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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa Mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.18 

RECENSÕES

WATTEAU, Fabienne

On ne badine pas avec le progrès. Barrage et village déplacé au Portugal,

Éditions de la MSH, 2016, 184 pp.

ISBN 9782735121021

Fernando Medeiros*

*Université Paris-Nanterre, UMR7533 Ladyss. 200 Avenue de la République, 92000 Nanterre, Paris, France. fernando.medeiros@wanadoo.fr


 

Para a autora, o duplo objetivo dos dois livros[1] é o de dar a conhecer a história de uma barragem e da deslocação de uma aldeia e dos seus habitantes, sem descurar o esforço de síntese e de classificação da extensa recolha etnográfica e documental – cadernos de campo, recortes de imprensa, 35 horas de imagens em vídeo – resultante de 15 anos de uma prática regular do terreno. Tratando-se também de um ensaio destinado a preencher os requisitos da prova escrita de agregação, defendida em 2014 na EHESS em Paris, Fabienne Watteau integra ainda para discussão os seus 16 trabalhos académicos até então publicados e/ou produzidos, articulando para esse efeito os dois vocábulos “etnografia” e “universal” que definem o eixo temático que lhe fora sugerido no âmbito da referida prova.

Para obter um condensado dessa abundante documentação, capaz de “reforçar um posicionamento cívico e teórico de fundo” a autora achou por bem recorrer a uma encenação e propor uma peça de teatro em três atos, um género a que já recorreram eminentes antropólogos. “Neste trabalho proponho uma peça de teatro em três atos… uma forma de ficcionalização do verdadeiro e do vivido” […] “pois a intenção desta peça é política” visto ter “sobretudo como objetivo servir uma ideia principal, deixar a palavra às pessoas, e em especial àquelas diretamente afetadas pela construção da barragem.

“Numa altura em que a antropologia também parcece ter vontade de se ‘desantropocentrar', optei por manter as pessoas no coração do debate” (Prefácio, p. 18). A encenação proposta é concebida para fazer interagir, numa mesma unidade de tempo e de espaço, os atores e as diferentes cenas desta história de barragem e de deslocação de populações.

A autora, antropóloga do CNRS ligada ao Laboratório de etnologia e de sociologia comparativa de Nanterre, trabalha há quase três décadas sobre as questões da irrigação e dos conflitos de água em Portugal. Tem publicado artigos científicos (12) e realizado filmes de investigação e divulgação (4). Como indicado nos títulos e na nota explicativa, os dois livros relatam a história da construção da grande barragem do Alqueva e da deslocação da aldeia da Luz.

As breves linhas que se seguem não seriam capazes de resumir a longa e muito rica introdução da edição francesa do livro (pp. 18-48), intitulada “L'universalité d'une histoire, la singularité des situations”. Este longo enquadramento histórico e geográfico antecede a peça de teatro em três atos, publicada inicialmente em português, que constitui o âmago desta obra-ensaio, com o título muito evocativo e algo provocador de On ne badine pas avec le progrès.

Esta abordagem à matéria em causa permite à autora descrever detalhadamente – com o apoio de mapas, planos e fotografias – a antiga aldeia da Luz, submersa após a trasladação dos corpos para o novo cemitério, bem como a nova aldeia, construída de modo a reproduzir a povoação original, situada a 3 km de distância. O argumento temático da peça de teatro assenta sobre as palavras dos habitantes, nos diálogos que mantêm com os diferentes intervenientes e operadores in situ do projeto, algumas impregnadas de receio ou de dúvida, outras de esperança, mas todas manifestando as inquietações face às incertezas da sua nova e estranha condição de habitantes (involuntariamente) ribeirinhos do “maior lago artificial da Europa”.

A peça de teatro assim composta é acompanhada por uma análise dos discursos, dos episódios marcantes e das tomadas de posição relatadas na imprensa, num dossiê constituído por recortes dos dois principais diários portugueses cobrindo o período de 1998-2014. O ensaio termina, na versão francesa, com um regresso ao “terreno”, “Dernière virée à Alqueva”, no qual F. Watteau delineia um ponto de situação crítico. Numerosas referências bibliográficas e filmográficas – entre as quais filmes realizados pela autora – bem como uma cronologia muito detalhada encerram este ensaio de 176 páginas.

Impondo-se sobre 250 km2, dos quais 215 km2 situados do lado português, a grande barragem do Alqueva constitui atualmente a maior retenção de água da Europa. Pensado desde a década de 1920, este projeto foi confirmado em 1957 durante a ditadura de Salazar no quadro do plano de irrigação pretendido desde os anos de 1930 para a província semi- -árida do Alentejo. Para construir tal obra sobre o rio Guadiana, um dos cinco rios comuns a Portugal e Espanha, foi preciso esperar pela assinatura de um acordo, em 1968, entre os dois países. Mas, na sequência de divergências políticas que implicaram a reavaliação da pertinência do projeto, este só conseguiu o acordo definitivo por parte do governo em 1995, com o argumento determinante de que: “A barragem impõe-se como uma reserva estratégica de água para o país” (p. 43). Beneficiando da ajuda financeira da Comunidade europeia obtida em 1997, a grande barragem do Alqueva foi finalmente construída e inaugurada no início do ano 2002. Um traço marcante deste projeto é a quase unanimidade que rodeou a sua construção, que tornou inaudíveis as críticas que apontavam o risco económico e os impactos ­ecológicos identificados pelas associações ambientalistas. Mas, no que respeita à sua edificação, o Alqueva afigura-se como um “anti-Tignes (1946-1952)”, uma história traumática de barragem devido à deslocação de populações, que mantém um valor heurístico do ponto de vista das ciências sociais (Faure, 2008), e que teve o seu equivalente português, em 1972, com a barragem de Vilarinho das ­Furnas, no rio Homem, no extremo norte do país (pp. 36-37). No Alqueva, a partir de 1998, a empresa pública EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva), encarregada da gestão do projeto, “instala quatro dos seus técnicos na velha aldeia, onde permanecerão até um período de cinco anos após a mudança para a nova aldeia, ou seja de 1998 a 2007. Estas condições de acompanhamento da população da Luz foram ideais. […] Durante os momentos mais traumáticos, como o da transferência do cemitério, equipas de psicólogos vieram prestar apoio aos mais frágeis” (p.109). Para além “das equipas mais pontuais [que] vieram também ocasionalmente […] paralelamente, a EDIA recrutou arquitetos, equipas de arqueólogos e cineastas encarregados de conceber um museu da Luz” (p. 109). Manifestamente, esta empresa “gastou tempo a fazer um balanço das histórias traumáticas de barragens e de deslocações de populações ocorridas no mundo” (p. 109).

Irrigação, abastecimento de água, produção de eletricidade (acrescentada ao projeto em 1996), turismo, foram objetivos avançados na origem do projeto embora com sucessos diversos. Doze anos após a sua entrada ao serviço, a barragem constitui presentemente a segunda unidade hidroelétrica do país, com uma potência inicial instalada de 260 MW, que foi duplicada em 2012. Dos 120 000 ha previstos enquanto perímetro de irrigação, 80% encontravam-se instalados em 2016, mas com uma taxa de utilização, como é mostrado no livro, onde apenas algumas produções permanentes, essencialmente a olivicultura intensiva, foram bem sucedidas até à data.

A sua justificação fundamental e prioritária, até à decisão da produção elétrica em 1996, foi a da irrigação, o único meio tido como bom, desde o final do século XIX, para “salvar a região da desertificação tanto física como humana” (Drain, 1995). A força mítica deste objetivo, tão próximo e nunca atingido, é o elemento central do lugar que ocupam as vastas terras do Alentejo no imaginário nacional. E esta força encontrava-se ainda em marcha no limiar do século XXI, uma vez que se tratava de atenuar, idealmente por meio de uma reforma agrária, as disparidades entre classes sociais, num espaço latifundiário composto por grandes proprietários rurais e por um vasto número de assalariados agrícolas (p. 32).

Ao invés, o ambicioso projeto de hidráulica agrícola do Alqueva implica transformações das estruturas agrárias que se encontram nos antípodas da reforma agrária de orientação coletivista radical que teve lugar pela última vez na Europa nestas mesmas terras do Alentejo nos anos de 1975-1976. O objetivo da reforma estrutural atual, implícita, é fornecer acesso a parcelas irrigadas, garantir tomadas de água, promessas estas suscetíveis de diluir todos os antigos fermentos revolucionários, mas que para serem cumpridas devem ser realizáveis. Ora, os primeiros inquéritos feitos nas partes do perímetro de irrigação em funcionamento efetivo mostram que a agricultura familiar, minoritária no Alentejo, mas a principal parte restante de um projeto socioeconómico equitativo, englobando uma diversidade de tipos de agricultura, é a grande perdedora na conceção e organização dos perímetros de irrigação do Alqueva (Figueira e Coelho, 2005, Bento, 2006 e ­Casinha e Figueira, 1995).

Trata-se, com efeito, de uma tentativa de “revolução agrícola”, aquilo a que assistimos sobretudo nos dias de hoje. Efetivamente, as principais transformações agro-económicas em curso consistem em substituir as culturas tradicionais de sequeiro e a plantação extensiva por algumas culturas irrigadas, as únicas rentáveis do ponto de vista dos custos elevados dos recursos hídricos, o que corresponde a abrir de par em par as portas a um capitalismo agrário, seguramente menos rentista, mas muito mais agressivo do ponto de vista agro-ambiental e social. Rompendo assim com a velha utopia conservadora, que preconizava “uma transferência numerosa de pequenos agricultores do Minho” (a região de microfundios no norte do país), tal como havia sido tentado sem sucesso convincente durante os anos de 1960 e 1970 nos primeiros perímetros de irrigação criados no oeste alentejano. Um capitalismo agrário descomplexado, empresarial, e portanto especulativo, tal como o que vem surgindo com força crescente do lado espanhol. Ou seja, aquele mesmo que, com efeito, se alastrou pela Extremadura, mais a montante da bacia desse mesmo rio Guadiana no início dos anos de 1990, incentivado pela construção de numerosas barragens, das quais duas com dimensões próximas da do Alqueva, surgidas no seguimento de um ambicioso plano de irrigação (1955) conhecido por Plano Badajoz (Pérez-Bote e Moreno, 2002).

Nesta perspetiva, os trabalhos de ­Bernard Barraqué (1995) e de Michel Drain (2003), mostraram claramente que a gestão da água em Espanha possui implicações diretas em Portugal, em particular no débito e qualidade da água que chega ao Alqueva. De resto, o desenvolvimento fulgurante de plantações de oliveiras irrigadas, em regime muito intensivo, que se podia observar na zona de Ferreira do Alentejo em 2008-2009, como recorda F. Watteau, atesta a expansão deste tipo de olivicultura que o Alqueva tornou possível no Alentejo. Com efeito, é a comunidade espanhola que possui o domínio técnico, os principais circuitos de transformação e comercialização deste tipo de olivicultura.

Delinear o pano de fundo da dramaturgia social que faz sobressair as grandes transformações dos quadros de vida habituais, tais como as que são provocadas pela construção de uma grande barragem, significa permitir destacar e valorizar as situações observadas apresentando-as com a ajuda de um enquadramento do tipo “espaço cénico” e de um jogo de papéis teatralizado. Estes “papéis” postos em cena nos três atos da peça são construídos a partir do material etnográfico, que é a palavra captada ao vivo e em situação, ela mesma recolhida por meio de numerosas gravações áudio e vídeo, sem dúvida os meios mais apropriados para dar conta das trocas verbais e gestuais durante interações observadas ou solicitadas (discussão de grupo animada pelo antropólogo) que, no conjunto, implicam um total de 51 protagonistas.[2] Para as apresentar, F. Watteau opta aqui pelo que a “abordagem antropológica oferece através de um olhar multifacetado[3] sobre as diferentes maneiras de conceber uma situação que no fundo é banal no mundo, mas a cada passo transbordante de dúvidas, de esperanças e de emoções” (extrato do texto de apresentação, na contracapa).

Esta abordagem antropológica distingue-se dos relatos mais habituais das investigações efetuadas no terreno e da observação participante, evocando antes a análise dramatúrgica desenvolvida por Erving Goffman, ou uma forma de exposição e de escrita polifónica inspirada no teatro. Nesta matéria, este ensaio segue de bastante perto a “multivocalidade” das interações características de uma sociedade de aldeia particular, caracterizada aqui, como é frequente no Alentejo, por uma oposição “cidade-campo” bem ­vincada[4], mas igualmente por uma sociabilidade de entre-conhecimento e um sentimento de comunidade afirmado, se bem que de forma algo discreta e pouco expansiva.

Num plano mais geral, esta obra-ensaio consagrada à construção de uma grande barragem, a última até à data na Península Ibérica, é um contributo para a reflexão sobre a questão da assimetria entre o investigador de ciências sociais, munido de quadros conceptuais e de grelhas de análise assaz diversas, e os sujeitos de estudo observados. O fosso que os separa condena um grande número de produções das ciências sociais ao enclausuramento numa espécie de solipsismo que só o trabalho exaustivo sobre os dados (data mining) pode exumar e reciclar. É por esta razão que, mais do que nunca, as ciências sociais e humanas devem enriquecer-se com abordagens abertas do singular para se encontrarem o mais próximo possível daqueles com quem elas trabalham para compreender e interpretar as trajetórias e as bifurcações do social assim implicadas, quanto mais não seja para contrariar a sua tendência para uma especialização cada vez mais acrescida. É a partir desta perspetiva que a leitura da peça On ne badine pas avec le progrès se torna muito estimulante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRAQUÉ, B. (ed.) (1995), Les politiques de l' eau en Europe, Paris, La Découverte.         [ Links ]

BENTO, S. C. (2006), La difficile existence du barrage d'Alqueva: une ethnographie des démonstrations sociotechniques. Tese de doutoramento. Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Sofia_Bento.         [ Links ]

CASINHA, R. (1995), Família e Empresa Agrícola. Importância da mão-de-obra Familiar na Estratégia Técnico-económica da Empresa Agrícola no Alentejo, Lisboa, ISA.         [ Links ]

CASINHA, R., FIGUEIRA, E. (1995), “A mão de obra familiar na empresa agrícola alentejana”. Economia e Sociologia, 60, pp. 47-70.         [ Links ]

DRAIN, M. (1995), “Les conflits pour l' eau autour du Guadiana”. Espace rural, 36, pp. 115-129.         [ Links ]

DRAIN, M. (2003), “Les eaux partagées avec le Portugal”. In M. Drain, Politiques de l'eau en milieu méditerranéen. Le cas de la Péninsule Ibérique, Madrid, Casa de Velazquez/Universidad de Alicante, pp. 219-227.         [ Links ]

FAURE, A. (2008), “Le barrage de Tignes, questions sociales”. In N. Blanc, S. Bonin (eds.), Grands barrages et habitants. Les risques sociaux du développement, Versailles/Paris, Quæ/MSH, pp. 27-29.         [ Links ]

FIGUEIRA, E., COELHO, I. G. (2005), Alqueva e a Agricultura Familiar. O Caso da Freguesia da Amieira, Évora, Eco-Humanus.         [ Links ]

PÉREZ-BOTE, J. L., PULA MORENO, H. J. (2002), “Usos del agua y problemática ambiental en la cuenca media del Guadiana”. Revista de Estudios Extremeños, 58 (2), pp. 723-729. Disponível em http://www.ucm.es/data/cont/media/www/pag-37595/PerezBote2002b.pdf.         [ Links ]

 

[1] Este livro foi publicado em português, em 2014, pela Imprensa de Ciências Sociais, com o título “Querem Fazer um Mar”. Ensaio sobre a Barragem de Alqueva e a Aldeia da Luz (ISBN: 9789726713418). As duas versões diferem nalguns aspectos, acrescentando a publicação francesa uma apresentação mais extensa e atualizada do contexto e das reavaliações mais recentes da evolução e dos diferentes objetivos e usos desta grande barragem.

[2] O grupo era composto por 43 habitantes da aldeia da Luz e 8 engenheiros e quadros dirigentes da entidade pública responsável pela construção replicada da nova aldeia.

[3] Como o utilizado por Akira Kurosawa para o seu filme Rashomon, de 1950.

[4] Esta característica distintiva da ruralidade alentejana é tornada visível através dos fluxos migratórios presentes nestas regiões, uma outra “personagem” à qual a peça de F. Watteau atribui um “papel” de primeiro plano, a muito justo título.

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