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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.15 

RECENSÕES

KUMAR, Rahul

A Pureza Perdida do Desporto: Futebol no Estado Novo,

Lisboa, Edições Paquiderme, 2017, 288 pp.

ISBN 9789899940321

Bernardo Borges Buarque de Hollanda*

*Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Escola de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas. Praia do Botafogo, 190, 14.º andar — CEP 22250-145 Rio de Janeiro, Brasil. bernardo.hollanda@fgv.br


 

É muito oportuno que, na condição de pesquisador brasileiro, dedicado nos últimos 15 anos à temática do futebol, possa recensear o trabalho académico de um investigador de origem portuguesa. A oportunidade é válida por se tratar de uma investigação original, que aborda a formação dos desportos em Portugal, numa época histórica que guarda muitas ressonâncias com o que se passou no Brasil de meados do século XX.

Durante muito tempo disse-se que Portugal e o Brasil, próximos pelos seus vínculos coloniais, genealógicos e ­linguísticos, cultivam uma herança em comum, mas conhecem-se relativamente pouco como nações modernas e contemporâneas. Embora esse conhecimento mútuo pudesse ser muito mais intenso e frutífero, deve-se observar, em período mais recente, o estabelecimento de uma série de redes e de intercâmbios por parte de ambas as comunidades científicas. Tal característica reflete-se de igual maneira no âmbito académico dos desportos, com doutorandos brasileiros que se formam ou estagiam em Portugal, com seminários promovidos nos dois lados do ­Atlântico e com projetos de pesquisa que se desenvolvem por meio de parcerias entre as suas melhores universidades.

O presente livro é fruto de um trabalho sólido de pesquisa, resultado de uma tese de doutoramento defendida no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A sua leitura permite a um estudioso brasileiro a aprendizagem, o alargamento e o aprofundamento da compreensão do fenómeno desportivo em Portugal, entre fins dos anos 1920 e início da década de 1960, permitindo o cotejo de semelhanças e de diferenças nas configurações da estruturação do campo dos desportos no decurso do século XX. Antes de precisar os argumentos centrais do autor, convém ressaltar de imediato que a leitura possibilita ir além de um imaginário de senso-comum e contribui para superar um modo tradicional como, desde o Brasil, se perspetiva a história social do futebol em Portugal.

Isso porque, no Brasil, a influência do futebol português costuma ser abordada de dois ângulos, quando se considera a primeira metade do século passado: 1. A emigração dos clubes lusitanos de colónia, forjados no país durante a introdução dos desportos modernos, na viragem do século XIX para o XX, ocasião em que se disseminava na capital da República, o Rio de Janeiro, um acerbado antilusitanismo, a associar os males nacionais às suas origens coloniais; 2. O futebol interclassista e multirracial praticado por clubes como o Vasco da Gama, nos idos de 1920 e de 1930, momento em que a popularização e a profissionalização futebolísticas se mostram uma tendência crescente e irreversível no Brasil.

Já na segunda metade do século XX, outros termos da relação se colocam, com a mudança dos sentidos de identidade e de alteridade então atribuídas a cada país. Desde 1958, ou mesmo antes, a Seleção Brasileira destaca-se pelas suas performances e pelos seus triunfos em Copas do Mundo, torneio quadrienal organizado pela FIFA, passando a ser consagrado internacionalmente como o “país do futebol”.

Em contrapartida, nesse cenário especular, Portugal, a antiga metrópole, volta a surgir como um “Outro” para o ­Brasil, mais precisamente na Copa de 1966. Nesta ocasião, surge a equipa nacional portuguesa, liderada por ­Eusébio, treinada pelo brasileiro Otto Glória e formada por atletas das ainda colónias africanas. Esta seria a base para a conformação de um luso-tropicalismo futebolístico, a conciliar o postulado de Gilberto Freyre quanto à interpenetração da racionalidade europeia com a criatividade e a força africanas. Nas partidas da Copa da Inglaterra, Portugal destrona o selecionado brasileiro, então bicampeão mundial (1958-1962), comandado por Pelé, por Garrincha e integrado por futebolistas negros, afro-brasileiros e mestiços.

Por fim, um aspecto do imaginário do futebol português que desponta no Brasil contemporâneo diz respeito à dinâmica de circulação de atletas de final do século XX e de início do século XXI. O afluxo futebolístico global manifesta-se por meio da emigração intensa de atletas brasileiros, os chamados “pés-de-obra”, com a sua respeciva radicação nos diversos clubes profissionais de Portugal, uma das formas de ingresso na vitrine do futebol europeu. O estudo dessas trajetórias tem sido perseguido por investigadores brasileiros, que procuram entender a lógica da mobilidade no mundo globalizado e buscam acompanhar as vicissitudes da adaptação dos jogadores no exterior, especialmente no ambiente clubístico lusitano.

O presente livro de Rahul Kumar não se dedica às inter-relações entre os dois países, mas parto dessas considerações iniciais para mostrar o quão enriquecedor o seu recorte é para a compreensão do enquadramento disciplinar por que passou o futebol português num quadro desportivo e sociohistórico maior.

O Brasil também conheceu o seu Estado Novo, conquanto numa cronologia bem mais pontual (1937-1945). O regime estadonovista brasileiro foi chefiado por Getúlio Vargas e possuiu feições análogas ao homónimo de Portugal (1933-1974), com a caracterização geral de uma estrutura corporativa, centralizadora e autocrática do poder. Tal homologia pode ser corroborada igualmente na esfera da representação e da prática dos desportos. Apregoavam-se então a educação física nas escolas, a disciplina, a higiene e a regeneração dos corpos, mas também a monumentalidade dos estádios e o controlo das instituições desportivas – valores e discursos que se fazem capitais na leitura desta competente e convincente tese de doutoramento.

Em contrapartida, se há evidentes semelhanças nesse período mundial de crise da hegemonia liberal, o objeto da análise de Kumar é de fundamental importância para entender a singularidade dos processos históricos. O livro permite repensar as assimetrias relacionais entre o Estado e a sociedade civil portuguesa sob o ângulo dos desportos e dá elementos para aquilatar o peso e o papel decisório dos agentes na historiografia nacional.

No caso português, esses agentes vão exercer suas influências institucionais nas decisões sobre o fenómeno aqui chamado de espectadorização – “prática competitiva orientada para o público mais do que para o lazer dos praticantes” (pp. 12 e 13) –, que enseja a entrada progressiva da comercialização nos desportos. A Pureza Perdida do Desporto repisa a usual querela entre o idealizado amadorismo, entendido como prática distintiva, recreativa e cultural, e o “corrompido” profissionalismo no futebol, no ciclismo e no boxe, a projetar o desenvolvimento de um campo autónomo de trabalho remunerado e de lazer comercializado. Todavia, a obra desconstrói o maniqueísmo de uma visão essencialista, unidirecional e evolutiva da história, quando aplicada ao universo das ações políticas desportivas.

A importância conferida à agência na história, sem descurar por suposto da estrutura, inspira-se em postulados da teoria dos campos de Pierre Bourdieu e em preceitos dos Estudos Culturais ingleses, em particular a capacidade de reapropriação da cultura popular urbana sobre os modos hierárquicos de criação, de difusão e de consumo da produção discursiva oficial. A força analítica do livro advém da ausência de precipitações esquemáticas na formulação de suas hipóteses sobre o lugar do futebol no salazarismo e sobre o veto estadonovista ao profissionalismo, um dos expedientes de intervenção do governo na inibição do fomento ao campo futebolístico.

Embora ciente de seu poder de influência, Kumar não repete as generalizações em torno do caráter instrumental e normativo da disseminação da ideologia do Estado Novo, e amplificada pelos meios de comunicação e repetida pelo senso-comum. Prefere, de forma mais atenuada, dar atenção à sociedade civil e demonstrar o modus operandi das práticas quotidianas cultivadas por uma miríade de organizações desportivas.

Com efeito, salienta o autor que a afirmação de um campo desportivo autónomo é expressão das linhas de clivagem sociais e culturais, articulada com as suas implicações políticas, usualmente desconsideradas no Estado Novo salazarista. Kumar é capaz de inferir conclusões apropriadas acerca da consecução do projeto profissional dos atletas portugueses no início dos anos 1960 e da posição marginal de Portugal no panorama desportivo internacional. Esta marginalidade lusitana constrói-se na dialética de fechamento instigada pelo regime e de abertura face à dinâmica do futebol praticado na Europa central (Áustria e ­Hungria), na Europa ocidental (Inglaterra, ­Escócia, França, Espanha, Alemanha e Itália) e na América do Sul (Argentina, Brasil e ­Uruguai).

O êxito argumentativo também deriva do bom balanceamento das ­fontes ­compiladas, constituídas por arquivos oficiais depositados na Biblioteca Nacional de Portugal, tais como os levantados junto ao Ministério da Educação, com a sua respetiva legislação e seus decretos-leis. Entre os documentos consultados, destaca-se aquele que Kumar considera uma “instituição periférica” do regime do Estado Novo e que se torna, em virtude desta característica, um terreno privilegiado para entender o quotidiano desportivo naquele período. Trata-se do arquivo em que extrai discursos e regulamentos pertencentes à Direcção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, organismo criado em 1942.

Mas a documentação não é lida de maneira isolada. Um conjunto de informações e de outros dados acompanha-a e, muitas vezes, relativiza-a. As regras e os ofícios da Direcção-Geral são cotejados com diversos livros sobre futebol – almanaques, biografias, história de clubes – e com relatos jornalísticos, sejam os periódicos generalistas sejam os jornais especializados. Este último, longe de ser uma fonte neutra para coleta de material primário, é objeto de escrutínio, que avalia os pressupostos dos seus valores e dos seus discursos, indissociados pelo Autor dos interesses comerciais e das posições políticas em jogo.

Quanto à forma, o livro sabe ser denso sem ser extenso em demasia. Não exaure o leitor com material bruto, sabe filtrar as informações mais importantes e conduz os argumentos através de uma escrita clara, concisa e bem concatenada. Kumar estrutura a argumentação em três capítulos, equilibrados entre si do ponto de vista quantitativo. Cada um deles corresponde, por sua vez, à diacronia da sua problemática fundamental. Esta questiona por que razões se operou no interior do Estado Novo um atraso histórico na disseminação da educação física aos amplos estratos da população e uma resistência governamental à aceitação do futebol como manifestação de massas, espetáculo reconhecido profissionalmente, com cunho comercial, cultural e internacional mais amplo.

O livro reparte-se assim numa estrutura tripartida. O primeiro capítulo, intitulado “Sociogénese do campo desportivo português”, acompanha a gradual diferenciação entre modelos desportivos associados ao Olimpismo amadorístico, de perfil aristocrático-militar, expresso em modalidades como a vela, a esgrima e o hipismo, e o incipiente processo competitivo que subjaz ao desenvolvimento do futebol, do ciclismo e do pugilismo. Como estudo de caso, Kumar elege a dinâmica de desenvolvimento do futebol na cidade de Olhão e descreve a trajetória da primeira participação futebolística portuguesa em Jogos Olímpicos, na edição de 1928, em Amsterdão.

Já o segundo capítulo – “O Estado Novo e o desporto: ideologia e instituições” –detém-se na moldura institucional atribuída pelo regime estadonovista às atividades desportivas. A organização compreende desde o contexto da ginástica em ambiente escolar até a edificação de equipamentos desportivos, como o Estádio Nacional, inaugurado em 1944. Junto às obras de cunho monumental, erigiam-se instituições que visavam ­atingir determinados segmentos sociais, a exemplo do Instituto Nacional de Educação Física (INEF), da Mocidade Portuguesa, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) e da Emissora Nacional.

Nesse bojo, os órgãos estatais contrapõem a educação física ao desporto moderno, nomeadamente ao futebol – que seria expressão de uma cultura popular internacional –, tecendo críticas ao desenvolvimento deste último em solo nacional. Apesar da reforma pedagógica e da imposição institucional pretendida pelo Estado Novo, o autor salienta a existência um amplo movimento associativo e federado, cuja lógica de funcionamento, não se opunha política e ideologicamente de maneira explícita à esfera governamental, resistia à mesma a seu modo, porquanto obedecia às características de um campo dotado de autonomia relativa, regido por influências externas e por valores próprios.

O terceiro e principal capítulo, denominado “A pureza perdida do desporto: a profissionalização do jogador de futebol”, debruça-se sobre o paulatino processo de reconhecimento da profissão de futebolista nos clubes de Portugal entre os anos 1930 e 1960. Tal reconhecimento associa-se a uma crescente especialização racionalizada, à constituição identitária e comunitária do público seguidor do futebol, ao influxo externo de circulação de jogadores e de treinadores, bem como ao desempenho das equipas e dos selecionados portugueses em torneios fora do país. A título de exemplo, pode-se citar o Sporting, na Copa Rio, disputada no ­Brasil em 1951, e o Benfica, na conquista da Taça dos Clubes Campeões Europeus, na Holanda, em 1962, entre outras competições desportivas internacionais.

Se é certo que a proibição estatal criou embaraços administrativos e barreiras legais, haja vista o que se passou com as diretrizes do “Estatuto do Jogador” ao longo dos anos, Kumar demonstra com propriedade como o processo histórico foi capaz de contornar a “profissionalização lenta e encapotada” e, afinal, logrou superar a “crise do futebol português”, em meio à prolongada vigência autoritária no país.

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