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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.09 

RECENSÕES

MATOS, José Nuno, BAPTISTA, Carla e SUBTIL, Filipa (orgs.)

A Crise do Jornalismo em Portugal,

Porto, Deriva, 2017, 187 pp.

ISBN 9789898701268

João Pissarra Esteves*

*Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal. jj.esteves@fcsh.unl.pt


 

A crise do jornalismo será, muito provavelmente, o tema mais recorrente dos estudos jornalísticos, desde sempre. Nada, porém, tão incomum assim, se tivermos presente a epistemologia das próprias ciências sociais, também ela profundamente marcada por uma ideia de crise associada ao seu objeto de estudo mais global. Um tema, pois, de certo modo inesgotável, que esta obra vem revisitar e a que junta um motivo mais especial de novidade: a situação do jornalismo em Portugal.

Além dos três organizadores da publicação, lançaram mão a esta tarefa um conjunto de 20 autores – José Nuno Matos, Carla Baptista e Filipa Subtil assumem a dupla condição. Do conjunto de 17 ensaios, alguns deles (sem identificação) já antes publicados na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, ressalta um marcado perfil académico – inclusive naqueles poucos textos com uma origem exterior à academia ou a centros de pesquisa. Mas é evidente, ao mesmo tempo, o propósito de conjugar um ponto de vista mais académico sobre a crise do jornalismo no nosso país com um certo olhar dos próprios profissionais; objetivo bem-sucedido, se tivermos em conta a homogeneidade conseguida destes dois registos. O mesmo já não se poderá afirmar quanto à tipologia dos textos, os quais se desdobram desde o formato mais ou menos convencional de artigo científico (alguns deles tendo mesmo sido produzidos no âmbito, ou na sequência, de projetos de investigação de maior fôlego), até textos de carácter mais ensaístico e breves (alguns deles mesmo brevíssimos).

A ideia de crise, como não podia deixar de ser, é o polo aglutinador, embora o seu poder de atração não seja homogéneo: em alguns textos, a crise tem uma presença mais difusa – ou então, podemos afirmar, ela é assumida num sentido muito abrangente (tanto numa perspetiva estrutural, como noutra mais conjuntural, por vezes com um sentido profundo, outras mais pontual, cingindo-se a aspetos específicos da profissão). Talvez esta relativa indefinição seja consequência de uma perspetiva crítica sobre a profissão, também ela, um tanto difusa. Foi cuidado dos organizadores da obra elegerem dois grandes eixos para articulação do seu ponto de vista crítico: jornalismo e democracia, jornalismo e economia. Embora este quadro de análise possa ser, sem dúvida, promissor, como comprovam os artigos mais robustos do conjunto, o mesmo acabou por ser explorado um tanto limitadamente, ficando por responder algumas questões prévias essenciais: de que democracia mais precisamente aqui se fala, que tipo de antagonismo é antevisto na relação jornalismo-economia? Numa obra com a diversidade de participações desta e a heterogeneidade dos trabalhos reunidos, talvez uma certa indefinição como a referida, mais do que um demérito, possa ser considerada como uma adequada estratégia para não quebrar uma certa unidade mínima do conjunto.

A obra está organizada em quatro secções, cada uma delas dando a ver uma certa dimensão da crise do jornalismo nos dias de hoje, embora nem sempre seja perfeitamente clara a delimitação mais precisa de cada uma dessas secções; neste sentido, poderia ter ajudado uma breve introdução explicativa em cada uma delas, ou então, de forma mais simples, uma breve nota justificativa na introdução geral da obra. A coerência da escolha das secções também não é imediatamente evidente, desde logo por nelas se combinarem dimensões de crise do jornalismo mais atuais com outras não tão atuais – estas no sentido, talvez, de serem dimensões mais intemporais (às quais, no entanto, é sempre possível juntar determinados aspetos de uma maior atualidade). As secções sobre Territórios e Fronteiras e sobre o Trabalho (Precariedade e Desprofissionalização) delimitam as primeiras; as segundas estão representadas pelas secções dedicadas à Manipulação (e Hegemonia) e às questões de Género.

Sobrepondo-se a todas as condições de heterogeneidade referidas, em cada uma das secções foi possível garantir a presença do que se poderá designar como um texto-âncora; estes, no seu conjunto, ajudam a delimitar mais ­claramente as diferentes dimensões da crise em análise e apresentam as linhas essenciais de pesquisa correspondentes. Pelo menos neste núcleo mais restrito de textos, o olhar sobre a realidade nacional não dispensa um enquadramento de análise mais robusto a partir de referências de pesquisa (teóricas e metodológicas) internacionais, indiscutíveis e perfeitamente atualizadas.

Na primeira secção, o texto que melhor assume essa função de ancoragem da crise do jornalismo numa perspetiva da Manipulação e Hegemonia (a partir da construção da agenda e da produção dos discursos noticiosos) é assinado por Carla Batista, uma das organizadoras da obra, e tem por tema de análise o jornalismo cultural. A saliência deste trabalho na secção é ainda mais notável por se afirmar face a outros assuntos tão mais palpitantes, como sejam, a formação do atual governo de esquerda (num breve ensaio sobre comentarismo político, de Pedro Cerejo); a crise financeira e a intervenção da Troika em Portugal (José Rebelo, que discorre sobre como os media, na situação em causa, puderam revelar-se ainda assim como um lugar de confrontação; José Castro Caldas e João Ramos de Almeida que, a partir de um trabalho de campo de maior fôlego, nos oferecem uma leitura gramsciana sobre o jornalismo económico produzido nos media nacionais entre 2010 e 2014); e ainda o terrorismo internacional (João Goulão, numa diatribe aguerrida sobre os inventores da retórica da chamada “­teoria da conspiração”, e Jacinto ­Godinho que, a partir da figura do ­amoque, ilustra a posição paradoxal em que os media, como “demolidora máquina do espetáculo”, se colocam, ao tornarem-se “o oxigénio dos terroristas”). Carla Batista, por seu lado, parte à descoberta das práticas de manipulação e da hegemonia ideológica presentes numa matéria dos media, à primeira vista muito mais inocente: as notícias de cultura – são apresentadas as grandes linhas de conclusão de um projeto de pesquisa que teve por motivo de análise os principais jornais nacionais, na primeira década deste século. A este nível, a presença de tais práticas revelou-se esmagadora: elas são o rosto de uma crise que atinge de modo sub-reptício, mas profunda e muito contundente, o jornalismo no presente, sendo a sua forma um jornalismo sobre cultura que não apenas se encontra em retração (no espaço global disponível para as suas matérias, suplementos específicos, número de colaboradores e críticos, variedade temática), mas mais importante ainda, sofreu uma profunda desfiguração (cultural, propriamente dita, e política). É um jornalismo consensual e festivo aquele que, agora, se vem impondo no espaço sobrante (reduzido) das matérias culturais, por via de “um novo tipo de cobertura jornalística, despolitizada e focada numa ideia de cultura ligada ao entretenimento e ao consumo” (p. 79).

O destaque da outra secção mais transtemporal sobre a crise, dedicada a questões de (desigualdades de) Género, cabe ao texto assinado por outra das organizadoras do livro, Filipa Subtil, em coautoria com Maria João ­Silveirinha. Nele é analisada a feminização do jornalismo em Portugal, a partir de finais dos anos 60 do passado século, no contexto da chamada “sociedade de informação” e da grande expansão dos media (e informação jornalística); no enquadramento nacional deste fenómeno ressaltam como elementos mais específicos: o regime democrático e, na sua sequência, a chegada em larga escala das mulheres ao mundo laboral e ao sistema educacional. A presença de mulheres nas redações regista um crescimento consistente (dos cerca de 20% em 1987, até à ultrapassagem do dobro deste valor relativo, segundo os dados mais recentes recolhidos), ao mesmo tempo, porém, que persistem as práticas da sua segregação neste contexto laboral: ao nível de salários, de distribuição de tarefas, de acesso a posições de chefia, de desprofissionalização – esta já no âmbito da mais recente ecologia mediática. Concluem as autoras que este retrato final da condição das mulheres no jornalismo não difere, assim, no essencial, da situação mais geral das mulheres na sociedade portuguesa: um quadro de direitos consagrados razoavelmente “generoso”, em condições, porém, que continuam a ser muito pouco generosas no que diz respeito a um exercício mais pleno das capacidades das mulheres. A composição final desta secção conta, ainda, com um trabalho de Carla Martins que, à retoma (mais abreviada) de algumas das matérias anteriormente referidas, junta uma outra importante vertente de análise, relacionada com a representação das mulheres nas notícias (sobre a sua invisibilidade ou uma ­visibilidade distorcida); e outro que marca a reincidência de Carla Batista na publicação, agora num brevíssimo ensaio sobre o programa televisivo Barca do Inferno, para ilustrar o enraizamento profundo (até nas próprias mulheres) de certos mecanismos de discriminação de género.

Nas secções com maior foco sobre a contemporaneidade mais próxima, em que se procura refletir sobre uma crise do jornalismo diretamente relacionada com alterações recentes da profissão (ou das suas condições de exercício), o artigo de Joaquim Fidalgo marca o tom da discussão sobre Territórios e Fronteiras do jornalismo, no qual o autor analisa três pontos críticos de dissolução dessas mesmas fronteiras no presente: os cidadãos como jornalistas, a contaminação do jornalismo pelo entretenimento e o humor, e a hibridação do jornalismo com as linguagens profissionais de persuasão. O boundary work, ilustrado por categorias da moda da profissão (produsers, infotainment, advertorials – só para citar alguns exemplos), é aqui considerado, não tanto como a origem de uma nova crise do jornalismo, mas como o revelador de uma crise cuja origem é anterior: a crise de um jornalismo em perda das suas funções sociais, ou em rota de divergência com as expetativas sociais que sobre ele recaem. Os tópicos referidos de subversão das fronteiras do jornalismo não interpelam todos da mesma forma, mas da resposta a todos eles dependerá, em certa medida, o futuro do jornalismo; e mais precisamente, um jornalismo profissional com futuro, que seja capaz de afirmar para si mesmo uma referência normativamente relevante em termos sociais: enquanto “lugar específico, diferenciador, autónomo (…) nesta nova paisagem mediática onde proliferam os meios, as mensagens e os mensageiros das mais variadas proveniências e com os mais variados interesses” (p. 114). Uma certa ausência da realidade nacional neste texto é compensada nos outros dois trabalhos da secção: Vasco Ribeiro discute o relacionamento jornalismo/relações públicas (num registo mais de testemunho pessoal – de um profissional da área de assessoria – mas sem chegar a definir com nitidez qualquer ideia de crise do jornalismo); e Frederico Pinheiro aventura-se na formulação do que o próprio apelida um “modelo explicativo das notícias” (empreendimento ambicioso, com o apoio de um inquérito conduzido junto de 130 jornalistas e deputados, que não lhe permite, no entanto, ir muito além daquilo que o próprio autor reconhece ser “uma proposta [ainda] aberta à discussão e a futuros estudos de confirmação” (p. 94) ).

A secção dedicada ao Trabalho é a mais concorrida, com cinco textos, sendo tónica comum a todos eles uma visão da crise do jornalismo, segundo a perspetiva da precariedade e da desprofissionalização. Liliana Pacheco expõe resultados de um projeto FCT, realizado entre 2010 e 2013 – já a requerer atualização, tendo em conta a velocidade a que a mó da crise do setor tem vindo a rodar; José Nuno Matos deixa-nos o relato de um episódio concreto (envolvendo o Grupo Newshold) da vaga de precarização que atinge hoje os media; Sandra Monteiro apresenta uma espécie de manifesto programático de “defesa do jornalismo crítico e dos projetos que sustentam a sua independência” (p. 187), também em jeito de justificação do envolvimento do Le Monde Diplomatique – edição portuguesa (de que a autora é diretora) neste empreendimento editorial. O trabalho-âncora é assinado por José Luís Garcia e Sara Meireles, com um artigo académico robusto, sem orientação específica, no entanto, para a realidade nacional (para além – e já não será pouco – das remissões a alguns trabalhos anteriores de ambos os autores). Trata-se de uma problematização da condição de jornalista (“epistemologia fundacional do jornalismo”), no quadro da nova ecologia dos media, sendo esta marcada pela lógica da infomediação (grandes distribuidores de conteúdo da Internet), que os autores caracterizam não como uma “democracia de distribuição”, mas como “um aumento da concentração do poder distributivo nas mãos de um grupo seletivo de plataformas, que operam segundo lógicas próprias” (p.165). Neste quadro, Garcia e Meireles dão-se conta de uma alteração do ethos jornalístico, sem deixarem, porém, de registar o significado propriamente de crise que lhe está associado: na forma de uma contradição entre economia mercantil e comunicação. “Se o jornalismo, tal como surgiu nas sociedades modernas industriais sempre procurou fazer parte da comunicação e orientar-se para a vida cívica” (p. 168), haverá um preço agora a pagar com esta sua “refundação” no novo capitalismo mediático – em primeiro lugar pelos profissionais, mas mais tarde ou mais cedo, também, pela própria sociedade (democrática) como um todo.

Para final, um apontamento sobre o trabalho de Carlos Camponez: uma audível (e muito saudada) nota dissonante no conjunto da obra, como única reflexão sobre a crise do jornalismo a partir de um olhar mais focado no interior da própria profissão (e nos seus profissionais). Este é, aliás, um ponto de vista quase sempre esquecido da agenda das discussões (mesmo as académicas) sobre a crise do jornalismo; da mesma forma que uma perscrutação da crise a nível académico e científico, ou seja, naquilo que envolve o ensino e a própria pesquisa sobre jornalismo – um desafio, em forma de apelo, que aqui fica para alguma próxima revisitação do tema.

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