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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.227 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.10 

RECENSÕES

ACCORNERO, Guya

The Revolution before the Revolution. Late Authoritarianism and Student Protest in Portugal,

Nova Iorque/Oxford, Berghahn Books, 2016, 186 pp.

ISBN 9781785331145

Elísio Estanque*, Dora Fonseca**

*Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra.Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. elisio.estanque@gmail.com

**Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. dorajfonseca@ces.uc.pt


 

O livro The Revolution before the Revolution analisa a emergência, desenvolvimento e caminho trilhado pela contestação estudantil durante as duas últimas décadas do Estado Novo, situando-o no quadro de um ciclo de protesto transnacional e de mudança radical em termos políticos, culturais e de modos de vida. Este estudo estabelece o papel fulcral do movimento estudantil na abertura de espaços democráticos e correlaciona essas experiências, de participação e contestação social, com o processo de democratização subsequente. A análise abrange o período de 1956 a 1974, sublinhando a importância de acontecimentos como o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), a queda do Estado Novo e o final dos "longos anos 60", o que permite estabelecer uma relação entre esses acontecimentos e o desenvolvimento do movimento estudantil.

A obra está estruturada em cinco capítulos, ao longo dos quais os estudantes são construídos como o principal ator sociopolítico dos "longos anos 60", revelando uma crescente adesão a valores antiautoritários, elemento que partilham com os demais movimentos que configuraram esse ciclo transnacional de protesto. O primeiro capítulo é de contextualização e deixa antever a complexidade do objeto de estudo. Enquadra a emergência e desenvolvimento dos movimentos estudantis portugueses no contexto da formação de uma esquerda mais à esquerda do PCP, assinalando a relação com vários acontecimentos no plano internacional. Parece existir aqui uma "quase osmose" das várias correntes da extrema-esquerda com os movimentos estudantis mais radicalizados dos últimos anos do regime. Entendemos que tal obscurece o papel desempenhado por outros atores na formação e amadurecimento do movimento estudantil. Designadamente, por exemplo, no caso da crise de 69 em Coimbra, o papel decisivo de diversos grupos autónomos de estudantes, ligados ao Conselho de Repúblicas, os quais se demarcaram quer dos grupos de extrema esquerda, quer do PCP.

Os efeitos da era Khrushchov e do conflito Sino-Soviético no interior do Partido Comunista Português são também analisados, bem como o surgimento das primeiras organizações pró-chinesas em Portugal e o início da competição "à esquerda", que contribuiu para o declínio da hegemonia do PCP na oposição ao regime. Este capítulo sublinha ainda o anacronismo de um Estado Novo assente em dois processos complementares, a mobilização do consenso e a repressão da oposição, identificando as estruturas do regime em que repousava essa dinâmica, bem como as estruturas de associativismo (Movimento de Unidade Democrática Juvenil, organizações católicas e movimento dos Cineclubes) que contribuíram para o processo de mobilização da contestação ao Estado Novo.

O segundo capítulo aborda o primeiro ciclo de protesto, entre 1956 e 1965, situando-o no contexto do ataque do regime salazarista à autonomia académica, desferido através do Decreto-Lei 40 900, face à crescente agitação estudantil e progressiva perda do controlo sobre as universidades ao longo dos anos 1950. São aflorados vários acontecimentos, como a candidatura do General Humberto Delgado e a oposição à Guerra Colonial, que produziram alterações ao nível da estrutura de oportunidades políticas, abalando significativamente o regime salazarista entre 1958 e 1962. O foco principal deste capítulo é a Crise Académica de 1962, explorando o processo político e a mobilização subjacentes. É enfatizada a importância da proibição da celebração do Dia do Estudante para o desencadear de uma crise inédita que assinalou a superação das reivindicações de caráter corporativo que até aí tinham dominado o movimento estudantil. A explicitação da dinâmica que se gerou entre o regime e a oposição e entre repressão e resistência sublinha a importância das oportunidades políticas no contexto da ação coletiva. De facto, a agitação estudantil conduziu o regime a reformas educativas que prontamente foram seguidas de uma inflexão. Por sua vez, a repressão no interior das universidades contribuiu para a mobilização generalizada e concertada das associações académicas, episódios de ocupação que levaram a mais intervenção policial, ilegalização das associações de estudantes, suspensões e expulsões. Assim, esta narrativa aborda o processo de constituição dos estudantes como protagonistas da ação conflitual e a sua incorporação à luta antifascista. São ainda exploradas outras questões, como a inovação nos repertórios de ação – que influenciaram as formas de protesto e de luta durante o PREC –, os primeiros sinais da penetração do maoismo no contexto estudantil, a perda de hegemonia do PCP, bem como a restruturação do regime e a intensificação da repressão que conduziu à radicalização da oposição, nomeadamente em meio universitário. A este propósito valeria a pena explicar até que ponto a força crescente do marxismo em Portugal, e a sua hegemonização por parte do PCP, não terá contribuído para a posterior diluição do campo estudantil nos movimentos populares do pós-25 de Abril de 1974.

O terceiro capítulo é dedicado à Primavera Marcelista e à abertura de um segundo ciclo de protesto. Partindo do acidente que levou à substituição de Salazar em setembro de 1968, a autora analisa os últimos anos do regime, questionando a (in)efetividade da abertura marcelista. Através de vários exemplos, é revelada a natureza "cosmética" das medidas adotadas. As mudanças são colocadas no plano de uma abertura das oportunidades políticas que criou expectativas elevadas na população, principalmente entre as forças de oposição. São também analisadas as origens, composição e dinâmica da ala liberal do regime, o projeto de reforma da educação levado a cabo por Veiga Simão (um dos pontos nodais da contestação estudantil durante os últimos anos do Estado Novo), e a ação solidária durante as cheias de 1967. Estas últimas são um ponto importante, pois revelaram a inépcia do regime e desencadearam uma intensa mobilização dos estudantes, em que pontificaram novos recursos e repertórios de ação. Os estudantes prestaram assistência às populações afetadas, contactando com a realidade que era ocultada pelo regime. Esse acontecimento representou a sua saída para o "mundo real" e acicatou as críticas que eram dirigidas ao regime e às suas instituições.

Estas e outras ocorrências no plano internacional são colocadas na origem da fase de crescente politização do movimento em 1968, que se prolongou nos anos seguintes. Essa politização é ilustrada através de uma série de episódios de conflito protagonizados por estudantes, que tiveram como principais palcos o Instituto Superior Técnico e o meio académico da Universidade de Coimbra, onde viria a eclodir a crise académica em 1969. Os acontecimentos que levaram aos caminhos divergentes dos movimentos de Coimbra (crescente moderação e forte influência do PCP) e de Lisboa (radicalização e predomínio das organizações da esquerda radical) a partir de inícios de 1970 fornecem o mote para a análise das acusações recíprocas entre a nova e a velha esquerda, situando assim a evolução do movimento estudantil no contexto desse enfrentamento. No entanto, haveria também aqui um fator a explorar que se liga à eventual influência do movimento do Maio de 68 na luta estudantil de 69 em Coimbra, não obstante se concorde com a autora de que os aspetos internos ligados ao regime do Estado Novo, ao conservadorismo da Universidade e à Guerra Colonial terão sido os mais decisivos.

A radicalização do movimento após 1969 e a sua articulação mais estreita com a luta contra a ditadura e a guerra colonial dominam o capítulo quatro. É fornecida uma comparação entre as linhas estratégias do PCP e das organizações da nova esquerda ou esquerda radical, contrapondo a estratégia legalista do primeiro, que não reconhecia aos estudantes um papel de vanguarda e advogava a separação entre movimentos operário e estudantil, à visão das organizações da nova esquerda da luta dos estudantes como promotora da consciência de classe do proletariado. São abordadas a dinâmica e importância dos cursos livres em Lisboa, no início de 1970, como forma de combater a hegemonia do PCP e de manter a vitalidade da mobilização estudantil após a mobilização militar forçada dos líderes académicos mais importantes. Fica patente a crescente importância da questão da Guerra Colonial, não só em termos do reportório da mobilização estudantil e como fator aglutinador da contestação dispersa, mas também como ponto nodal que opunha o PCP às organizações emergentes da nova esquerda, que ao contrário do primeiro, partidário de uma estratégia "entrista", defendiam a deserção em massa. Porém, teria sido importante abordar com maior profundidade a contribuição específica do movimento estudantil para a difusão da cultura democrática e de novas ideias no seio do MFA, particularmente entre 1969 e 1974, na sequência da mobilização forçada para o exército de alguns dos principais ativistas da crise de 69.

O quinto e último capítulo foca os mecanismos e processos que conduziram à queda do Estado Novo. A pluralização das forças políticas e complexificação da oposição ao regime, bem como os contornos e consequências da radicalização e exacerbamento das divisões políticas no seio da esquerda radical, são discutidos com maior pormenor. Por outro lado, são apresentados argumentos que reforçam a tese da perda de controlo do regime sobre um conjunto alargado de setores sociais. Multiplicavam-se os grupos que galvanizavam a oposição ao regime, sendo de referir a emergência e fortalecimento da oposição católica. Neste capítulo é estabelecida uma relação entre a crescente mobilização nos últimos anos do Estado Novo e a criação de redes, recursos e repertórios de ação necessários ao desenvolvimento dos movimentos sociais do período do PREC, assinalando assim a existência de continuidades entre os dois períodos. Pese embora esse facto, não é fornecida qualquer explicação para a ausência de participação visível do movimento estudantil no pós-25 de Abril, pelo menos de forma diferenciada da miríade de atores coletivos que por essa altura ocupavam o espaço público.

A conclusão da obra coloca em relevo a importância do estudo do movimento estudantil português ao permitir uma reflexão acerca das possibilidades, limites e efeitos dos movimentos sociais em contexto autoritário de direita, chamando a atenção para a existência de um "paradoxo autoritário". São enfatizados os efeitos da militância, nomeadamente o processo de descomprometimento em fases de normalização democrática, bem como a importância das trajetórias micro para o processo de desmobilização no nível macro. Nesse sentido, a autora destaca a utilidade da sociologia dos movimentos sociais para a análise de situações autoritárias ou de transição.

O livro de Guya Accornero tem o mérito de situar uma sucessão de acontecimentos, todos eles importantes, em processos que permearam a sociedade portuguesa ao longo de várias décadas e cuja influência ainda se faz sentir em muitos casos. Não é um livro apenas sobre o movimento estudantil. É um livro que faz um retrato de uma época em que as universidades surgem como "incubadoras" de radicalização política e o movimento estudantil se transfigura em ator de luta política pela democracia e contra os excessos do capitalismo. Mas, em diversos momentos da resistência estudantil, a sua principal força residiu não tanto nos núcleos organizados da extrema-esquerda, mas mais num descontentamento geral da massa estudantil perante a ameaça da guerra, o ensino obsoleto e a repressão do associativismo. Em todo o caso, cremos que a referência ao contexto internacional, e concretamente ao Maio de 68, ainda que assinalada no capítulo 1, mereceria um maior aprofundamento, por exemplo no capítulo 4, procurando explorar alguma possível contaminação por via dos fluxos clandestinos de informação, de ligações com o exílio e da entrada de literatura conotada com as vanguardas intelectuais da época.

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