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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.06 

ARTIGOS

Lugares ultramarinos. A construção do aparelho judicial no ultramar português da época moderna

Overseas jurisdictions. The construction of the early modern Portuguese overseas judicial apparatus

Nuno Camarinhas*

*CEDIS, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa » Campus de Campolide — 1099-032 Lisboa, Portugal. nunocamarinhas@gmail.com


 

RESUMO

Lugares ultramarinos. A construção do aparelho judicial no ultramar português da época moderna. Este texto analisa a construção de um aparelho de administração judicial a uma escala pluricontinental. Debruçando-se sobre a rede de lugares de nomeação régia, onde se exercia uma justiça letrada, procura questionar as suas características fundamentais, sublinhando a sua matriz europeia, a adaptação desta às circunstâncias locais, e o pano de fundo de pluralismo político e jurídico que marca a diferente intensidade da sua implantação. O texto estabelece uma cronologia e um mapeamento da expansão e crescimento deste aparelho, ao mesmo tempo que analisa os fatores de criação de novos lugares e que questiona o seu aparente monolitismo.

Palavras-chave: administração da justiça; juízes; administração colonial; redes de circulação.


 

ABSTRACT

Overseas jurisdictions. The construction of the early modern Portuguese overseas judicial apparatus. This paper analyses the construction of a judicial apparatus at a pluri-continental scale. Focusing on the network of crown-appointed jurisdictions of royal law, the analysis questions its fundamental characteristics, stressing its European matrix and its adaptation to local circumstances, in a background of political and legal pluralism that explains the different range and intensity of its implementation. The text sets out a timeline and maps the expansion and growth of this apparatus at the same time as it analyses the creation of new jurisdictions and questions its apparent monolithic character.

Keywords: justice administration; judges; colonial administration; circulation networks.


 

O espaço atlântico conheceu, na época moderna, diferentes experiências imperiais que puseram em prática, nos seus territórios ultramarinos, modelos administrativos próprios, em grande medida caracterizados por uma transposição e adaptação de modelos institucionais europeus. O impulso recente que foi dado pela chamada Atlantic history ajudou a ampliar o âmbito de análise a escalas geográficas mais amplas e, nesse movimento, a estimular os diálogos comparativos entre análises dessas diferentes experiências. A Atlantic history, contudo, tem tido um centro anglófono (Bailyn, Denault, 2009; Green e ­Morgan, 2009) que, apesar de contactos válidos com a realidade ibérica (Elliot, 2006), deixa pensar que algo se perdeu no por vezes difícil acesso à historiografia desenvolvida noutras línguas (Hespanha, 2014).

Em ambas as realidades ibéricas, o padrão governativo assentava grandemente em princípios judiciais. Hespanha (1994) e Clavero (1986) seguidos pela reflexão que os seus estudos estimulam, mostraram-nos como “governar”, na época moderna, era sinónimo de “fazer justiça”, estabelecer o direito, restituir a ordem. O papel dos juristas na arquitetura dos poderes de Antigo Regime tem sido amplamente sublinhado pela historiografia que, a partir da década de 1980, se seguiu aos trabalhos pioneiros da “nova história política” (Schaub, 1994) inaugurada por aqueles historiadores da época moderna ibérica.

Mais recentemente, um desenvolvimento das suas propostas teve lugar entre os estudiosos da realidade colonial ibérica. Se para a América espanhola esse impulso ocorreu em torno dos estudos sobre o direito indiano (Dougnac 1994; Barrientos Grandón, 2000) e a venalidade dos ofícios (Andújar Castillo, 2008 e Burgos Lejonagoitia, 2015), para a América portuguesa, ele produziu uma renovada leva de trabalhos em torno das jurisdições brasileiras e das suas relações com as estruturas administrativas locais.

O trabalho seminal, e impulsionador de uma nova geração de historiadores, de Fragoso, Bicalho e Gouvêa (2001), lançou a tónica sobre as lógicas de Antigo Regime que presidiram à construção da burocracia no “Brasil colónia”. Já antes, o trabalho de Schwartz (1979) sobre o tribunal da Relação da Bahia lançara sementes para este movimento, colocando aquela instituição e os seus magistrados no centro de decisão daquele território ultramarino.

Graças a este acumulado de propostas e reflexões, é possível pensar a administração da justiça em contexto colonial sob um olhar renovado e expurgado de conceções anacrónicas e descontextualizadas que têm ferido o debate em torno destas questões. Alguns passos importantes têm sido dados no sentido de se alargar essa visão a outras facetas da administração, para além do mundo jurídico. Os projetos de Cunha, Monteiro e Cardim (2005) e de Stumpf e ­Chaturvedula (2012), por exemplo, são dois dos primeiros grandes esforços nesse sentido que tem sido seguido por outros projetos cujos resultados serão publicados brevemente[1] O diálogo e a perspetiva comparada entre as monarquias ibéricas e as suas experiências materiais tem dado já alguns frutos (­Cardim e Palos 2012; Cardim, Herzog, Ruiz Ibañez e Sabatini, 2012).

Alguns aspetos são partilhados por este novo fôlego, em parte relacionados com a sua perspetiva geográfica alargada. Desde logo, uma atenção novamente dirigida aos espaços territoriais, às geografias, ao que Costa (2016) chama “spacing history” e a atenção que tal movimento, quando aplicado aos fenómenos imperiais, deve dar à interseção entre poder, espaço, conhecimento geográfico e teoria política e jurídica, especialmente relevantes quando se estuda o “espaço da colonização” como “produção de lugares” (ibidem, p. 44), à luz de conceitos como o de “territorialidade” (Sack, 1983).

Relacionado com esta abordagem, está um aprofundamento do paradigma do sistema de redes, que constituía as experiências imperiais ibérica e, em especial, portuguesa. Essa natureza já tinha sido identificada pela historiografia no que diz respeito às redes mercantis em que assentou a expansão portuguesa (Godinho, 1981-1983; Boxer, 1969). As abordagens mais recentes mostram a importância da constituição de outros tipos de redes na estrutura própria destas entidades políticas pluricontinentais (Fragoso e ­Gouvêa, 2010; Camarinhas, 2013, entre outros[2].

Neste texto, procuraremos, partindo do caminho desbravado por estas propostas, analisar como se processou a evolução das estruturas de administração da justiça letrada que a coroa portuguesa foi criando nos seus territórios ultramarinos, contribuindo, por um lado, para o seu mapeamento e para a sua evolução cronológica, e, por outro, para a compreensão das lógicas por trás dessa ação.

Em Portugal verifica-se uma burocratização precoce do aparelho de governação da coroa. Desde meados do século XVI existe um mundo de funcionários com critérios endógenos de promoção – o “mérito”, embora numa aceção fortemente corporativa e autorreferencial – que permitia o estabelecimento de laços profissionais e pessoais sobre os quais se constituiu uma esfera de comunicação (jurídica, política e administrativa) forte, eficiente e espacialmente estendida (Camarinhas, 2010).

A precocidade da burocratização cria uma originalidade da expansão portuguesa, sem paralelo noutras experiências imperiais europeias: a da construção, ao longo da época moderna, de um aparelho pluri-continental no interior do qual se verifica uma intensa circulação de agentes. Os outros impérios europeus conhecem outro tipo de realidade, com a venda de ofícios e uma maior fixação dos agentes nos seus locais de serviço, a título vitalício. A especificidade portuguesa está relacionada com a importância da justiça letrada, como grupo menos patrimonializado do oficialiato, culturalmente muito homogéneo e forçado a circular, construindo uma rede à escala global. Para além dos agentes, viajam também livros e papéis (processos e memoriais), que também contribuem para o estabelecimento desta rede que, neste sentido, é também uma rede de comunicação.

Outra característica da administração colonial portuguesa é o facto de formar um contínuo com a administração metropolitana, i. e., os agentes que vão servir nas colónias intercalam ofícios no ultramar com ofícios no reino (Camarinhas, 2014). Neste texto, vamos centrar-nos no processo de construção desta estrutura de administração.

O aparelho de administração da justiça da coroa portuguesa, em funcionamento durante a época moderna, tem as suas origens na baixa Idade Média, com a criação dos primeiros ofícios letrados, enviados pela corte aos concelhos, para combater a criminalidade extraordinária ou para pôr cobro a questões locais necessitadas de instâncias externas. Terá sido com esse fim que os cargos de corregedor da comarca e de juiz de fora foram criados.

O período moderno, sobretudo a partir das reformas introduzidas por Filipe II (I de Portugal, 1581-1598), conhece uma transformação e complexificação desse aparelho. As primeiras marcas de modernidade são anteriores à dinastia filipina, e traduzem-se numa crescente fixação dos agentes de justiça nos lugares onde exerciam a sua jurisdição, na nomeação continuada de juízes para as respetivas judicaturas e na criação de tribunais de segunda instância na corte. Mas é no início do período de unificação das coroas ibéricas que o aparelho judicial, tal como vai vigorar ao longo da época moderna, é delineado.

A intenção reformadora é visível desde os primeiros momentos do governo filipino, logo em 1582, com a Lei da Reformaçam da Justiça.[3] Resultado do trabalho requisitado a uma comissão criada pelo novo rei,[4] a lei inscreve-se num processo anterior de atenção à administração da justiça,[5] e precede a publicação das novas Ordenações do reino (terminadas em 1595 e publicadas em 1603). Nessa primeira lei, na realidade um conjunto de leis, são abordadas as principais instituições de administração da justiça e os respetivos agentes, clarificando procedimentos, exigindo maior eficiência, ao mesmo tempo que se buscava reforçar a sua autoridade enquanto não estivesse completa a nova orgânica judicial. É um texto visivelmente influenciado pelas queixas e pedidos dos povos que foram sendo apresentados sucessivamente em Cortes, e a que o novo rei desejou atender. É nesse sentido que vai, claramente, a criação do tribunal da Relação do Porto, ou Casa do Cível, um tribunal régio de recurso para o Norte do reino, que antes estava associado à Casa da Suplicação, por forma a tornar a justiça de segunda instância mais próxima da população. Parece ser essa, igualmente, a intenção das posturas que procuram elevar a qualidade dos agentes de justiça (passagem dos ofícios de corregedores do cível e do crime de Lisboa, que anteriormente eram perpétuos, para nomeações temporárias, por triénios, à semelhança dos corregedores das comarcas, com tomada de residência no final desse período; preocupação com a honestidade dos provedores e juízes de fora; esforço para agilizar o julgamento das causas e aliviar os tribunais da pequena litigância; fixação de prazos para resolução de recursos sobre questões formais; fiscalização, pelos juízes letrados competentes, das posturas de direito local dos concelhos para garantir que não vão contra os direitos dos povos).

As Ordenações Filipinas, um texto legislativo com outro fôlego, irão mais longe na definição da estrutura institucional de administração da justiça que prevalecerá ao longo do Antigo Regime português, não apenas para o território europeu, mas, mais extensivamente, para a generalidade dos domínios ultramarinos.

 

 

O aparelho da justiça oficial da época moderna que será levado para os territórios ultramarinos sob administração portuguesa tem uma raiz marcadamente europeia. Na realidade, podemos falar de uma transposição de um modelo europeu com uma adaptação às realidades locais do ultramar português. Mas há que matizar esta afirmação, na medida da natureza extremamente heteróclita dos domínios ultramarinos portugueses. Estendendo-se por três continentes e com uma configuração muito mais próxima de uma rede do que do domínio territorial extensivo, os diferentes pontos onde a autoridade régia da coroa de Portugal prevaleceu conhecem naturezas jurisdicionais bastante distintas. A própria forma de fixação variava muito, consoante as circunstâncias locais, a capacidade de fixação, a relevância estratégica ou a facilidade logística.

O resultado, quando observado no seu conjunto, é o de um mosaico multifacetado de modelos administrativos e de formas de domínio (­Hespanha, 2002), que ia desde os mais tradicionais municípios e capitanias-donatarias, até às fortalezas, feitorias, protetorados, tratados de paz e vassalagem (­Hespanha, 2001, Hespanha, 2012, pp. 280-282). A cada uma desta tipologias ­correspondiam formas diferentes de jurisdição. Podemos falar de transposição de um modelo europeu de administração de justiça quando nos referirmos especificamente aos territórios onde as tipologias de domínio corresponderam aos municípios e às capitanias-donatarias. Apenas aí foi estabelecido localmente um aparelho judicial letrado reconhecível no existente no reino. Por outras palavras, referimo-nos aos arquipélagos atlânticos, ao Brasil, a alguns pontos da África Ocidental e Oriental e a Goa. No nível superior, de segunda instância, os distritos jurisdicionais eram mais alargados, cobrindo extensões territoriais mais vastas. Nos restantes territórios, sob diferentes tipologias de domínio, a justiça administrada era de natureza não-letrada ou não exercida por juízes letrados, muitas vezes por entidades militares, eclesiásticas ou mesmo mercantis. No entanto, mesmo nos territórios onde o aparelho judicial letrado se estabeleceu, e à semelhança, de resto, do que se passava no reino, coexistiam territórios sob jurisdição letrada com territórios sob jurisdição não-letrada.

Os primeiros territórios ultramarinos para onde foram enviados ministros letrados terão sido os arquipélagos atlânticos. Para os Açores, o primeiro juiz letrado enviado pelo rei parece ter sido Afonso de Matos, provavelmente ainda como ouvidor, em 1495 (Gregório, 2005). Para a Madeira, o registo mais antigo que encontrámos refere o exercício de funções de juiz de fora pelo bacharel Rui Pires em 1507.[6] Cabo Verde receberia corregedores desde a década de 1510.[7] De forma pontual, dir-se-ia que o movimento de transposição da administração da justiça por agentes da coroa para territórios ultramarinos vai acompanhando o movimento do descobrimento de novos territórios desabitados e consequente povoamento.

Poucas décadas depois do início do povoamento dos Açores e da Madeira, as donatarias dos arquipélagos recebem os primeiros juízes em correição. Como se tratava de territórios doados à Ordem de Cristo, no primeiro envio, o de Afonso de Matos para os Açores, ainda será sob a designação de ouvidor (Gregório, 2005). Com a subida ao trono de D. Manuel, governador da Ordem de Cristo, extinguem-se as donatarias dos arquipélagos e os seus territórios são integrados na coroa. Consequentemente, estes magistrados passam a ser designados por “corregedor”.

As suas funções iniciais são em grande medida muito semelhantes às dos seus congéneres do reino e prendem-se com intervenções pontuais, de fora, com o intuito de restabelecer a ordem jurídica das localidades, nomeadamente pelo combate aos abusos de poder das instâncias inferiores – neste período, e neste contexto, geralmente jurisdições ordinárias, não-letradas. Estas nomeações não têm, inicialmente, carácter regular e não se inscrevem numa estrutura administrativa bem balizada, até pela ausência de um verdadeiro aparelho judicial no terreno.

Nas donatarias dos arquipélagos atlânticos, a coroa conferia uma série de privilégios de carácter económico, judicial e fiscal ao donatário, reservando para si um conjunto de direitos inalienáveis relacionados com a própria natureza do poder real (assuntos de guerra e paz, jurisdição sobre crimes mais graves, cunhagem de moeda). Desta forma, cabia aos donatários administrar a justiça nos seus territórios, ficando reservada aos juízes letrados enviados pela coroa funções essencialmente de fiscalização e controlo. Quando existiam concelhos, como era o caso dos arquipélagos atlânticos, a justiça era administrada pelas justiças concelhias, dando recurso para os ouvidores do donatário, ou para os corregedores reais, conforme o tipo de recurso, segundo as regras gerais das Ordenações.

Uma segunda etapa no alargamento da justiça letrada aos territórios ultramarinos terá lugar, quase simultaneamente, no Estado da Índia e no Brasil, com a figura das ouvidorias-gerais, criadas na década de 1540. No caso do Estado da Índia, tratava-se de um projeto mais ambicioso e que procurava ir além da simples criação de um lugar, de certa forma pessoal. A intenção era a de criar um tribunal de relação, o primeiro fora do reino, e numa altura em que os tribunais de segunda instância se encontravam ainda concentrados em Lisboa, com uma estrutura de configuração pronunciadamente medieval.[8]

A primeira configuração do tribunal de Relação para Goa girava em torno da figura de um Ouvidor-Geral, auxiliado por dois letrados e pelo chanceler. O seu carácter é igualmente medieval, assentando na mobilidade do ouvidor-geral. À semelhança da Casa do Cível dos séculos XV e XVI, que julgava as causas apresentadas no local onde o rei residisse, assim o ouvidor-geral faria com as causas “do lugar onde estiver”.[9] O ouvidor-geral concentrava as funções que, na metrópole, pertenciam aos corregedores do crime, aos corregedores do cível e aos juízes dos feitos da coroa. Julgava em última instância as causas até ao valor de 10$000; para as causas de valor superior, julgava em acordo com os dois letrados, sem apelo. O apelo para a Casa da Suplicação estava previsto para questões processuais, antes que uma sentença tivesse sido pronunciada. O império português do Oriente era governado por um vice-rei cujas ­competências eram uma delegação do rei. Entre essas competências estava a jurisdição e a questão da possibilidade de apelar aos tribunais do reino das decisões da justiça do vice-rei foi muitas vezes controversa. O rei podia interferir nas decisões do vice-rei, mas a concessão desta faculdade aos súbditos do império do Oriente podia pôr em causa a autoridade do vice-rei (Hespanha, 2001). O ouvidor-geral de Goa julgava os casos ocorridos nos diferentes territórios do Estado português da Índia logo desde este primeiro regimento; no entanto, neste primeiro momento, esse julgamento dependia das deslocações do ouvidor às diversas partes sob domínio português. A configuração aqui descrita estaria vigente até ao novo regimento da Relação, em 1581.

Ao Brasil, o primeiro juiz letrado enviado pela coroa chegou em 1549, com o estabelecimento do governo-geral de Tomé de Sousa no mesmo ano. Como para o Estado da Índia, a coroa designou um ouvidor-geral para administrar a justiça ao mais alto grau. Não conhecemos o regimento que acompanhou Pero Borges, o primeiro ouvidor-geral. O primeiro de que se tem conhecimento é o de 1628, que acompanhou Paulo Leitão de Abreu (Silva, 1854-1859). ­Francisco Adolfo de Varnhagen supõe que, “com pequenas diferenças nos dezoito primeiros artigos e omissão dos cinco últimos”, seriam análogos (Varnhagen, 1877). Entre o regimento de Pero Borges e aquele de que dispomos, decorreram quase 80 anos, uma tentativa falhada de estabelecer um tribunal de Relação na Bahia (1588), o seu estabelecimento (1609) e a sua abolição (1626). O envio de Leitão de Abreu visa, precisamente, substituir a Relação, num momento particularmente complexo de guerra com os holandeses e conflito entre o tribunal, a Igreja e os produtores das outras regiões do Brasil. Se, por outro lado, tivermos presentes como a experiência indiana vai influenciar o estabelecimento de órgãos de administração de justiça no Brasil (o regimento da Relação da Bahia de 1609 é o exemplo mais claro), somos levados a acreditar que o regimento de Pero Borges poderia ser mais parecido com o que foi redigido para o Estado da Índia do que com o de 1628.

Ficam dúvidas quanto à sua jurisdição e alçada, por exemplo, e se existe alguma vontade de, em torno da figura do ouvidor-geral, se criar o embrião do que virá a ser um tribunal de Relação, como no Estado da Índia. Os poderes dados ao ouvidor-geral do Brasil em 1628 são muito superiores àqueles atribuídos ao do Estado da Índia, em 1544. Mas como também são bastante mais alargados do que aqueles previstos no Regimento da Relação da Bahia em 1609, não cremos numa analogia imediata com o regimento inicial de Pero Borges. Tendo em conta todas estas reservas, inclinamo-nos a supor que a primeira vigência de um ouvidor-geral no Brasil terá sido mais próxima da que se estabeleceu em Goa: um magistrado letrado, itinerante, trabalhando próximo do governador-geral, com funções essencialmente de controlo e fiscalização das instâncias inferiores, podendo conhecer as causas dos lugares onde estiver, com alçadas específicas, quer para as causas cíveis, que poderiam ser apeladas ou agravadas para a Casa da Suplicação, quer para as crimes. Teria igualmente competência para conhecer dos feitos da fazenda da coroa. Não sabemos se já disporia, como virá a suceder em 1628, de alçada até à pena de morte, inclusive, tanto para escravos, gentios, peões como para cristãos e homens livres. Igualmente desconhecemos se teria as competências seiscentistas de fiscalização dos capitães das capitanias e do governo das câmaras municipais. De qualquer forma, a imagem que se torna clara é a de que estes ouvidores-gerais acumulavam em si as competências de diferentes oficiais da justiça da coroa no reino, com exercício, quer no âmbito de tribunais de segunda instância, quer no âmbito de jurisdições territoriais mais restritas.

Nesta primeira fase, quando o tecido administrativo local ainda está delegado nas autoridades donatárias na sua quase totalidade, estes ministros letrados teriam uma intervenção muito pontual, na tentativa de resolução dos casos mais graves de desvio às normas vigentes.

Presente já em três pontos distintos do globo (ilhas atlânticas, Estado da Índia e litoral brasileiro), o aparelho judicial ultramarino que o início do século XVIII conhece é, contudo, muito disperso, pouco estabelecido localmente, com uma atividade episódica e distante. Se para inúmeros espaços sob domínio português as coisas pouco mudarão com o novo século, em virtude de se tratarem de pontos onde a presença da coroa era residual, para outros, o período filipino, primeiro, e a ascensão ao trono da dinastia de Bragança, depois, serão um momento de viragem para a implementação de um tecido administrativo mais apertado ou, pelo menos, mais presente ao nível local e regional, logo, estabelecido em mais lugares. Como já aludimos brevemente, com a dinastia dos Áustrias é introduzido um conjunto de reformas no aparelho judicial português, no sentido, por um lado, de dar resposta aos anseios continuadamente apresentados em cortes por largos sectores da população do reino, e, por outro, de aumentar a eficiência e a racionalidade da administração da justiça. Essa intenção verifica-se, desde logo, no reino, onde é criada a Relação do Porto e reformada a Casa da Suplicação. No Estado da Índia, a Relação de Goa recebe novo regimento em 1581, e, no Brasil cria-se uma Relação na Bahia (1609). Na transição da primeira para a segunda década do século, alarga-se a presença de juízes letrados a mais dois pontos da costa ocidental africana: Angola, que passa a ter um ouvidor a partir de 1609, e São Tomé, igualmente com um ouvidor no ano seguinte, com novo regimento em 1613.

Estes ouvidores africanos tinham uma jurisdição semelhante à dos corregedores das comarcas do reino, mas dispunham de uma alçada excecionalmente superior: 20$000 réis para os bens móveis e 16$000 para os bens imóveis. A sua capacidade de aplicar sanções aos escravos e aos peões abrangia as penas de degredo até quatro anos. Para a restante população, julgavam em apelo para a Casa da Suplicação. Tinham a última instância sobre os feitos cíveis e sobre os feitos crimes inferiores aos montantes referidos. Em todos os outros, os processos davam apelação para a Casa da Suplicação. O mesmo sucedia com as objeções levantadas a matérias processuais, que eram agravadas para o tribunal lisboeta. Conheciam também as apelações e agravos vindos dos juízes ordinários da sua jurisdição e podiam mesmo encarregar-se diretamente dos seus processos, à imagem do que faziam os corregedores no reino. Além disso, deveriam proceder a todas as inspeções de que os corregedores eram habitualmente encarregados. Tinham também funções de fiscalização extremamente específicas de tudo o que dizia respeito ao comércio marítimo, aos navios e às relações com os estrangeiros.

A partir do final da segunda década de seiscentos, arranca um processo de criação de ouvidores em diferentes capitanias do Brasil, funcionando, jurisdicionalmente, abaixo da Relação do Brasil e, quando esta for suprimida, do ouvidor-geral. O Rio de Janeiro, com as capitanias do Espírito Santo e de São Vicente, e o Maranhão, destacado do restante Estado do Brasil, são os primeiros lugares a receber estes magistrados, ambos recebendo regimentos em 1619, embora o do Rio de Janeiro possa existir já em 1608 (Varnhagen, 1877). A Bahia já tinha o ouvidor-geral. A jurisdição destes ouvidores era semelhante à dos congéneres de África, inclusivamente no que diz respeito às respetivas alçadas. Uma especificidade, contudo, ao nível dos apelos e agravos: no caso do ouvidor enviado aos territórios do sul do Brasil, o recurso faz-se para a Relação da Baía; no do Maranhão, o recurso faz-se para a Casa da Suplicação devido à maior facilidade de navegação.[10]

Em relação a todos estes magistrados, é interessante notar que, embora estivessem muitas vezes na dependência do poder político local (capitão ou governador, consoante os casos), eram já dotados de alguma autonomia, nomeadamente nas garantias dadas sobre uma quase inamovibilidade perante esses mesmos poderes.[11]

Até meados do século XVII, a malha de ouvidores vai alastrar-se a zonas muito diversas dos domínios portugueses: Malaca (1630), Macau (1642), Moçambique (1648), na esfera de influência do Estado da Índia, e Tânger (1621) e Mazagão (1657), no norte de África. Se as ouvidorias africanas, em geral, se tornaram efetivas, com nomeação consequente de magistrados ao longo de toda a época moderna, as do Estado da Índia foram episódicas e de vigência curta. As ouvidorias de Macau e de Moçambique, pontos extremos, a oriente e a ocidente, do Estado da Índia, só funcionariam com regularidade a partir das reformas pombalinas da década de 1760, ao passo que a de Malaca apenas teria um ouvidor nomeado.

Ao mesmo tempo, na América Portuguesa, são criadas novas ouvidorias: Pernambuco (1646)[12] e Pará (1653). Este movimento acompanha – e em muitos casos até precede – o processo de transformação das capitanias hereditárias em capitanias reais, através da sua reversão ou da aquisição pela coroa. Desta forma, os territórios que tinham sido doados a donatários por forma a promover a sua povoação e florescimento, regressam à coroa, que passa a nomear as suas instâncias de administração por períodos trienais. Os juízes letrados vão fazendo parte dessas instâncias enviadas pelo centro para participar no governo dos pontos mais dinâmicos do seu ultramar.

A par desta fase de criação de jurisdições letradas ultramarinas, verificamos, ainda na primeira metade do séc. XVII, a criação dos primeiros lugares de juiz de fora em territórios ultramarinos. Mais uma vez, os arquipélagos atlânticos são o palco desta inovação, com a ilha de São Miguel, nos Açores, a receber um juiz de fora em 1622 e a ilha da Madeira um outro um quarto de século mais tarde. Os juízes de fora eram juízes letrados de primeira instância que, no reino, exerciam a sua jurisdição ao nível concelhio, normalmente sobre um município. As suas funções eram principalmente de natureza judicial, com alçada criminal e cível fixada pelas Ordenações. Exerciam igualmente funções administrativas, fiscais e, inclusivamente, governativas, uma vez que tinham assento na mesa de vereação das câmaras. Os juízes de fora distinguiam-se dos juízes ordinários por lhes ser exigida formação em direito, pela autoridade responsável pela sua nomeação – a coroa ou um dos seus donatários – e pelo alcance da sua alçada, bastante mais elevada. Se, no reino, os concelhos dotados de juiz de fora coexistiam com um número outros onde a justiça era exercida por juízes ordinários, numa proporção de quase um para quatro, no ultramar a realidade dominante será, numa dimensão ainda maior, a dos municípios com juízes ordinários. Apenas nas cidades e vilas ultramarinas de maior dimensão, chegará a existir um juiz de fora.

O Brasil, o território ultramarino onde serão criados mais lugares de juiz de fora, apenas começa a recebê-los na transição do século XVII para o século XVIII. Inicialmente nos principais centros urbanos (Bahia em 1696, Olinda em 1700 e Rio de Janeiro em 1701), depois, a partir da segunda década de setecentos, o movimento desloca-se para regiões que começam a ganhar dinamismo, em torno da mineração e do seu transporte: Santos (1713), Itu (1726), Ribeirão do Carmo/Mariana (1731).

Este movimento integra-se numa aceleração acentuada da criação de lugares letrados no Brasil, sobretudo por meio de novas ouvidorias. Neste outro nível de jurisdições, três tipos de regiões são privilegiados, com cronologias variadas, mas com uma aceleração na primeira metade do século XVIII: o nordeste (Paraíba – 1688; Sergipe d'el-Rei – 1696; Alagoas – 1709; Ceará – 1721; Piauí – 1722; e Jacobina – 1734), o litoral centro e sul (São Paulo – 1700, ­Paranaguá – 1722; Espírito Santo – 1732; e Santa Catarina – 1749) e as regiões das Minas e do ouro (Rio das Velhas/Sabará – 1708; Vila Rica do Ouro Preto – 1709; Serro Frio – 1720; Cuiabá – 1728; e Goiás – 1733).

Em meados do século XVIII, a estrutura de ouvidorias está praticamente toda implantada no território brasileiro. A segunda metade do século apenas assistirá à criação de novos lugares no Mato Grosso e em São José do Rio Negro (ambos em 1760), na sequência da necessidade sentida de estabelecer governos no sertão fronteiro com as colónias espanholas.

Às ouvidorias acresce, com a intensificação da atividade mineradora, a criação de um conjunto de lugares de intendentes, incumbidos da fiscalização da cobrança de impostos relativos à produção e remessa de metais preciosos (Goiás – 1733; Cuiabá – 1736; Rio das Velhas – 1739; Rio das Mortes – 1747; e Serro Frio – 1750), sempre em locais onde já existiam ouvidorias letradas.

Neste período assiste-se a uma nova fase na instalação do aparelho judicial da coroa na América portuguesa: a criação mais intensiva de lugares de juiz de fora. Inicialmente com o intuito de complementar a ação dos ouvidores existentes ou de lugares onde viriam a ser criados (Mato Grosso – 1748; Maranhão – 1753; Pará – 1759; e Cuiabá – 1760). Depois, no final do século XVIII e início do século XIX, em lugares de menor dimensão, que não eram cabeça de comarca, e, regra geral, para responder a pedidos das populações locais (Vila do Rio Verde e Paracatu do Príncipe – 1799; Caxias – 1802; e São Salvador dos Campos de Goitacases – 1802).

Por sobre este aparelho vigoravam, a partir de 1751, dois tribunais de relação. No entanto, durante praticamente um século, toda a América portuguesa estava sob o distrito judicial de um único tribunal: a Relação da Bahia. Como vimos, este primeiro tribunal havia sido instalado em 1609, mas a invasão e ocupação holandesa vieram obrigar à sua abolição por um período de 26 anos. Só seria restabelecido em 1652, depois da subida ao trono de D. João IV.

O regimento da sua primeira instalação previa a existência de 10 desembargadores. O tribunal brasileiro seguia o modelo da Casa da Suplicação e, mais especificamente, o da Relação de Goa, cuja organização praticamente reproduzia.[13] Na Baía, havia menos desembargadores extravagantes e apenas um ouvidor-geral, mas estas diferenças eram compensadas com a existência de três desembargadores dos agravos permanentes. O tribunal era presidido pelo governador do Brasil e o chanceler era a segunda figura da hierarquia administrativa de todo o Estado do Brasil.

A nova criação do tribunal, em 1652, retoma a organização de 1609, mas retira dois magistrados ao seu quadro. Considerava-se que o Brasil não seria capaz de sustentar demasiados magistrados.[14] O número de desembargadores de agravos é reduzido e os desembargadores extravagantes são abolidos, ao mesmo tempo que os ouvidores do crime passam a dois.

O tribunal tinha jurisdição sobre todos os territórios do Estado do Brasil até à criação da Relação do Rio de Janeiro, em 1751, que reduziu o distrito do tribunal da Baía às regiões do norte da América portuguesa. A possibilidade de submeter os territórios da África ocidental à jurisdição da Relação da Baía foi estudada em diferentes ocasiões, ao longo do século XVII. Embora a Casa da Suplicação tenha mantido sempre a alçada sobre esses territórios, diversos magistrados da Relação da Baía foram enviados a África para fazer devassas ou outro tipo de comissões especiais, o que revela a estreiteza dos laços que ligavam as duas regiões sob domínio português (Schwartz, 1979, p. 203).[15]

Os desembargadores da Relação da Baía eram, com efeito, encarregados de missões extraordinárias (comissões) que os obrigavam a ausentar-se do tribunal, por vezes durante várias semanas ou mesmo meses. A fiscalização de navios para combater o contrabando, os inquéritos sobre sublevações de escravos, as residências de magistrados em final de serviço, por exemplo, causavam, ciclicamente, problemas de funcionamento ao tribunal por falta de magistrados.[16] Em 1698, finalmente, o número de desembargadores da Relação volta a dez sem, contudo, se conseguir resolver os problemas relacionados com o excesso de processos.

A partir da década de 1730, começam a erguer-se vozes que reclamavam a criação de um segundo tribunal de relação no Brasil. Ele será estabelecido em 1751, no Rio de Janeiro,[17] e a discussão em torno da sua criação será analisada mais adiante. Ao tribunal é atribuída a jurisdição sobre as capitanias a sul da Bahia. A Relação do Rio de Janeiro segue o modelo de organização da Relação da Baía, com a exceção da inexistência de desembargadores extravagantes, compensada pela presença de cinco desembargadores de agravos, e a ausência da figura do provedor dos resíduos. O governador da capitania do Rio de Janeiro seria o presidente do tribunal. O serviço dos magistrados era de pelo menos seis anos, como nas restantes nomeações judiciais para as colónias. Em termos hierárquicos, as relações deste novo tribunal são, a montante, com a Casa da Suplicação e não com a Relação da Baía. A independência dos dois tribunais brasileiros é, com efeito, total.[18]

Nos restantes territórios ultramarinos portugueses, a criação de novas ouvidorias não foi retomada depois de meados do século XVII. Em Angola, seria criado um lugar de juiz de fora em 1721, mas tratou-se de um ato isolado. Apenas durante o período pombalino, com as reformas da década de 1760, se verifica um movimento mais generalizado de criação de judicaturas com duas regiões a merecerem especial atenção: o arquipélago dos Açores e o Estado da Índia. Nos Açores, a reforma de 1766 criou um juiz de fora em cada ilha do arquipélago. Esta experiência seria alargada a Cabo Verde com a criação de um juiz de fora apenas na Vila da Praia. No Estado da Índia, seriam criados juízes de fora em Salsete (1764), Bardês e Goa (1774). Angola receberia um novo juiz de fora, em Benguela, em 1776. No entanto, só depois da independência do Brasil e da consequente reestruturação da política ultramarina portuguesa é que os territórios africanos viriam a receber instâncias superiores de administração de justiça.

Se colocarmos os dados da evolução do aparelho judicial ultramarino português sob a perspetiva da análise comparada, nomeadamente com a realidade observável na monarquia espanhola, facilmente nos apercebemos de grandes diferenças nos seus traços gerais. Desde logo, do ponto de vista da sua cronologia e, depois, da sua extensão. O primeiro tribunal de relação (audiencia) da América espanhola é estabelecido logo em 1511, em Santo Domingo, precedendo em quase um século o tribunal baiano. A partir de meados da década de 1530, a América espanhola encontra-se dividida em doze províncias, correspondendo a cada uma delas uma audiencia, ficando, pelas Leyes Nuevas de 1542, equiparadas aos tribunais de relação castelhanos (Dougnac, 1994, p. 549). Jurisdicionalmente abaixo das audiencias, encontramos os alcaldes mayores e os corregidores que, pelo âmbito jurisdicional, poderíamos equiparar aos ouvidores e aos juízes de fora portugueses, mas cujas funções, formas de recrutamento, estrutura de carreira e circulação, acabam por constituir grupos diversos (Garriga, 2004). A patrimonialização dos lugares de justiça (do lado espanhol) contrasta com o serviço dos ofícios de justiça por tempos determinados (do lado português). Por outro lado, a dificuldade de acesso dos magistrados ultramarinos espanhóis aos conselhos superiores de Castela tornam o serviço americano pouco atraente para os letrados espanhóis (Barrientos Grandón, 2000); pelo contrário, no lado português, o serviço ultramarino traduz-se num aceleramento do cursus honorum e, para muitos casos, a chegada a tribunais de relação do Reino (Camarinhas, 2010 e 2013).

Do ponto de visto dos textos legais em vigor nos territórios ultramarinos ibéricos, há igualmente uma clara diferença: enquanto do lado português, as Ordenações têm uma vigência universal, do lado espanhol verifica-se a produção, quer a nível metropolitano, quer a nível ultramarino, de legislação específica (o derecho indiano) (Dougnac Rodriguez, 1994; González Vale, 2003).

O longo e desigual processo de estabelecimento de um aparelho judicial letrado nos espaços ultramarinos está longe de corresponder a um plano ou a uma vontade forte e consequente da coroa. Embora possamos identificar momentos pontuais de ação política que procurava implementar, no terreno, reformas conducentes ao reforço da presença da autoridade régia, por intermédio dos seus agentes judiciários, em determinados territórios do ultramar, o grosso do processo decorre de forma muito tateante, dando resposta a solicitações produzidas nas periferias pelas mais diversas entidades.[19] Este fator adaptativo torna-se mais predominante quando descemos às jurisdições mais reduzidas, de nível mais local. Quando observamos as jurisdições superiores, de âmbito territorial mais amplo e cujos poderes são mais alargados, a existência de uma vontade do centro parece tornar-se um pouco mais evidente. Quando referimos o fator adaptativo, ele tem duas vertentes que é importante sinalizar: a da transposição de um modelo que é, originalmente, reinícola, por um lado, e a da repetição de modelos testados noutros territórios do ultramar português, umas vezes vizinhos, outras vezes extremamente distantes.

Os primeiros juízes letrados a serem enviados ao ultramar têm ainda um carácter tardo-medieval. Têm mandatos semelhantes aos dos juízes do reino que eram enviados pela coroa, como juízes de fora ou corregedores, para, com a sua formação especializada, porem cobro a irregularidades na atuação dos juízes ordinários, ou para, com a autoridade reforçada por serem nomeados pelo rei, dirimirem conflitos que envolvessem potentados locais. Os primeiros juízes letrados enviados aos arquipélagos atlânticos levam essa incumbência, acrescida de outras relacionadas com o povoamento de novos territórios. Afonso de Matos, corregedor enviado aos Açores no final do século XV, vai, por exemplo, proceder a uma divisão das terras da ilha Terceira, em virtude das dúvidas suscitadas pelas sesmarias (Gregório, 2005, p. 130). A iniciativa da sua criação parece repartir-se entre a vontade da coroa em garantir a boa administração da justiça e eventuais queixas das populações relativas às autoridades locais escolhidas pelos donatários.

Os ouvidores-gerais que foram criados para o Estado da Índia e para o Brasil, por seu lado, parecem representar uma vontade política do centro de garantir uma presença de oficiais régios que assegurassem o cumprimento das Ordenações em territórios onde a presença portuguesa estava mais florescente.[20] Eram dotados de uma autoridade superior aos congéneres do reino por forma a compensar a distância daquelas populações em relação aos tribunais superiores do reino. Quer num caso, quer no outro, eles serão o embrião do que virão a ser tribunais de relação, trabalhando em proximidade com a máxima autoridade política da região.

O processo de criação de novos lugares de justiça conhecerá, no entanto, outros fatores de desenvolvimento. Um deles é, claramente, a própria vontade das populações locais. São inúmeros os testemunhos de pedidos de comunidades dirigidos ao rei no sentido de serem criados oficiais de justiça próximos delas. São os rendeiros de Cabo Verde,[21] são os oficiais da câmara de Sergipe d'El-Rei[22] ou de Alagoas,[23] são os moradores da Campanha do Rio Verde, nas Minas.[24] No caso da vila de Alagoas, a carta, datada de maio de 1712, congratulava-se com a decisão régia de responder ao pedido da câmara para ali criar o lugar de ouvidor, com a nomeação de um juiz experiente, José da Cunha Soares, que ocupara, anteriormente, três outros lugares no reino.[25] Alegava o pedido que tal magistrado não só conviria ao serviço real como à “conservação dos seus moradores”, administrando a justiça e atendendo “ao bem comum desta respublica”. Já os moradores da Campanha do Rio Verde pediam que a sua povoação fosse elevada a vila e beneficiasse da criação de um lugar de juiz de fora, mas sem sucesso. Em setembro de 1802 um requerimento dos oficiais da câmara de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para criação de um lugar de Juiz de Fora é objeto de uma consulta do Conselho Ultramarino.[26]Este requerimento culminava um processo que se iniciara sete anos antes. Na argumentação utilizada para sustentar o pedido destacam-se dois pontos: “os juízes ordinários como leigos, e ignorantes das leis, não as podem fazer executar” e o “aumento da sua população, do seu comércio, e até dos infinitos processos, fomentados pela ambição, pela usura, e pela intriga”. O Conselho Ultramarino, apoiado também no parecer do vice-Rei, conde de Resende, defende a pretensão da câmara, sublinhando a sintonia entre a argumentação apresentada e a prática da coroa na justificação para a criação de novos lugares no reino e no ultramar. E termina com esta formulação em defesa da justiça como garante dos diferentes direitos presentes na sociedade: “Tanta é a opulência dos moradores daquele continente, quanto maior será o seu orgulho, em prejuízo dos pequenos ou menos ricos, e para conter o arrojo dos primeiros, e manter à sombra do Régio Trono, e das Leis, que dele emanam, a igualdade da justiça, na conservação dos diferentes direitos de cada um dos fieis vassalos de Vossa Alteza”.

Outra forma de dar origem a lugares de justiça eram os pedidos, sugestões, ou os pareceres, de autoridades ou outras personagens locais destacadas. Governadores, como em Pernambuco[27] ou no Piauí,[28][29] ou padres jesuítas, como no Pará,[30] todos aparecem a formular pedidos junto da coroa, por intermédio do Conselho Ultramarino, no sentido de serem criados lugares de letras na América portuguesa. Argumentos como o da distância em relação à sede onde residiam os agentes de justiça daquela jurisdição, a iliteracia jurídica dos juízes ordinários, o aumento da criminalidade e da impunidade dos criminosos, são presentes de forma recorrente e universal, numa retórica que em nada se afasta daquela utilizada pelos representantes das povoações.

Outro momento relevante que nos permite surpreender a argumentação a favor da criação de lugares de letras é o da discussão em torno do estabelecimento do Tribunal de Relação do Rio de Janeiro. O contexto em que este processo se desenrola é o do crescimento populacional e económico das regiões sul da América portuguesa fomentados pelo desenvolvimento da exploração mineira das primeiras décadas do século XVIII. As capitanias do sul recebem uma migração abundante e, com ela, conhecem um rápido desenvolvimento urbano. A posição, até então dominante, da Bahia, vê desenvolver-se um contraponto a sul, em torno do Rio de Janeiro. O crescimento demográfico e o progressivo dinamismo das trocas e interações sociais propiciam um crescimento das causas levadas à justiça. Os apelos e recursos deveriam ser levados à Relação da Bahia, o que se vai revelando um entrave cada vez mais pesado.

Desde 1730 que surgem pedidos, por parte das populações do sul, encabeçadas pelas câmaras de Vila Rica e de Ribeirão do Carmo, no sentido de se criar um segundo tribunal de relação que lhes fosse mais próximo.[31] O Rio de Janeiro ocupava, já, uma posição privilegiada na nova dinâmica da economia do Brasil: era o porto e o entreposto do comércio de metais preciosos para a metrópole. Vila Rica e Ribeirão Preto chegam mesmo a oferecer a sua participação nos custos do projeto de instalação de um novo tribunal.[32]

A coroa aprova a criação logo em 1734, mas o tribunal não chega a ser instituído, o que leva a que os pedidos sejam reforçados em 1750. Nesse momento, toma relevo a representação do guarda-mor geral das Minas do Ouro, Pedro Dias Pais Leme, com uma formulação mais vívida: terem passado dezasseis anos sem qualquer concretização da decisão de criar o tribunal prejudica “a conservação e aumento das Minas porque vendo os seus povoadores que as suas apelações e agravos que até aqui tinham êxito difícil e com a dilação de um, e dois, e três anos, e se podem concluir em um, ou em dois meses, quando muito, se poderão abster de as moverem injustas, e não estarão os serviços empatados, nem o ouro sepultado nas entranhas da terra, onde se cria, nem tão pouco a Fazenda Real com o prejuízo de se privar dos quintos, que do ouro extraído se lhe devem”.[33]

A criação do novo tribunal, atuando em simultâneo com o da Bahia, tornaria “mais seguros os quintos, e em tudo mais bem providos os vassalos, a justiça melhor, porque mais prontamente administrada, e os delitos punidos para exemplo mais perto dos lugares em que são cometidos, e à vista e face dos mesmos, que os viram, ou que os ajudaram a cometer por estarem quotidianamente descendo das Minas ao Rio os moradores delas, para se proverem de fazendas e víveres, e também de caminho de despachos, achando a quem recorram em o mesmo Rio para se lhe repararem as violências, que os ministros inferiores comummente lhe fazem fiados na distancia dos recursos que os faz serem absolutos e insolentes, tendo vindo por isso alguns de lá fugidos, e outros presos, mas depois de vexados os vassalos, e depois de espoliados, e destruídas as Minas, e os mineiros com irreparáveis danos”.[34]

O Conselho Ultramarino acaba por produzir novo parecer favorável ao estabelecimento do tribunal e, no ano seguinte, em 1751, será dado o regimento que dava forma ao novo tribunal no Rio de Janeiro,[35] com jurisdição sobre as capitanias a sul da do Espírito Santo (cf. Figura 2).

 

 

No preâmbulo do regimento, refere-se o pedido de 1730 e a argumentação ali apresentada: a distância e, com ela, as demoras, as despesas e os perigos.[36] Não se referem os prejuízos nas cobranças dos quintos e opta-se por pagar a criação do tribunal e os salários dos seus magistrados com a Fazenda régia,[37] ao mesmo tempo que se decidiu por criar um tribunal que em nada se subalternizava ao da Bahia: o mesmo número de desembargadores e um estatuto equivalente.[38]

A criação de novos lugares, independentemente da dimensão da sua jurisdição, parece assentar sempre sobre este conjunto de argumentação: a necessidade de suprir a distância em relação aos centros de administração de justiça, a maior competência e independência dos juízes letrados, a salvaguarda dos direitos dos vassalos, a aplicação do direito régio. O inverso parece estar ausente do discurso das populações da América Portuguesa, ou seja, não encontramos testemunhos de pedidos para suprimir jurisdições letradas. As queixas que se encontram, que chegam ao Conselho Ultramarino e são em grande número, nunca são no sentido de se extinguirem lugares, mas, antes, contra ministros bem identificados. Nesses casos, abundantes, refere-se o nome do ministro e elencam-se os seus erros, pede-se a punição desses agentes e a sua substituição por outros que garantam a boa aplicação do direito.[39] Não é a malha judicial estabelecida que é posta em causa: são as suas falhas, quer no alcance da sua estrutura, quer na qualidade dos seus agentes.

O aparelho de administração da justiça que se vai construindo no ultramar português ao longo da época moderna tem uma matriz europeia, que vai ser adaptada às realidades locais que vai encontrando. No entanto, por nunca ter existido, no caso português, uma legislação geral, compilada, destinada exclusivamente ao ultramar e com aplicação na generalidade dos territórios – como o chamado “direito indiano” na América espanhola – essa matriz europeia acaba por persistir e por se sobrepor à sua adaptação local. Do ponto de vista institucional e regimental, as jurisdições ultramarinas dos juízes da coroa, pouco divergiam das que existiam no reino. O direito que se aplica é o prescrito nas Ordenações, acrescido dos assentos dos grandes tribunais e conselhos de Lisboa. Os agentes que o aplicam, por sua vez, circulam no interior desse aparelho, transitando de lugares servidos no reino para lugares servidos no ultramar, fazendo muitas vezes o movimento de retorno. O espaço de circulação dos ministros letrados portugueses da época moderna é pluricontinental.

Este aparelho estabelece-se de forma desigual no conjunto dos territórios ultramarinos portugueses. Nos pontos mais dinâmicos – arquipélagos atlânticos, primeiro, Estado da Índia e Brasil, depois – vão criar-se jurisdições letradas e, nos casos mais desenvolvidos, várias instâncias, que chegaram a incluir tribunais de relação. Noutros pontos – costa ocidental e oriental africana, praças asiáticas – verificou-se uma presença mais rudimentar, se bem que continuada, de justiças letradas. O restante do conjunto dos territórios ultramarinos não conheceu tal presença. Mesmo nas regiões onde este aparelho se fixa, ele coexiste com justiças não-letradas, de nomeação concelhia, e com jurisdições de naturezas diversas, que enquadravam populações específicas.

Com o seu centro no Conselho Ultramarino e no Desembargo do Paço, onde se decidia a estrutura e onde se designavam os agentes, o aparelho de administração da justiça apresenta um carácter que só no seu exterior aparenta ser monolítico. É verdade que as estruturas se repetem em diferentes pontos do globo, é também verdade que há circulação entre esses pontos. Mas a extrema dispersão dos territórios, o peso das distâncias em relação aos centros, a própria natureza hiperperiférica de muitos dos postos, acrescida do carácter muitas vezes pessoal que assumia o serviço de cada juiz, introduzem várias brechas nesse ilusório monolitismo.

 

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Recebido a 16-08-2016. Aceite para publicação a 11-07-2017.

 

[1] Para citar apenas dois exemplos: o projeto Monarquias Ibéricas em Perspetiva Comparada (sécs. XVI-XVIII), coordenado por Ângela Barreto Xavier, Federico Palomo e Roberta Stumpf, ICS-UL/Casa Velázquez (2013-14), ou o projeto Vencer la distáncia: actores y prácticas del gobierno de los impérios español y português, coordenado por Guillaume Gaudin, Universidade de Toulouse 2 – Jean Jaurès (2016-2018).

[2] Destacamos o projeto dirigido por Nuno G. Monteiro, http://www.ics.ul.pt/instituto/?ln=p&mm=5&ctmid=2&mnid=1&doc=31809901190&sec=3&idpro=401&pid=86, ICS-UL, financiado pela FCT (PTDC/HIS-HIS/98928/2008).

[3] Reformaçam da Justiça. – Em Lisboa: aa custa de Luis Marteel Livreiro del Rey Nosso Senhor: per Antonio Ribeiro Impressor do mesmo Sõr, 1583.

[4] Foi presidida por D. António Pinheiro, bispo de Leiria, e composta pelo chanceler-mor do reino e por um conjunto de juristas portugueses (Paulo Afonso, Pedro Barbosa e Lourenço ­Correia). Seria depois acrescentada com a participação de dois juristas espanhóis, Rodrigo ­Vasquéz e o Licenciado de Villafaña. Para os trabalhos da comissão contribuíram igualmente o Conde de Portalegre, Cristóvão de Moura e o Duque de Alba (Silva, 1991).

[5] No seu preâmbulo, são referidas as leis e ordenações dos “Reis meus antepassados” e, mais recentemente, a legislação de D. Sebastião sobre “juízos, brevidade das causas, e execução das sentenças” (Cf. Reformaçam da Justiça… Preâmbulo).

[6] Cf. ADF, RGC, I, 193v e 314v. Mais tarde, encontramos referência chegada de Diogo Taveira à ilha, enviado como corregedor, em 1518 – cf. Corpo Cronológico, Parte II, mç. 63, n.º 164.

[7] Carta do corregedor Pêro Guimarães, IAN/TT, Corpo Cronológico, I-36-93, 6 de maio de 1517. Contudo, uma carta de 1512, dos “homens-bons” da Ribeira Grande, já fazia referência aos “corregedores que já cá vieram”, pelo que depreendemos que o envio de magistrados para Cabo Verde poderá ser anterior (ANTT, Corpo Cronológico, I-12-23, 25 de outubro de 1512).

[8] “Primeiro Regimento, que trouxerão a estas partes da India os Doutores Francisco ­Toscano, chanceller e Provedor mór dos defuntos, e Simão Martins, Ouvidor Geral e Juiz dos feitos ­del-Rei, pelo qual se ordenou a Relação que ora nellas há” (Rivara, 1865).

[9] Idem, tít. I.

[10] “Regimento do Ouvidor do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Vicente” de 5 de junho de 1619 (Silva, 1854-1859, pp. 382 e segs.) e “Regimento do Ouvidor do Maranhão” de 7 de novembro de 1619 (Silva, 1854-1859, pp. 387 e segs.).

[11] “Não poderá o dito Governador [ou Capitão] tirar-vos nem suspender-vos do dito cargo em quanto eu [o Rei] não mandar o contrario”, é a fórmula que se repete nos Regimentos dos diferentes ouvidores publicados neste período – cf. “Regimento do Ouvidor de Angola” de 26 de fevereiro de 1609 (Silva, 1854-1859, p. 258).

[12] Carta de ouvidor de Pernambuco a Simão Álvares de La Penha Deusdará, de 13 de abril de 1646 (ANTT, Chancelaria de D. João IV, liv. 26, fl. 112).

[13] “Regimento da Relação do Estado do Brasil” de 7 de março de 1609 (Silva, 1854-1859, pp. 258-265).

[14]> Este argumento tinha sido usado pelo Conselho Ultramarino a propósito da eventual criação de uma Relação no Pernambuco, dois anos antes (consulta do Conselho Ultramarino de 31 de março de 1654, citada por Schwartz (1979, p. 199).

[15] O autor cita o caso de António Rodrigues Banha, enviado a Luanda para conduzir a residência do governador cessante de Angola, em 1684.

[16] Ainda em 1616, uma carta régia enviada ao vice-rei D. Luís de Sousa advertia que a Relação da Baía tinha, então, apenas quatro magistrados e dava as instruções necessárias para a expedição dos assuntos apesar da legislação existente sobre procedimentos do tribunal em matéria de quorum (Livro 2.º do Governo do Brasil, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002, p. 54).

[17] “Regimento da Relação do Rio de Janeiro” de 13 de outubro de 1751 (Silva, 1830, pp. 102-119).

[18] O regimento de 1751, no seu art. 67.º, estipula o envio imediato de todos os casos que pertencessem à jurisdição da Relação do Rio de Janeiro e que estivessem, ainda, em julgamento no tribunal da Baía.

[19] Uma análise centrada na criação de comarcas na América portuguesa pode ser encontrada em Cunha e Nunes (2016). O artigo propõe uma cronologia das diferentes fases do processo de alargamento da malha jurisdicional naqueles territórios ultramarinos ao mesmo tempo que faz uma análise muito detalhada da discussão em torno da criação de diversos lugares que complementa, em grande medida, a que propomos aqui.

[20] A nomeação do primeiro ouvidor-geral para Goa é justificada desta forma: “[…] vendo eu o muito crecimento em que, louvores a Nosso Senhor, vão as cousas da India, e como alem da muita gente que lá tenho enviada, e continuamente envio, he convertida muita da terra → a nossa sancta fee católica, e espero com sua ajuda que cada dia se converta mais, por onde he necessario aver mais officiaes para ministrarem as cousas da justiça” (Rivara, 1865, pp. 177-182).

[21] Este é um caso curioso na medida em que nos chegou por intermédio de uma carta enviada ao rei precisamente com a intenção oposta, isto é, queixando-se da inoperância dos magistrados régios. Mas a carta refere a origem remota de tais oficiais num pedido que a coroa teria recebido por parte dos rendeiros do arquipélago: “nos é dito que Sua Alteza, a requerimento de seus rendeiros, quer mandar corregedor a esta terra”, ANTT, Corpo Cronológico, I-12-23, 25 de outubro de 1512, HGCV-CD, vol. I, doc. 77, pp. 213-214.

[22] Existe uma “Representação dos oficiais da Câmara da Capitania de Sergipe del Rey , ao Rei [D. Pedro II], pedindo um Ouvidor Letrado para a Capitania”, data de 2 de julho de 1694, conservada no Arquivo Histórico Ultramarino, mas infelizmente extremamente danificada. AHU, Conselho Ultramarino, Sergipe, caixa 1, doc. n.º 62.

[23] “Carta dos oficiais da Câmara da vila de Alagoas ao rei [D. Pedro II] a agradecer a criação do lugar de ouvidor-geral…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Alagoas, caixa 1, doc. n.º 10.

[24] “Requerimento dos moradores da Campanha do Rio Verde, Capitania das Minas, pedindo reforma da consulta…”, AHU, Conselho Ultramarino, Minas Gerais, caixa 144, doc. n.º 22.

[25] ANTT, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça, liv. 130, fól. 50; Chancelaria de D. Pedro II, liv. 46, fól. 60v.

[26] “Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João sobre carta dos oficiais da Câmara da vila do Rio Grande de São Pedro do Sul…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Rio Grande do Sul, caixa 6, doc. n.º 428.

[27] “Carta do gov. da capitania de Pernambuco D. Manuel Rolim de Moura ao rei D. João V obre a conveniência da criação do lugar de juiz de fora…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Pernambuco, caixa 31, doc. n.º 2855.

[28] “Carta do governo interino do Piauí, à rainha [D. Maria I], sobre a necessidade de um ouvidor letrado…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Piauí, caixa 14, doc. n.º 804.

[29] “Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. Pedro II, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba, Antônio da Silva Barbosa, solicitando ouvidor letrado…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Paraíba, caixa 2, doc. n.º 144.

[30] “Consulta do Conselho Ultramarino para o rei D. Pedro II, sobre o que apresenta o padre da Companhia de Jesus, João Valadas, para que se avie o cargo de ouvidor letrado…”, AHU, Conselho Ultramarino, Brasil – Pará, caixa 4, doc. n.º 342.

[31] Os papéis que se juntaram ao parecer do Conselho Ultramarino sobre a criação do novo tribunal, datado de 3 de dezembro de 1750, referem – ou transcrevem mesmo – três representações das câmaras: uma em 1730, uma segunda em 1733, uma terceira em 1750. Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino – Brasil, cx. 12, d. 1050.

[32] Em 1730, Vila Rica oferecia 4 mil cruzados anuais, Ribeirão do Carmo 3 mil cruzados, e as restantes vilas das Minas valores que seriam “conforme o seo rendimento”. Uma provisão de 7 de fevereiro de 1732 ordenava aos governadores das capitanias do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo ajustassem as quantias com que poderiam contribuir para o pagamento dos desembargadores de uma Relação criada de novo. Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino – Brasil, cx. 12, d. 1050.

[33] Ibidem.

[34] Ibidem.

[35] “Regimento da Relação do Rio de Janeiro” de 13 de outubro de 1751 (Silva, 1830, pp. 102-119).

[36] A formulação das câmaras era mais expressiva: falava da “grande consternação que experimentavam os moradores daquele governo no seguimento das apelações e agravos para a Relação da Bahia pela grande distancia em que ficava, sucedendo perderem-se no caminho muitos autos em grave prejuízo das partes,e muitas delas deixarem de seguir as demandas por ser dilatado o recurso”. Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino – Brasil, cx. 12, d. 1050.

[37] “… fazendo-se por conta de Minha Fazenda, e das despezas da dita Relação, as que forem necessarias para a sua creação, e estabelecimento”. “Regimento da Relação do Rio de Janeiro” de 13 de outubro de 1751 in A. D. Silva, op. cit., vol. I (legislação 1750-1762), Lisboa, Typografia Maigrense, 1830, p. 102-119.

[38] Um dos aspetos que foi muito discutido no Conselho, sobretudo em 1734, era a ideia, defendida por Diogo Rangel de Almeida Castelo Branco, de se subalternizar a nova Relação à da Bahia, propondo que os Desembargadores do Rio servissem ali três anos e completassem o sexénio na Bahia, antes de serem promovidos à Relação do Porto. Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino – Brasil, cx. 12, d. 1050.

[39] “… os seus reverentes vassalos pedem, e querem receber justiça perfeita, acudindo V. R. Majestade com o remédio conveniente a tanta insolência, e roubo”. Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, cx. 53, doc. n.º 51.

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