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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.16 

RECENSÕES

BELCHIOR, Ana Maria, ALVES, Nuno Almeida (orgs.)

Dos “Anos Quentes” à Estabilidade Democrática – Memória e Ação Política no Portugal Contemporâneo,

Lisboa, Editora Mundos Sociais, 2016, 182 pp.

ISBN 9789898536518

Maria Inácia Rezola*

*Escola Superior de Comunicação Social, Instituto Politécnico de Lisboa. Campus de Benfica do IPL, 1549-014 Lisboa, Portugal. irezola@escs.ipl.pt


 

Parece-nos desnecessário justificar a importância que os acontecimentos revolucionários de 1974-1975 tiveram na sociedade portuguesa ou demonstrar como contribuíram para moldar um novo país. Por isso, e como seria expectável, a Revolução de Abril e o período de consolidação democrática, que se lhe seguiu, há muito que se constituíram como objeto de interesse de académicos e estudiosos, alimentando um impressionante número de projetos e iniciativas de disseminação científica, assim como uma intensa atividade editorial. Apresentando-se modestamente como “mais um contributo” para este já amplo acervo de publicações, a obra coletiva Dos “Anos Quentes” à Estabilidade Democrática pode, neste contexto, ser perspetivada numa dupla dimensão.

Em primeiro lugar, cumpre assinalar que este livro teve a sua génese em dois eventos: as II Jornadas de Ciência Política ISCTE-IUL Dos Anos Quentes à Consolidação da Democracia Portuguesa (ISCTE, 10-11 de maio de 2012)[1] e um conjunto de palestras de membros da Associação 25 de Abril promovidas no âmbito do Projecto MYPLACE: Memory, Youth, Political Legacy and Civic Engagement (ISCTE, junho de 2012). Independentemente do seu valor e relevância, o eco deste tipo de iniciativas é frequentemente limitado, ficando os seus resultados circunscritos aos que tiveram oportunidade de nelas participar. A par da dificuldade em recolher as intervenções orais proferidas no âmbito de eventos sob a forma de textos, os organizadores de obras coletivas confrontam-se frequentemente com outro entrave: a publicação de atas de colóquios não tem normalmente um bom acolhimento por parte das editoras. Este é, na nossa perspetiva, o primeiro mérito da obra coordenada por Ana Maria ­Belchior e Nuno de Almeida Alves e publicada sob a chancela da Editora Mundos Sociais: recolher, organizar e enquadrar um leque alargado de intervenções, dando-lhes uma mais ampla divulgação e relevância.

Paralelamente, cabe perspetivar este livro no âmbito da já extensa produção bibliográfica sobre a revolução e a transição democrática. Na introdução, particularmente clara e bem conseguida, os coordenadores deixam patentes os seus objetivos. Por um lado, propõem-se “constituir um acervo de informações e de testemunhos das experiências” de um “conjunto vasto de personalidades que viveram, acompanharam ativamente ou mesmo lideraram alguns dos momentos mais decisivos da história deste período”. Paralelamente, procuraram dar voz a trabalhos académicos sobre “alguns episódios particulares” e “processos decisivos das últimas décadas da História Portuguesa, alguns deles com ramificações para o presente e para o futuro, e que pudessem potencialmente oferecer algum distanciamento em relação aos contributos dos primeiros” (p. 2). Este duplo propósito está plasmado na forma como procederam à organização dos 12 capítulos que constituem a obra: uma primeira parte dedicada aos contributos de protagonistas e uma segunda, que intitularam de “Memória indireta”, reunindo estudos de investigação académica.

Ainda que integrando apenas textos de atores do processo, e ao contrário do que parece ter sido a intenção dos seus organizadores, a primeira parte da obra está longe de assumir um registo memorialista. Em causa, escritos de cariz essencialmente analítico e interpretativo em que se denota uma preocupação em desmontar alguns mitos sobre o colonialismo (cf. texto de Aniceto Afonso) e a descolonização (cf. texto de Pezarat Correia); analisar o impacto da guerra no regime, nas Forças Armadas Portuguesa (cf. textos de Aniceto Afonso e Pedro Lauret) mas também sobre “as fases da consolidação da identidade nacional na Guiné, Moçambique e Angola” (cf. texto de Pezarat Correia, p. 35); ou ainda ­escritos em que se procura clarificar quais foram os contornos do processo de elaboração do Programa do MFA e os principais debates sobre os seus aspetos mais significativos (cf. texto de Pedro Lauret). A este último respeito, é também possível encontrar um dado nem sempre clarificado pelas obras sobre o período: que terá sido na reunião do Movimento dos Capitães realizada em Cascais, a 3 de março de 1974, que este se metamorfoseou em Movimento das Forças Armadas (MFA) e que o processo decorreu do seu alargamento a todos os ramos das Forças Armadas.

Revelando uma extraordinária capacidade de síntese, Jorge Miranda – o único civil a quem é dada voz nesta primeira parte –, apresenta as condições que tornaram possível convocar a Assembleia Constituinte, a forma como se desenrolaram os seus trabalhos no contexto do Processo Revolucionário, assim como os elementos que conferem originalidade ao texto constitucional de 1976. Enunciando, ainda, as principais mudanças introduzidas na Constituição entre 1982 e 2005, a sua nota final é de bastante otimismo relativamente às heranças da revolução e às perspetivas de futuro para o país.

O último testemunho da primeira parte, pelo contrário, assume um tom de alguma amargura, deixando patente o desencanto do seu autor – um ­ativíssimo oficial da Armada, membro do MFA e conselheiro da Revolução – com a forma como decorreu o processo revolucionário e a consolidação democrática. Segundo Miguel Judas, o período revolucionário foi um momento excecional em que “o povo português teve nas suas mãos os meios de produção necessários para construir o seu próprio país, a partir do seu trabalho e engenho, sem amos exteriores, como soberano do seu destino”. Na sua resposta às questões, que o próprio coloca, sobre “o que correu tão mal e porquê?” (p. 56), Judas atribui grande responsabilidade aos partidos políticos que, no seu entender, se deixaram “perverter por dependências e intromissões alheias aos interesses dos portugueses e de Portugal, prosseguindo a sua evolução degenerativa ao ponto de não terem hoje qualquer projeto de futuro e colocarem em perigo a própria legitimidade da democracia representativa” (p. 61).

Reunindo trabalhos estritamente académicos produzidos por cientistas sociais pertencentes a uma nova geração que se destaca, desde logo, pelo seu empenho na renovação dos estudos sobre a temática, a segunda parte do livro apresenta algumas características que, em nosso entender, lhe conferem particular interesse.[2] Desde logo o facto de assumir uma perspetiva ­multidisciplinar (integrando estudos de historiadores, cientistas políticos e sociólogos) e analítica, que permite equacionar novos problemas e ângulos de abordagem particularmente aliciantes. Depois, dada a sua diversidade temática, cobrindo algumas das realidades mais significativas do período em análise (a descolonização, a dimensão internacional da revolução portuguesa, o papel do Partido Comunista Português, as nacionalizações, o sistema político e partidário) e temáticas que se encontram atualmente num lugar de destaque da agenda científica (como a memória histórica ou as questões coloniais e pós-colonias). Finalmente, e sem qualquer preocupação de exaustividade, gostaríamos também de salientar a perspetiva cronológica alargada assumida pelos organizadores da obra.

A maioria dos textos publicados na segunda parte do livro incide, como seria expectável, sobre os anos de 1974-1976. Existem, no entanto, exceções a esta regra. Ana Maria Belchior, por exemplo, amplia a sua análise até finais dos anos 80, considerando que apenas em 1987 se dá por finda a fase da transição e da consolidação democrática, caracterizada pela autora como um período de “grande instabilidade política”, marcado por “uma sucessão de governos de curta duração na sequência de conflitos políticos, sociais, partidários e institucionais” (p. 75). Da mesma forma, em “Os jovens e o 25 de Abril: memória e ação” (capítulo em que se divulgam alguns dados coligidos no âmbito do projeto MYPLACE) analisa-se como a memória da guerra colonial e da revolução “é utilizada para interpretar o passado, o presente e até perspetivar o futuro” (p. 178). Finalmente, chamamos também a atenção para o estudo “Os lutos inacabados do império”, de Miguel Bandeira Jerónimo, em que se apresentam algumas das linhas de força do debate sobre o que o autor designa “memória imperial e colonial”, num exercício inédito de análise comparativa.

Ainda que a originalidade não seja a sua principal característica (dado que já anteriormente se publicaram obras com características e objetivos semelhantes[3]), e que um ou outro aspeto pudesse ser melhorado (alargando, por exemplo, as temáticas abordadas ou, ainda, a presença de civis na parte dedicada aos testemunhos), esta é, em nosso entender, uma obra que nos fornece uma perspetiva abrangente sobre a revolução e a transição democrática em Portugal, apresentando pistas interpretativas diversas e particularmente aliciantes. Trata-se de uma obra cuidada, que reúne um conjunto de textos de particular interesse e cuja relevância em termos académicos, didáticos e de divulgação é inegável.

 

[1] Encontro que contou com a participação de vários protagonistas militares → → (como Vasco Lourenço, Sousa e Castro, Pedro ­Pezarat Correia), dirigentes políticos (como Jorge Miranda, João Cravinho, Manuel ­Alegre, Bruto da Costa, Mário Soares, Ângelo Correia, Rui Machete) e outros que atuaram em diferentes domínios como Helena Pato, Adelino Gomes.

[2] A segunda parte da obra reúne sete estudos da autoria de Ana Maria Belchior, Miguel Bandeira Jerónimo, Luís Nuno Rodrigues, David Castaño, Raquel Varela, Ricardo Noronha, Nuno de Almeida Alves (com David Cairns, Tiago Carvalho e Ana Alexandre).

[3] Veja-se, a título de exemplo, a obra Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976). I Curso Livre de Lisboa Contemporânea organizado pela Fundação Mário Soares e Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, ­Colibri, 1999, em que se cruzam textos de testemunhos participantes e estudos académicos sobre a revolução e a transição democrática.

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