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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.13 

RECENSÕES

CRUZ, Miguel Dantas da

Um Império de Conflitos: O Conselho Ultramarino e a Defesa do Brasil,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2015, 430 pp.

ISBN 9789726713517

Bruno Cezar Silva*

*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189 Lisboa, Portugal. brunoc2s@hotmail.com


 

O livro “Um Império de Conflitos: O Conselho Ultramarino e a Defesa do Brasil” resulta da tese de doutoramento do historiador Miguel Dantas da Cruz, defendida em julho de 2013 no âmbito do Programa Interuniversitário de Doutoramento em História (PIUDHist). Em linhas gerais, a presente obra trata dos mecanismos de gestão dos impérios coloniais a partir dos centros políticos europeus. Mais precisamente, discute o papel desempenhado pelo Conselho Ultramarino no tocante à defesa da América portuguesa, evidenciando-se a capacidade de decisão e de influência deste tribunal junto do monarca, assim como, em concorrência com outras instâncias e/ou indivíduos/grupos de poder atuantes no âmbito do Império português. Com efeito, entender o nível de protagonismo deste Conselho, com vista à organização do sistema defensivo-militar do Brasil, constitui o seu ponto fulcral.

Quanto às balizas geográficas e cronológicas, cumpre destacar que o escopo espacial é o do Atlântico português e, em particular, a sua possessão americana. Ora, a escolha pelo Brasil justifica-se, segundo o autor, pela crescente importância estratégica deste território, em detrimento do Estado da Índia, que, nesta altura, já não possuía a pujança dos tempos de arranque da expansão quinhentista (p. 20). Os marcos temporais abrangem, por seu turno, o período compreendido entre a Restauração e os primeiros anos do Pombalismo. Já a base empírico-documental do trabalho se fundamenta nas consultas do Conselho Ultramarino, documento que, em razão do seu variado teor, expõe, com sobeja clareza, a ação (e a visão) dos ministros no que compete a diversos assuntos relativos aos domínios coloniais da Coroa brigantina, nomeadamente questões de natureza militar. Ademais – muito embora de forma suplementar – lança mão de outras tipologias de fontes, tais como cartas patentes, material legislativo, memórias e registos produzidos por personalidades que, neste contexto, estiveram direta ou indiretamente envolvidos no serviço del rey.

No que respeita à estrutura do livro, está dividido em três partes, nas quais se distribuem 11 capítulos. Na primeira delas, denominada “A anatomia da decisão política em tempos de crise na América portuguesa” (pp. 25-154), formada por três capítulos, discute-se o papel atribuído e desempenhado pelo Conselho Ultramarino na condução política das guerras/conflitos travados no espaço brasileiro. Nesta secção, cumpre verificar, sobretudo, o nível de intervenção desse tribunal no tocante à capacidade de orientar os arbítrios do rei, já que dividia essa função com outros órgãos palatinos de cariz consultivo. Na segunda parte, intitulada “O Conselho Ultramarino e os custos da defesa do Brasil” (pp. 155-286), composto por cinco capítulos, foca-se – a partir de uma perspetiva diacrónica – na gestão dos recursos (receitas e despesas) e na estrutura fiscal voltadas para a manutenção do aparato bélico, necessário para efetivar tanto a defesa quanto a manutenção da ordem na América portuguesa. Por fim, passando à parte derradeira, nomeada “O Conselho Ultramarino e o controlo político dos provimentos militares” (pp. 287-386), com três capítulos, preocupa-se – igualmente ancorado na diacronia – com os mecanismos de nomeações dos postos militares das tropas regulares e, consequentemente, com o grau de influência do referido conselho em torno dessas indicações, a priori tão importantes na constituição da cultura política da época.

O autor desenvolve o seu primeiro grande argumento ao analisar a ação do Conselho Ultramarino no decurso de três diferentes contextos de beligerância – a guerra contra os holandeses; as ameaças externas, motivadas pelas disputas interimperiais; e as ameaças internas (guerra dos Emboabas, dos Mascates e dos Bárbaros) – chegando à conclusão de que a competência decisória do tribunal se manifestou, com maior intensidade, nas crises de contorno eminentemente local. Por outras palavras, Cruz defende que enquanto nos principais fóruns de negociação internacional a intervenção do tribunal foi bastante exígua – via de regra, assumindo o protagonismo desses debates alguns dos membros do Conselho de Estado, diplomatas ou então secretários do rei – numa outra margem, a do âmbito local, a preponderância dos ministros do Ultramarino pareceu ser mais proativa.

Ao elaborar tal argumento, o autor, de maneira acertada, busca situar e dimensionar a atividade do Conselho Ultra­marino na intricada lógica de funcionamento do sistema político ­português, dos tempos do Antigo Regime. Além disso, chama a atenção para a multiplicidade de fatores que, nestas circunstâncias, impuseram limites à concretização de um possível protagonismo do órgão. Para tanto, refere desde os caminhos da política colonial dos Bragança, os desafios da administração ultramarina, as guerras, até a influência particular de alguns cortesãos mais próximos do monarca. De resto, para reforçar essa sua premissa, defende que tal ambivalência em favor dos “assuntos locais” pode ser, em boa medida, explicada pela menor concorrência empreendida pelos seus pares metropolitanos (caso dos Conselhos de Estado e da Guerra), uma vez que se faziam mais comprometidos com os “assuntos do reino”.

Não obstante, é desnecessário sublinhar que houve igual embate jurisdi­cio­nal com as instâncias coloniais, nomeadamente com as câmaras e com os governadores-gerais/vice-reis, e o autor – como é suposto pensarmos – também se mostrou ligado a esse aspecto. Todavia, adverte que os confrontos foram mais acentuados, não no que toca ao tratamento da guerra per si, mas nas questões referentes à gestão financeira/logística e ao provimento dos postos do alto oficialato militar.

Nesta discussão, o autor consolida um outro argumento importante – o da excecionalidade de dois momentos históricos para o efetivo exercício das prerrogativas do Conselho: os anos de 1670 e 1714, respetivamente. O primeiro momento, mais alvissareiro ao órgão, notabiliza-se pela nomeação do 1.º duque de Cadaval à sua presidência e pelo consecutivo ganho de autonomia e conquista de direitos, antes reservados exclusivamente ao Conselho da Fazenda. O segundo, já com nuances de declínio, estabelece-se com a indicação do marquês de Angeja para o cargo (então reinstituído) de vice-rei do Estado do Brasil, que coincide com a saída do presidente titular do Conselho Ultramarino e com a vacância desse posto – que só tornaria a ser ocupado mais de três décadas depois, em 1749 – inaugurando, desta forma, um período de fortalecimento da autoridade dos vice-reis na colónia e das secretarias de Estado na corte, em detrimento das competências do Conselho.

Consoante palavras do próprio autor, “quer a faculdade para proceder ao reforço do dispositivo defensivo americano, […] quer o controlo político de provimentos militares, parecem ter conhecido desenvolvimentos semelhantes, em consonância com os contornos favoráveis ou desfavoráveis de cada uma das fases” (p. 391). Partindo, portanto, deste pressuposto, discute uma série de temas caros não só à sua pesquisa, mas também transversais a várias outras investigações dedicadas às relações de poder no mundo luso-brasileiro do Antigo Regime, a exemplo das disputas envolvendo diferentes órgãos (reinóis ou coloniais) da monarquia corporativa portuguesa – seja pelo controlo dos recursos financeiros usados na defesa, na solução de conflitos armados e no pagamento de tropas, seja pelo comando do prestigiado imperativo do conferir patentes.

Ademais, para além de uma satisfatória sustentação documental, o estudo de Miguel Dantas da Cruz entabula, do ponto de vista historiográfico, um diálogo bem-sucedido com a história política, a história imperial e a história militar, chamando à baila a bibliografia, indiscutivelmente referencial para cada tópico trabalhado. Outro ponto digno de nota diz respeito ao que nomeia de “reflexão comparativa”, no qual submete as características postuladas para o Conselho Ultramarino à comparação com instituições similares, designadamente as existentes no império espanhol e britânico, tornando, de certeza, a investigação mais profícua e sustentada.

Quanto às escolhas analíticas e às limitações delas decorrentes, acreditamos que foram adequadamente justificadas pelo autor. Referimo-nos, em particular, à opção de não incorporar os pedidos de mercês no estudo, assim como à ênfase dispensada às consultas dirigidas às capitanias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, um tanto à revelia das demais. Na primeira situação, como sinalizado pelo próprio autor, trata-se de uma documentação que remete muito mais para a trajetória e serviços dos solicitantes do que, propriamente, para o modus operandi do Conselho. No segundo caso, consi­deramos que a centralidade das capitanias mencionadas torna viável a montagem de uma percepção que acentue uma visão de conjunto da América portuguesa, ao menos, a do Estado do Brasil.

Por fim, outra escolha bem justificada, relaciona-se com a supressão das ordenanças e auxiliares da análise de provimento dos postos do alto oficialato, uma vez que se preconizou, exclusivamente, os oficiais integrantes das tropas regulares. Com efeito, as nomeações daqueles tinham um caráter “essencialmente local”, sendo, a rigor, deliberadas no âmbito das próprias Câmaras e/ou pelos governadores de capitania, portanto, foram poucas as indicações que passaram (ou partiram) de Lisboa e, consequentemente, do Conselho Ultramarino. Essa realidade só encontraria mudanças a partir de meados do século XVIII, sobretudo no que toca às tropas auxiliares (milícias), quando estas ganharam maior importância no quadro do sistema defensivo colonial, e, nesse sentido, a confirmação das cartas ­patentes, pelo rei, passando pela consulta do referido Conselho, tornava-se uma obrigação de todos os requerentes. Contudo, é escusado dizer que tal conjuntura só estaria concretizada no período posterior ao estudado por Cruz.

No mais, Império de Conflitos configura-se em trabalho de fôlego, que clarifica, eficazmente, tanto o “papel” quanto o “lugar” desse importante órgão da administração brigantina. Assim sendo, constitui uma relevante contribuição para a historiografia ibero-americana da época moderna e, de modo ainda mais especial, para historiografia militar de viés social e institucional – nesta última, em nossa opinião, torna-se mesmo uma obra de referência.

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