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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.17 

RECENSÕES

CRESPO, Nuno (org.)

Arte, Crítica, Política,

Lisboa, Tinta da China, 2016, 272 pp.

ISBN 9789896713294

Alexandre Melo*

*Departamento de Sociologia, ISCTE-IUL. Avenida das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal. alexmelolisboa@gmail.com


 

O título deste livro é composto por três palavras: “arte”, “crítica” e “política”. O que têm estas palavras em comum?

Desde logo, observamos que são palavras com as quais se pode compor um elevado número de combinações, todas elas pertinentes. Por exemplo: “crítica da arte política”, “política da arte crítica”, “arte da crítica política” e assim por diante, numa sucessão de hipóteses de utilização das três palavras, e suas derivadas, enquanto substantivos ou adjetivos. Esta circunstância revela estarmos perante noções com histórias, usos e significados bem diferenciados – que aqui não cabe evocar – mas que, para além da sua quase permanente – talvez eterna e, hoje em dia, talvez imperiosa – atualidade, partilham uma atmosfera de familiaridade conceptual e ideológica, uma zona de vizinhança teórica e de potencial convergência de questionações e problemáticas.

Os temas não poderiam ser mais aliciantes, sobretudo para quem partilhe a hipótese segundo a qual a filosofia é uma forma de conversação (à maneira de Richard Rorty), ou que o próprio pensamento é uma forma de conversa que, quando submetida a algumas regras, se chama investigação e, quando inspirada por algum talento ou fulgor, produz “conhecimentos”, “ideias” ou, na melhor das hipóteses, “sabedoria”.

Qualquer uma das três palavras é suscetível de gerar uma conversa que temos tendência a desejar que seja interminável. Deste modo, o ensejo que aqui as une não poderia afigurar-se mais propício.

O livro, organizado por Nuno Crespo, surge no âmbito do trabalho do grupo de investigação “Arte, Crítica, Política” do Instituto de História da Arte (FCSH-UNL) e “resulta da necessidade de prolongar a discussão” ocorrida durante um colóquio realizado em junho de 2014. Na apresentação, o organizador explicita uma tomada de posição: “Este livro, de alguma forma, insurge-se contra o putativo fim da crítica e a sua substituição por sistemas institucionais, culturais e artísticos imunes a qualquer juízo e disputa, mostrando como o enfraquecimento da palavra crítica implica um fechamento político do campo artístico ao debate, ao pensamento e à sociedade” (pp. 11-12).

A vastidão dos temas abrangidos não permite uma síntese ou conclusão simplificadoras mas, em contrapartida, proporciona uma aliciante diversidade de tematizações suscetíveis de proporcionarem um forte desejo de continuar a conversar.

Comecemos por referir a diversidade de temas, de métodos e perspetivas de análise, e também de modalidades de escrita ou enunciação.

Em termos de “tom”, encontramos desde a intervenção coloquial, à maneira de depoimento, até ensaios (de extensão variável e com ritmos que vão do mais sistemático ao mais divagante) que se aproximam (mais ou menos) do modelo académico consagrado.

O livro faz conviver as perspetivas da filosofia, da história ou da reflexão própria a profissões específicas dos “mundos das artes”. O leque de remissões disciplinares abrange a arquitetura, as artes plásticas, a fotografia, a literatura (em sentido lato) e a poesia.

Passemos aos exemplos, tentando conciliar a justeza da referência aos vários contributos com a eventual ­tentação da sugestão especulativa em relação a alguns tópicos.

Comecemos pela diversidade de perspetivas disciplinares. A arquitetura é abordada por Ricardo Carvalho e Jorge Figueira. Ricardo Carvalho recorre à noção de “metáfora global” enquanto “possibilidade de uma cultura universal de contornos locais e irrepetíveis” (p. 235). Entre os exemplos evocados está a famosa Casa de Chá de Álvaro Siza em Leça da Palmeira. Jorge Figueira aborda as diferentes práticas e conceções da crítica de arquitetura e suas evoluções (e “crise” ) recentes.

Margarida Medeiros procura “situar a genealogia do lugar da fotografia no contexto da sua história e da sua inscrição como arte, a partir do debate que sobre este se desenrolou desde a sua invenção” (p. 157).

A perspetiva historiográfica ganha relevo em dois textos dedicados à história da arte em Portugal. Joana Cunha Leal e Mariana Pinto dos Santos discutem o entendimento da noção de “modernismo” que paira sobre toda a história da arte do século XX em Portugal. Em conclusão, defendem a necessidade de relativizar “modelos artísticos fixos em centros” e “expor a complexidade e o contexto histórico e político de produção de modernismos” (p. 106).

Pedro Lapa, recorrendo ao adequado enquadramento conceptual e ideológico, analisa transformações recentes da situação das artes plásticas em ­Portugal, nomeadamente na última década do século XX, o que “implica situar esta geração de artistas no corte quase ­generalizado que ela estabeleceu com grande parte dos posicionamentos do antecedente (p. 216).

A partir de diferentes posicionamentos institucionais em relação ao “mundo da arte” é interessante aproximar os contributos de Miguel ­Wandschneider, António Guerreiro e Delfim Sardo. Wandschneider, apresentando-se como “curador”, constata, num curto mas incisivo texto, “a penosa morte da crítica de arte em Portugal” que relaciona com a “falta de condições materiais para o seu exercício” mas também com “a aflitiva crise de vocações que dela se apoderou” (p. 214).

Entretecendo, num quadro filosófico, um paralelismo entre os destinos da crítica e do ensino da arte, António Guerreiro conclui que “a apatia da crítica acompanhou a desorientação e a desautorização das Faculdades de Belas-Artes” (p. 41): “nome anacrónico, que não conseguimos pronunciar sem pensarmos numa relíquia” (p. 35). No contexto de uma eventual “competição” entre crítica e curadoria, parceiras na aspiração a lugares de poder institucional, avulta a posição defendida por Delfim Sardo, partindo da conceptualização da diferença entre as duas práticas para concluir pela rejeição da possibilidade de a curadoria substituir a crítica.

Uma posição que é útil confrontar com a de João Pedro Cachopo, que analisa “a crítica de arte como tradução”, com referência a Walter Benjamin. Num formato mais próximo do ensaio académico, Bruno C. Duarte convoca “Walter Benjamin por Friedrich Schlegel”.

Alguns outros textos ampliam a diversidade das aproximações à noção de crítica. Eduarda Neves faz uma abordagem político-ideológica das desventuras da crítica “na época do cinismo avançado”. Ana Godinho analisa textos de Fernando Pessoa a respeito da crítica. José Gil, num notável texto de síntese, enuncia uma tese filosófica de fundo a respeito da especificidade da prática da crítica e da sua relação com as obras de arte.

Deixamos para o final a que é talvez a mais surpreendente componente deste livro: as incursões no território da literatura e da sua (mais ou menos) possível crítica.

No texto que encerra o livro, Rosa Maria Martelo parte de uma problematização das relações entre poesia, crítica e ideologia ao longo dos últimos dois séculos, articulando uma eventual contradição entre a “verticalidade” da “poesia moderna” e a necessidade de reconhecer que “a democracia pressupõe a horizontalidade, a generalização, a partilha” (p. 247). A autora conclui com a formulação de “um posicionamento paradoxal que nos faz ambicionar tanto a soberba da poesia quanto a sua transformação em cultura, ao mesmo tempo que tememos a anulação da diferença específica que lhe dera origem enquanto gesto artístico” (p. 252). Adianta que “o caso da obra de Mário Cesariny “poderia ser um bom exemplo mas, neste texto, foca a sua análise nas circunstâncias da publicação e receção do livro A Morte sem Mestre de Herberto Hélder. Este é um dos poucos exemplos recentes de um debate relevante sobre um livro de poesia e os dois autores citados estão, por certo, entre os “casos” mais fascinantes para um estudo “crítico”, “estético”, “formal”, “ideológico”, “político”, “sociológico”, “cultural” ou como lhe se lhe queira chamar (na certeza de que seria muito pouco provável que qualquer um dos autores considerasse estes adjetivos aceitáveis ou adequados).

A estes nomes de exceção haveria que juntar, para este efeito, talvez como exceção dentro da exceção, o nome de Joaquim Manuel Magalhães e a análise do que fez com os seus livros ou o seu livro de poemas. Este é o assunto do mais fascinante texto deste volume : “Com a voz torva e sem arrependimento”, de Maria Filomena Molder.

Em 2010, Joaquim Manuel Magalhães publica Um Toldo Vermelho. Na última página antes do Índice pode ler-se uma breve “Nota”: “Este volume constitui a minha obra poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005. Exclui e substitui toda a anterior”. O que significa isto em relação ao estatuto do conteúdo de cerca de duas dezenas de publicações anteriores em que o seu nome figura como autor? O que acontece ao que nesses livros foi lido? Para onde vão esses livros e poemas? Onde ficamos nós, os leitores, quando olhamos para a prateleira da estante onde temos ou nos faltam esses livros? Os poemas que em tempos lemos deixaram de existir? Deveríamos, por fidelidade ao autor, destruir os livros onde continuam a poder ser lidos? Este é um modo simplista de enunciar o tipo de questões que guiam a notável reflexão de Maria Filomena Molder a respeito do “caso” da “obra” de Joaquim Manuel Magalhães: em qualquer dos “casos”, ou “obras”, um nome fundamental na literatura em Portugal no último século. É impossível resumir o texto de Maria Filomena Molder, mas é difícil resistir à vontade de o voltar a ler e à vontade de voltar a ler o livro ou os livros de Joaquim Manuel Magalhães.

Talvez este exemplo resuma bem a virtude maior deste volume: a vontade que nos transmite de continuar a leitura, de continuar a conversa.

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