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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.10 

RECENSÕES

VISCARDI, Cláudia

Unidos Perderemos: A Construção do Federalismo Republicano Brasileiro,

Curitiba, Editora CRV, 2017, 208 pp.

ISBN 9788544417799

Isabel Corrêa da Silva*

*Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa » Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa, Portugal. isabelcorreadasilva@ics.ulisboa.pt


 

As cerca de 200 páginas de Unidos Perderemos trouxeram-me à memória, além de muitas outras coisas, uma biografia de Freud que li há uns anos atrás: Le Crépuscule d'une idole, da autoria do controverso filósofo francês Michel Onfray, publicada em Portugal com o título Anti-Freud (Lisboa, Objectiva, 2012). ­Cláudia Viscardi, bem podia ter intitulado o seu livro Anti-Sales, à semelhança da tradução portuguesa daquela polémica obra, título que se adequaria com justeza ao conteúdo de Unidos Venceremos. O título da obra de Viscardi apresenta-nos, inicialmente, uma proposta cognitiva positiva, a construção do federalismo republicano brasileiro, e é por esse trilho que somos convidados a entrar no livro que acaba depois por enveredar por uma proposta cognitiva negativa: a desconstrução do mito de Campos Sales.

A produção intelectual de Cláudia Viscardi na última década não esconde o seu apetite pela provocação e pela vontade de questionar os aparentes consensos interpretativos de que a historiografia está cheia. No seu primeiro livro sobre o tema, O Teatro das Oligarquias: uma Revisão da Política do Café com Leite (publicado em 2001, com segunda reedição de 2012, Belo Horizonte, Fino Traço), Viscardi já tinha revelado particular apetência pelo espírito crítico, assim como aptidão para os meta-textos – imagina-se que a escolha do título O Teatro das Oligarquias para o livro sobre a dinâmica política das elites da República tenha sido em desafio dialogante com o Teatro de Sombras que José Murilo de Carvalho escreveu sobre as elites do Império (A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, 2.ª edição, Rio de Janeiro, Relume Dumara, 1996).

Refiro O Teatro das Oligarquias, porque este livro, bem como a obra Unidos Perderemos fazem, na verdade, parte de um projeto uno e ambicioso de revisitação da chamada “República Velha” brasileira (1889-1930), não tanto a partir de novas fontes, mas sobretudo a partir de uma nova grelha de análise. Mas tal como na saga da Guerra das Estrelas, a segunda parte da história saiu primeiro. Por isso, o presente livro de Cláudia Viscardi, Unidos Perderemos, vale por si próprio, claro, mas tem um valor adicional para quem já leu o anterior, que, no fundo, conta o fim da história.

E a história qual é? A história é, grosso modo, a do longo processo de formação e tentativa de consolidação de uma cultura, de uma elite e de uma praxis política republicana e federalista sobre um terreno de tradição liberal, ­escravocrata, centralista e monárquica. Em Unidos ­Perderemos, Viscardi conta-nos a primeira parte deste processo: desde os primeiros manifestos públicos em prol da ideia republicana, ainda na década de 70 de Oitocentos (vinte anos antes da queda do império em 1889), ao chamado período de estabilização da República, ou seja, a transição da presidência de Prudente de Moraes para a de Campos Sales, já à chegada do novo século (1898-1902).

É, na verdade, uma história já contada e recontada por muitos, como aliás se diz e demonstra na introdução. A proposta de inovação de Cláudia Viscardi reside sobretudo nas vozes escolhidas para contar esta história. A autora opta por uma combinação de duas vozes: a da aspiração e a da norma. Para escutar a primeira, seguiu a senda da análise do discurso, mais na linha de Skinner do que de Kosseleck, diga-se. Para ouvir a norma, optou por associar a esta análise linguística uma abordagem de história política mais tradicional, assente na interpretação de fontes de cariz mais quantitativo. A autora diz que com isto aspirou a fazer uma história intelectual do político. Eu diria que conseguiu mais do que isso.

No primeiro capítulo, “A República como aspiração”, põe sob a grelha analítica da história dos conceitos dois dos principais manifestos ­republicanos do tempo da propaganda, o do Rio de Janeiro, de 1870, e o do Pará, de 1886, com o objetivo de ir penetrando nas várias camadas de sentido do discurso – aqui um diálogo com os ­autores do Diccionario político y social del mundo iberoamericano: ­conceptos políticos fundamentales, 1770-1870, dirigido por Javier Fernández Sebastián (Madrid, Fundacion Carolina, 2009-2014) teria sido bem-vindo. A reconstituição do meta-texto permite não só identificar as fronteiras do pensamento, e consequentemente da linguagem, dos atores políticos como, com isso, melhor tentar perceber a consciência que tinham, ou não, do carácter demiúrgico do seu discurso. E a competência que revelaram, ou não, na articulação entre essa dimensão demiúrgica e a resposta casuística aos desafios do jogo político.

No segundo capítulo, “A República como norma”, estuda a constituição de 1891 e a sua articulação com os vários textos constitucionais dos estados federados. Através da análise destes textos, a autora visa contrariar a propalada tese de que a República não deu cumprimento ao projeto republicano da propaganda, tentando demonstrar como na passagem da aspiração à norma, a ideia republicana se consubstanciou em avanços tímidos, mas importantes, em relação ao império. Este era o objetivo do capítulo. Não obstante, os resultados parecem não ter permitido ir tão longe quanto se anunciou. Sendo este, aliás, o ponto do livro em que Viscardi, tal como o seus personagens de estudo, parece ver-se traída pelos resultados da sua investigação. Daqui resulta (como prova da probidade heurística da autora) umas “Considerações finais” cheias de precauções e um balanço das conquistas constitucionais marcado por expressões como “mesmo que modesta”, “em que pese as suas limitações”, etc.

No terceiro capítulo, “A República como experiência”, regressa à abordagem na linha da história dos conceitos para voltar a analisar os limites da moldura conceptual em que se inseriam alguns dos principais elementos que compunham, à época, a equação do governo representativo: povo, democracia, representação e cidadania. E para demonstrar como a praxis política se revelou amiúde completamente distanciada e descomprometida das boas intenções anunciadas na dimensão discursiva.

Finalmente, o quarto e quinto capítulos, “A República como ordem” e “A República como desordem”, respetivamente sobre as conceções e a praxis políticas de Campos Sales, apresentam uma reinterpretação do legado político de Campos Sales e da chamada “política dos governadores”, ou “política dos estados”. Percebe-se que este é o culminar da história, para onde as interpretações dos três capítulos anteriores confluem. Nestes últimos dois capítulos a autora põe seriamente em causa, e com fundamento empírico inovador, o mito de Campos Sales como o estabilizador do regime, dando provas que relativizam a eficácia e desacreditam a longevidade dos seus mecanismos de contenção do conflito. Há que reconhecer que nestes capítulos finais o engajamento de Viscardi com a destruição do mito ganharia, por vezes, em ser refreado. No entanto, estes são também os capítulos em que se reconhece claramente a segurança de uma autora que já escreveu O Teatro das Oligarquias. Ou seja, que sabe bem o futuro do passado que questiona.

Infligidos os golpes no mito da blindagem do modelo do “café com leite”, fica-se com a refrescante sensação de uma avenida aberta para novas reflexões sobre as idiossincrasias da experiência republicana brasileira. Mas fica-se também com alguma sensação de que soube a pouco, de que urge arriscar no desmembramento de outros mitos, explorar outros fatores explicativos, perceber melhor certas dinâmicas. De entre o muito que se poderia enunciar, evidenciaria, por exemplo, o monopólio dos militares nos primeiros anos da República e as suas mal conhecidas relações com as oligarquias republicanas que, segundo a narrativa tradicional, parecem ressuscitar do nada ao cabo de uma década de regime. Por outro lado, o conhecimento da genealogia intelectual e política destes oligarcas poderia ser também de grande auxílio para a compreensão das suas estratégias e dilemas políticos. Sobretudo na procura das suas raízes de relacionamento com o poder central durante o Império, tentando com isso também perceber como se posicionam face à herança descentralista do liberalismo monárquico que durante meio século desenvolveram oposição às prorrogativas e ao centralismo do imperador – um diálogo de Viscardi com Christian Lynch (Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro (1822-1930). São Paulo, Alameda, 2014) e com Miriam Dolnikoff (O Pacto Imperial: Origens do Federalismo no Brasil, São Paulo, Globo, 2005) poderia ser a este respeito muito frutuoso.

Entender os fundamentos, a lógica de funcionamento político e as causas de decadência de uma república absolutamente serôdia para o seu contexto regional e relativamente precoce para o seu contexto político intelectual exige pensar fora das esquadrias já desenhadas. Como qualquer bom livro deve fazer, o livro de Cláudia Viscardi dá-nos muitas respostas, mas sobretudo amplia os limites da nossa imaginação para muitas perguntas. O que, como todos sabemos, é o gatilho essencial para se escrever História.

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