadas de estatuto socio-económico mais baixo.

Anne Kubai mostra o papel da religião na vida das segundas e terceiras gerações de africanos nascidos na Suécia, bem como a relação que se estabelece entre as igrejas cristãs africanas e a igreja luterana. Kubai revela que, por trás de relações de aparente cooperação se escondem tensões, segregações e atitudes racistas, num país em que a igreja luterana é a igreja do Estado sueco. Os casos que analisa retratam igrejas cristãs africanas a utilizarem espaços de culto de igrejas suecas, e um discurso de celebração de diversidade cultural pela parte das igrejas anfitriãs, mas dentro de fonteiras culturais e sociais bem delineadas, e totalmente sob o seu controlo. Tais tensões são sentidas pelos pastores africanos, que se queixam de não serem consultados nas decisões, expressando o seu desagrado com frases como "viver na casa de outro não é o mesmo que viver na sua própria casa" (tradução minha). Pela análise dos processos de inclusão/exclusão, Kubai mostra como as igrejas suecas estão conscientes da inevitabilidade da partilha do cenário religioso, mas não conseguem olhar as igrejas imigrantes como iguais.

Os três capítulos seguintes lidam com minorias islâmicas na Europa do Sul e do Norte. Annalisa Frisina descreve de uma forma muito viva o modo como mulheres muçulmanas nascidas em Itália organizam as suas duplas pertenças, enquanto muçulmanas críticas de certas posturas da ortodoxia islâmicas, e cidadãs italianas intervenientes ativas na sociedade italiana, reivindicando um papel importante em ambas as esferas. Utilizando excertos de histórias de vida de algumas dessas mulheres, e imagens da vida social das mesmas (por exemplo, em espaços públicos que partilham com jovens italianas não muçulmanas), a autora analisa aspetos da "gestão emocional" a que elas recorrem para abarcar essa dupla pertença.

Per Petersson analisa o caso de uma escola pública sueca numa cidade de 92 000 habitantes e com imigrantes de 153 origens diferentes, a relação entre os alunos imigrantes muçulmanos e a cultura dominante, e o modo como conflitos e tensões são negociados.

Finalmente, Inger Furseth apresenta o seu estudo de caso em Oslo, Noruega, sobre o dress code e as negociações de género das mulheres muçulmanas nesse contexto. Alargando o debate sobre as formas de cobrir o corpo e os ditames da moda que essas mulheres escolhem seguir, o texto mostra como a moda (nomeadamente o que a autora denomina "hijab street fashion") é utilizada como estratégia para estabelecer distinções identitárias. Fá-lo através dos excertos de entrevistas que nos dão um relato vivo das práticas e discursos de várias mulheres sobre os cânones religiosos que querem seguir, e o modo como expressam essas suas opções na visibilidade da moda e no que escolhem para cobrir o seu corpo.

O último capítulo, de Jorn Borup, foca a relação entre religião e etnicidade entre imigrantes do Vietnam oriundos de duas tradições religiosas, o budismo e o cristianismo. Comparando os dois casos, o autor argumenta que a religião, a ativa participação religiosa, a socialização e a etnicidade estão intimamente ligadas. Mostrando como a etnicidade é um fator importante na identidade e orientação para os vietnamitas em geral, analisa o modo como os católicos se mostram mais assertivos na sua prática religiosa e nas formas como afirmam a sua pertença a essa religião e também à sua origem étnica. Conclui que à medida que os vietnamitas se integram na sociedade dinamarquesa a importância da especificidade da filiação religiosa decresce, e que, já que a imigração vietnamita na Dinamarca é recente, será necessário observar o que se vai passar com as novas gerações que vão crescer no país de acolhimento.

O livro consegue aquilo que se propõe, fornecendo um panorama alargado das interações e gestões migratórias e religiosas numa Europa plena de circulações de pessoas e de espíritos, e em que a presença da religião na esfera pública constitui um desafio incontornável. Essa diversidade é conseguida, como vimos, em termos temáticos e geográficos. Os temas abrangem a relação entre a igreja e o Estado, etnicidade, nacionalismo e religião (caso da Grécia e minorias étnicas e religiosas, ou a islâmica, com estudos de caso em vários países); a partilha de espaços de culto e o papel das igrejas hegemónicas no estabelecimento (ou não) de pontes com grupos religiosos minoritários (caso de igrejas do culto ortodoxo e bizantino em Portugal, de igrejas africanas na Suécia, ou de conflitos de utilizações de espaços públicos e semi-públicos, como a IURD em Portugal); jovens de segunda ou terceira geração de imigrantes seguidoras de religiões não hegemónicas, que negoceiam permanentemente a sua pertença simultânea a dois mundos sociais e religiosos (jovens muçulmanas na Itália e Noruega); e estudos de caso até agora menos abordados, como os jovens cristãos imigrantes na Europa central, ou os imigrantes vietnamitas na Dinamarca.

Deste modo, a obra consegue igualmente abranger um espaço geográfico que vai da Noruega e Suécia à Itália e Portugal, revelando sociedades em que não só o papel do Estado e a sua relação com a religião é muito diversa, mas onde também nos confrontamos com sistemas de segurança social diferentes, e em que a situação dos imigrantes, oriundos de múltiplos continentes e países, é multifacetada e complexa. As reflexões aqui presentes mostram como, realmente, a "alma da Europa" está a mudar, o que torna este livro numa referência nos estudos sobre religião no velho continente.

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