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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.226 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018226.04 

ARTIGOS

O léxico das crises biográficas

The lexicon of biographical crises

Ana Caetano*

*CIES-IUL, ISCTE Ed. ISCTE-IUL, Av. Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. ana.caetano@iscte.pt


 

RESUMO

O léxico das crises biográficas. O objetivo central deste artigo é discutir e apresentar um modelo de análise sociológica de crises biográficas, ou seja, de fases de vida dos indivíduos marcadas pela quebra dos quadros habituais de ação e pensamento, com impactos substanciais nos seus percursos. Num primeiro momento são mapeados os principais contributos da sociologia para o estudo desta problemática, nomeadamente identificando o que na literatura pode ser enquadrado no conceito de crise. É nesta discussão que assenta, numa segunda parte, a identificação dos principais eixos analíticos que estruturam as dimensões de análise sociológica das crises biográficas.

Palavras-chave: crise biográfica; percurso de vida; rutura; imprevisibilidade.


 

ABSTRACT

The lexicon of biographical crises. The main goal of this article is to discuss and present an analytical model for the sociological research of biographical crises, i. e., stages of life marked by the disruption of habitual frameworks of action and thought, which have a substantial impact on the lives of individuals. First, the main contributions from sociology to the study of this topic are mapped, namely by identifying what fits the concept of crisis in the literature. This discussion provides the basis for the identification, in a second part of the paper, of the main analytical axes that structure the dimensions of analysis of biographical crises.

Keywords: biographical crisis; life course; disruption; unpredictability.


 

INTRODUÇÃO

A vida social assenta, em grande medida, em processos de padronização da ação. A rotina, a repetição, a habituação e a previsibilidade das dinâmicas sociais tornam possível às pessoas adquirirem um grau de segurança e confiança nos seus contextos, e em relação àquilo que neles fazem e observam, que viabiliza a existência em sociedade. Como afirma Pires (2012, p. 31), “reconhecemos a sociedade na ordenação da vida humana”. É neste âmbito que a sociologia se tem debruçado amplamente sobre os mecanismos que estão na base dos processos de reprodução e de manutenção da ordem social (Alexander, 1987). As tradições francesas de pendor mais durkheimiano e bourdieusiano são disso um claro exemplo, colocando em segundo plano a análise das contingências e das ruturas.

Isso não significa, por outro lado, considerar que a vida social decorre, em permanência, plena de ordem e harmonia. Situações de desordem, crise e rutura são também parte integrante da existência em sociedade. Muitas abordagens têm vindo, aliás, a reconhecer, já desde a origem da sociologia, o papel que as dinâmicas de disrupção e imprevisibilidade desempenham nos processos de estruturação social. Weber (2006), por exemplo, aponta para a importância das singularidades históricas e Simmel (1982) realça o cariz parcialmente imprevisível da ação recíproca. Mesmo autores como Durkheim (1984) e Parsons (1937) reconhecem a existência de anomia enquanto enfraquecimento da regulação social que está na origem de instabilidade. Bourdieu (1998) refere-se também a crises geradas por mudanças de posicionamento no espaço social e que remetem para processos de desajuste entre habitus e contextos de ação. Durkheim, Parsons e Bourdieu reportam-se, contudo, a circunstâncias que assumem um cariz excecional e irregular face ao funcionamento normal e padronizado das sociedades humanas. No entanto, pretende-se aqui argumentar que as crises não devem ser necessariamente consideradas situações anómalas e patológicas do ponto de vista social e sociológico. As múltiplas desordens que caracterizam os percursos biográficos, bem como as mudanças sociais de maior amplitude, ocorrem dentro dos enquadramentos estruturais socialmente ordenados que configuram a existência social humana. Embora essa ordem possa ser perturbada, não é obrigatoriamente colocada em causa, nem gera invariavelmente ruturas e irreversibilidades.

A literatura sociológica que aborda situações de crise nos percursos biográficos é bastante vasta e centra-se nas diferentes dimensões, processos e dinâmicas sociais que as ruturas podem assumir. A já longa tradição da abordagem biográfica em sociologia tem precisamente dado conta das inúmeras situações de crise que compõem um percurso de vida (Bertaux, 1981; Chamberlayne, Bornat e Wengraf, 2000). As biografias individuais não se configuram apenas em torno de padronizações, regularidades e previsibilidades sociais, incorporando também componentes de contingência, singularidade e rutura com efeitos variados na vida dos indivíduos. A reconstituição de uma história de vida constitui-se, assim, como um importante instrumento de análise das crises que marcam um percurso biográfico, permitindo perceber como se manifestam na singularidade individual de cada caso, sem, por outro lado, perder de vista que esta é produzida no contexto de dinâmicas estruturais mais vastas. O enfoque na biografia permite aceder à articulação entre os acontecimentos disruptivos que ocorreram ao longo da vida de um sujeito, mas também aos seus estados, ou seja, à subjetividade associada a cada um desses momentos.

Do ponto de vista sincrónico, são também múltiplas as situações de desajuste no quotidiano das pessoas e que se alternam com rotinas e hábitos sem provocarem anomia ou implicarem reestruturações de fundo (Lahire, 2003). É ainda importante referir que o interesse sociológico pelas situações de crise tem vindo a tornar-se mais evidente no acompanhamento das dinâmicas de mudança das sociedades modernas, em particular as que conduziram à crise económica que muitos países europeus atravessam, nomeadamente Portugal, e que têm tido efeitos concretos na configuração dos percursos individuais, potenciando descontinuidades e reorientações (Atkinson, Roberts e Savage, 2012; Carmo e Cantante, 2015; Chalari, 2014; Monteiro e Domingos, 2014).

Pelo facto de ter uma grande amplitude e se direcionar para as diferentes formas que as crises podem assumir, a produção sociológica sobre esta problemática evidencia alguma dispersão conceptual. O leque de noções usadas para designar situações de crise é bastante vasto: rutura, disrupção, desajuste, descontinuidade, desfasamento, transição, momento de viragem, evento crítico, contingência, bifurcação, acidente, inflexão, trauma, adversidade, epifania, entre outras. A riqueza associada a este léxico conceptual gera, contudo, alguma incerteza quanto ao significado, bem como às proximidades e distâncias entre conceitos. Em muitos casos, parecem referir-se aos mesmos processos e dinâmicas, noutros existe um esforço de diferenciação no sentido de destacar singularidades conceptuais. O objetivo deste artigo é precisamente mapear e clarificar os sentidos das diferentes noções utilizadas na pesquisa sociológica, com o objetivo de, por um lado, compreender o léxico das crises biográficas e, por outro, identificar as suas principais dimensões de análise.

MOMENTOS E ACONTECIMENTOS

As crises biográficas são geralmente analisadas por referência à mudança: alterações, muitas vezes bruscas, nas vivências individuais são potencialmente geradoras de uma situação de crise. Essas transformações decorrem frequentemente de ocorrências com um impacto considerável nos percursos de vida. Não tendo por objetivo listar exaustivamente todas as noções mobilizadas na produção sociológica (mas também na das ciências sociais em geral) para designar momentos e eventos associados às circunstâncias de crise na biografia individual, pretende-se aqui identificar aquelas que se considera serem as mais relevantes para a análise da problemática: pontos de viragem e bifurcações; eventos e momentos críticos; contingência e casualidade; ruturas e disrupções; epifanias; transições; trauma cultural e risco.

PONTOS DE VIRAGEM E BIFURCAÇÕES

O conceito de ponto de viragem (turning point no original em inglês) é usado com frequência na pesquisa sociológica, em particular em abordagens do curso de vida, para designar momentos no percurso biográfico que geram uma mudança de orientação da trajetória individual. Utilizações iniciais desta noção remetiam de forma mais ampla para processos de mudança e transição com diferentes graus de duração, previsibilidade, ritualismo e institucionalização (Elder, 1985; Hareven e Masaoka, 1988; Hughes, 1971). Uma utilização renovada do conceito por parte de Andrew Abbott (2001) renega a definição de ponto de viragem como processo e delimita o seu sentido a uma mudança curta com consequências na orientação do trajeto de vida. De acordo com o autor, está-se perante um conceito intrinsecamente narrativo, que implica a existência de duas sequências temporais distintas (um antes e um depois) interrompidas e ligadas por um momento que altera a tendência do trajeto anterior e está na origem de uma nova trajetória. As mudanças abruptas no percurso de vida só resultam em pontos de viragem se se verificar um redirecionamento do trajeto individual.

O conceito de ponto de viragem foi recuperado em França sob a designação de bifurcação (bifurcation no original em francês). No essencial, define-se pelos mesmos parâmetros do de ponto de viragem, atribuindo-lhe os autores franceses que o mobilizam uma flexibilidade e abrangência que não se ­restringe à lógica binária para que a noção de bifurcação parece remeter. A única diferença diz respeito à maior ênfase na sua componente de imprevisibilidade, em termos de momentos e resultados produzidos (Bidart, 2006, 2009; ­Grossetti, 2006, 2009; Hélardot, 2009; Soulet, 2006, 2009).

EVENTOS E MOMENTOS DECISIVOS

Na pesquisa biográfica o conceito de evento tende a estar associado a acontecimentos com impactos consideráveis quer nos percursos de vida, quer potencialmente nas próprias estruturas sociais (Sewell, 1996). Os eventos são, no fundo, ocorrências objetivas que precipitam disrupções. Não tendo um cariz de determinação exclusiva nas práticas e contextos sociais, desempenham antes um papel desencadeador ou amplificador de ruturas, pelo que os seus efeitos devem ser articulados com as propriedades de situações prévias na explicação das dinâmicas sociais.

Esta definição sobrepõe-se, em certa medida, à de momentos decisivos (fateful moments no original em inglês), tal como preconizada por Anthony Giddens (2001). Trata-se de ocorrências que se opõem à componente rotineira e ritualizada do quotidiano, que são simultaneamente consequentes e problemáticas, conduzindo os indivíduos a encruzilhadas, nas quais enfrentam a necessidade de fazer escolhas com consequências expressivas no futuro das suas trajetórias biográficas. Os momentos decisivos, que podem ser imprevisíveis ou causados pelos sujeitos, implicam, por isso, que as pessoas ativem a sua reflexividade na avaliação de riscos e efeitos que a tomada de decisão acarreta relativamente à escolha de um determinado curso de ação. Essa ponderação pode concretizar-se com recurso aos sistemas periciais e configura processos de reconstrução identitária.

CONTINGÊNCIA E CASUALIDADE

Aquilo que resulta do acaso não é comummente entendido como objeto de análise das ciências sociais e da sociologia em particular. Considerar um determinado acontecimento casual, contingente, aleatório ou uma coincidência significa não lhe reconhecer lógicas de determinação e causalidade social que permitam prever e compreender a sua ocorrência e, assim, analisá-lo sociologicamente. No entanto, alguns autores têm vindo a apontar a importância do acaso na explicação de processos sociais pelo facto de estar associado a mudanças importantes no curso de vida de uma pessoa, nomeadamente por poderem despoletar crises biográficas (Becker, 1994; Boudon, 1990; Diaconis e Mosteller, 1989; Manis e Meltzer, 1994; Shanahan e Porfeli, 2006; Smith, 1993).

De acordo com Shanahan e Porfeli (2006), os eventos casuais (chance events no original em inglês) definem-se por quatro critérios: são imprevisíveis, têm um efeito causal de mudança, são não intencionais e têm um cariz explicativo pelo significado social que lhes é atribuído. A contingência pode ser considerada em relação a acontecimentos, mas também ao seu encadeamento. Um evento está, geralmente, associado a um conjunto de condições e cadeias de incidentes que tornam possível a sua ocorrência. Embora se possam reconhecer neste processo lógicas inteligíveis de causalidade, alguns autores realçam o facto de a sucessão e a sincronização dos eventos ser, muitas vezes, contingente, e não produto de um determinismo rigoroso (Becker, 1994; Boudon, 1990).

RUTURAS E DISRUPÇÕES

Todos os percursos de vida são marcados, em algum ponto do tempo, por momentos de rutura (Javeau, 2006). Tratam-se de ocorrências ou situações que operam uma quebra naquilo que são os quadros habituais e rotineiros de ação dos sujeitos. Enquanto parte da condição humana em sociedade, estas disrupções são geralmente temporárias e exigem dos sujeitos uma resposta de reposição da continuidade e da coerência que atribua sentido ao ocorrido na biografia pessoal (Becker, 1997). De acordo com Voegtli (2004), as ruturas não têm necessariamente a sua origem em situações abruptas, podendo resultar de processos faseados. Para além disso, podem produzir manutenção ou mudança social e configuram-se frequentemente em alterações de estatuto social institucionalmente enquadradas. A noção de rutura biográfica foi particularmente popularizada em sociologia por Michael Bury (1982) na análise que fez dos impactos de doenças crónicas nas biografias individuais.

Embora não haja muita literatura focada especificamente na conceptualização das noções de rutura e disrupção, tratam-se de designações mobilizadas com bastante frequência nas abordagens do curso de vida, relativamente a um leque alargado de problemáticas (ruturas profissionais, conjugais, amorosas, de confiança, etc.).

EPIFANIAS

Existem momentos no percurso de vida, problemáticos do ponto de vista existencial, que constituem uma revelação pessoal com efeitos consideráveis na biografia. Autores como Denzin (1989, 2001) e McDonald (2008) designam-nos por epifanias. São mudanças súbitas de perspetiva que alteram as estruturas de significado da vida dos sujeitos, nomeadamente do ponto de vista identitário. Podem ser mais ou menos ritualizadas e rotinizadas, ou assumir um cariz desestruturado, e ter feitos positivos ou negativos. Tal como sucede com os pontos de viragem, o sentido que lhes é atribuído ocorre apenas retrospetivamente.

Com base numa análise de conteúdo de literatura de diferentes áreas sobre esta problemática, McDonald (2008) identificou uma listagem de seis ­elementos caracterizadores das epifanias. Em termos gerais, são antecedidas por períodos de ansiedade e turbulência interna, são repentinas e abruptas, produzem mudanças profundas na identidade pessoal, constituem uma tomada de consciência face a algo novo, são significativas na vida dos sujeitos, e os seus efeitos têm uma natureza duradoura.

TRANSIÇÕES

As crises biográficas surgem frequentemente associadas a momentos de transição nas biografias. As transições são parte integrante da trajetória individual na constituição dos percursos de vida e representam a passagem de uma condição a outra, em termos de fase de vida, desempenho de papéis sociais ou mudança de estatuto social (Elder, 1985; Hughes, 1971). Por implicarem processos de adaptação a uma nova realidade, podem estar na origem de sentimentos de insegurança e incerteza na procura de respostas, em dinâmicas de redefinição identitária e na implementação de condutas ajustadas. Contudo, as transições não produzem sempre crises biográficas, pelo que esta relação não deve ser pensada de forma direta e linear e é aqui invocada apenas como um modo possível de associação entre os dois fenómenos.

Muitas das transições do curso de vida são expectáveis, desejadas e enquadradas institucionalmente, tendo associados determinados ritos de passagem. Mas não é sempre este o caso. Algumas transições configuram-se muitas vezes naquilo que Ebaugh (1988) designa por saída de papéis sociais (role exit no original), enquanto processo de afastamento de um papel fulcral para a constituição identitária e simultânea construção de uma identidade associada a um novo papel que tem em conta o anterior. Este processo envolve dinâmicas de separação e de desidentificação. As crises que decorrem da transição entre papéis e contextos sociais originam aquilo que Berger e Luckmann (2004) designam por processos de ressocialização, enquanto reinterpretação do passado com o objetivo de manter a coerência face à situação presente. Quando a ressocialização não é eficaz na mudança entre contextos socializadores, por exemplo, em processos de mobilidade social, e se verifica, assim, um desajuste entre disposições incorporadas e contextos de ação, entre estruturas objetivas e subjetivas, está-se perante uma situação de crise (histerese do habitus ou efeito Dom Quixote), no sentido de Bourdieu (1998, 2002). O desfasamento entre esquemas habituais de perceção e de práticas, e novas situações para as quais os indivíduos não têm mecanismos básicos de orientação incorporados configura crises disposicionais.

TRAUMA CULTURAL E RISCO

O conceito de trauma em sociologia remete para ocorrências disruptivas que impactam grupos e colectividades sociais (Alexander, 2012; Alexander et al., 2004; Eyerman, Alexander e Breese, 2011; Sztompka, 2000). O designado trauma cultural consiste no sentimento subjetivo de uma coletividade que foi sujeita a um evento terrível que afetou a sua consciência coletiva, em termos de memórias e do ponto de vista identitário (Alexander, 2012). Não se restringe, por isso, à experiência individual ou grupal de sofrimento, mas ao modo como esse pesar é incorporado no sentido identitário que a coletividade constrói de si mesma. Situações como uma revolução, uma guerra, um genocídio ou um ato de terrorismo configuram potencialmente traumas culturais com impactos decisivos nas vidas dos indivíduos.

Autores como Beck e Giddens, ao refletirem sobre a questão do risco nas sociedades de modernidade avançada, evidenciam precisamente o modo como ocorrências estruturais com impactos na coletividade têm simultaneamente, de forma indissociável, implicações profundas nas vivências e perceções individuais. O risco, enquanto parte integrante da vida nas sociedades contemporâneas, emerge como consequência do desenvolvimento científico e tecnológico e adquire um cariz cada vez mais global (Beck, 1992, 2000). Os altos riscos de baixa probabilidade, tal como Giddens (2000) os preconiza, são riscos que ninguém escolhe correr e cuja responsabilidade não pode ser diretamente atribuída a alguém em particular (Beck, 1992, 2000), mas que estruturam a existência humana.

PREVISIBILIDADE E ENQUADRAMENTO

Assumindo que a existência humana é ordenada socialmente e que o percurso biográfico dos indivíduos se organiza em torno de sequências de fases e etapas institucionalmente reguladas, a previsibilidade é uma das características da vida em sociedade. Contudo, como a discussão prévia permitiu perceber, as trajetórias dos sujeitos são também configuradas e compostas, de modo determinante, por eventos inesperados com efeitos consideráveis nas escolhas e nas práticas individuais.

A imprevisibilidade refere-se a sequências de ação que não são possíveis de prever (pelo menos parcialmente), quer do ponto de vista dos sujeitos envolvidos, quer por parte dos cientistas sociais (Grossetti, 2004, 2006, 2009). O facto de não ser possível antecipar uma situação disruptiva pode estar na origem de incerteza, insegurança e desorientação. Contudo, não se trata de um fator exclusivo e determinante na emergência de uma situação de crise no percurso biográfico. Não só porque existem graus diferenciados e formas variáveis de imprevisibilidade, como também porque é necessário atentar ao enquadramento institucional de eventos potencialmente causadores de ruturas.

O facto de uma situação de crise ser inesperada (nos momentos, resultados ou em ambos), não significa necessariamente que seja desregulada. Existem ruturas socialmente expectáveis e programadas, como é o caso das que decorrem de transições, que correspondem, grande parte das vezes, a mudanças de estatuto e papéis sociais (Javeau, 2006; Glaser e Strauss, 2010; Strauss, 2009). Neste sentido, reforça-se a ideia de que as crises não têm de constituir invariavelmente situações anómalas e patológicas. Sendo frequentemente inevitáveis e parte integrante dos percursos de vida dos sujeitos, existem instituições que desempenham o papel de gerir e apoiar, dentro de determinados limites, os processos e os efeitos das crises geradas nestas circunstâncias (Voegtli, 2004). No entanto, existem também disrupções que são inesperadas para os indivíduos, mas que são expectáveis coletivamente, existindo, por isso, um conjunto de respostas institucionais previamente delineadas para lidar com as suas consequências. É o caso, por exemplo, das situações de doença e de desemprego. Associadas a estes contextos estão muitas vezes aquilo que Merton (1968) designou por durações socialmente esperadas, em termos do tempo expectável por parte das instituições e das outras pessoas para efetuar as transições, ou para lidar com as consequências de ocorrências disruptivas.

O enquadramento institucional é suportado pela existência de ritos de passagem, que cumprem a função de atenuar a insegurança e a desorientação que podem resultar de transições e momentos de rutura. Estes ritos, representando a institucionalização das ruturas, reforçam a integração social, procurando minimizar efeitos negativos e a perturbação da vida individual e social (Ebaugh, 1988; Hughes, 1971; Mazade, 2011; van Gennep, 1981).

A existência de suporte por parte das instituições a situações de crise permite perceber que ocorrências imprevisíveis no percurso biográfico do ponto de vista dos indivíduos podem, na realidade, ser previsíveis no plano da coletividade social, por corresponderem a padrões definidores de etapas biográficas (Soulet, 2009), e por existirem procedimentos específicos para situações de risco de colapso da realidade (Berger e Luckmann, 2004) e instituições e profissionais cuja função é precisamente lidar com os problemas que daí decorrem (Grossetti, 2004). Portanto, uma situação disruptiva para os sujeitos pode ser rotineira para as sociedades em que eles se inserem, que ativam o apoio prestado por instituições procurando atenuar efeitos negativos (Giddens, 2004, pp. 60-61).

EFEITOS E REVERSIBILIDADE

A relevância do estudo sociológico das crises biográficas assenta, em grande medida, nos efeitos que as mesmas podem ter nos percursos de vida dos sujeitos. Os momentos e acontecimentos listados anteriormente definem-se, sem exceção, pelo impacto significativo que têm nas perceções, escolhas e práticas das pessoas. O facto de se depararem com algo inesperado, com uma nova realidade ou com a rutura de hábitos incorporados requer que os indivíduos se ajustem a novos parâmetros de ação, contextos e configuração de pelo menos parte das suas dimensões de existência. Deste processo resultam consequências com maior ou menor impacto nas vivências individuais.

A amplitude dos efeitos das crises biográficas pode ser pensada em torno de três eixos. O primeiro diz respeito ao contágio para outras esferas de vida (Bidart, 2006; Mazade, 2011). A disrupção ou transição pode ocorrer num dado segmento de existência, mas o seu impacto ser de tal ordem que afeta outras dimensões de vida. A profunda interrelação entre as diferentes trajetórias que compõem o percurso biográfico torna particularmente difícil isolar e limitar os efeitos de eventos disruptivos a apenas uma esfera de vida. Uma parte substancial dos problemas que os sujeitos enfrentam quando atravessam uma situação de crise passa precisamente pela dificuldade que têm em controlar essa dispersão de impactos que tende a ocorrer de forma não intencional.

O segundo remete para a irreversibilidade dos efeitos. Tal como definido por Grossetti (2004, 2006, 2009), consideram-se irreversíveis as consequências que assumem um cariz relativamente duradouro na biografia e que se estendem para lá da escala de tempo que delimita a situação de crise. Trata-se, contudo, de uma irreversibilidade sempre relativa. É possível reverter algumas mudanças. Contudo, pelo facto de estarmos perante eventos cujo impacto gera mudanças ao nível individual, desfazer e eliminar o sucedido nunca significaria voltar ao ponto de partida pelas marcas (materiais ou não) que deixam.

O terceiro eixo de análise da amplitude dos efeitos das crises biográficas diz respeito aos recursos mobilizados. A vivência de uma situação de crise coloca os indivíduos numa posição de incerteza e de suspensão temporária de sentido. Esta etapa é designada por fase de latência (Négroni, 2009), período crítico (Bidart, 2006), limbo (Becker, 1997), ou moratória (Mazade, 2011) e consiste basicamente num intervalo entre dois registos de ação, ou seja, é um tempo de hesitação que sucede uma ocorrência marcante e precede a tomada de decisão e o solucionar da crise. Os sujeitos encontram-se numa encruzilhada, defrontam novos constrangimentos e abre-se, muitas vezes, um novo espaço de possíveis, pelo que se veem forçados a considerar opções, avaliar obstáculos e fazer escolhas. Apesar da incerteza que enfrentam e da quebra de rotinas e hábitos incorporados, os indivíduos não estão totalmente desprovidos de suportes para agir. A atribuição de sentido ao sucedido e a tomada de decisão são, no fundo, feitos com base nos recursos a que podem aceder (Bury, 1982; Grossetti, 2004; Soulet, 2006).

O contágio para outras esferas, a reversibilidade e os recursos combinam-se de forma variável na produção de efeitos ao nível estrutural, nomeadamente em termos de reprodução ou mudança sociais. As disrupções no percurso biográfico podem decorrer intencionalmente de escolhas individuais, como ocorre muitas vezes nos casos de separação conjugal ou demissão laboral. Mas resultam também, frequentemente, de circunstâncias externas aos sujeitos, sendo impostas do exterior, independentemente da vontade dos indivíduos. Lógicas estruturais e contextuais (constrangimentos, oportunidades, recursos, contextos, circunstâncias) podem, neste âmbito, comportar dinâmicas de continuidade e estabilidade ou, por outo lado, de rutura e mudança. Aquilo que resulta desta componente exógena aos sujeitos depende, contudo, do modo como os mesmos interpretam, de forma positiva ou negativa, essa situação inicial e lhes dão resposta (resignando-se ou resistindo).

Nesta equação deve também ser considerada a importância da sua dimensão temporal. A amplitude das suas consequências resulta muitas vezes da simultaneidade e sincronização de determinados eventos, cuja influência e sentido são conferidos mutuamente. O tempo curto da crise tem impacto no tempo longo do percurso biográfico, tornando frequentemente os seus efeitos irreversíveis (Bidart, 2006). Trata-se aqui da emergência de um novo quadro de práticas caracterizado pela reorientação da trajetória, no sentido de Abbott (2001), que requer a consideração e o cruzamento de diferentes escalas temporais na definição de cursos de ação adequados: o tempo imediato do quotidiano que foi perturbado por uma dada ocorrência ou dinâmicas de transição tem de ser vivido e resolvido tendo por referência o passado incorporado e o modo como a biografia é afetada no futuro em termos da sua configuração e orientação. Mas o tempo da crise (período crítico de incerteza e indecisão) pode também ser pensado enquanto tempo médio/longo se não for enquadrado na extensão da biografia e for antes contrastado com a tomada de decisão associada à superação de momentos difíceis que aparenta muitas vezes ter um cariz de imediatismo. Os designados ingredientes da ação estão também inscritos em diversas temporalidades que se entrecruzam na análise das crises biográficas, nomeadamente o tempo longo das estruturas sociais, o tempo médio dos contextos familiares e o tempo mais curto das interações quotidianas (Bidart, 2006).

CONSCIÊNCIA E REFLEXIVIDADE

O modo como os sujeitos lidam com situações de crise depende não apenas dos contextos por onde se movem e dos recursos a que neles têm acesso, mas também do modo como subjetivamente e de forma consciente percecionam, interpretam e atribuem sentido às ruturas. O exercício da reflexividade desempenha, de facto, um papel central na vivência de momentos problemáticos. Por reflexividade entende-se aqui a capacidade, comum a todas as pessoas, de se pensarem a si mesmas tendo por referência as suas circunstâncias sociais (Archer, 2003). Enquanto condição de existência em sociedade, é formada, exercida e tem eficácia causal de forma socialmente diferenciada, de acordo com as origens sociais e os enquadramentos de ação dos sujeitos (Caetano, 2016, 2017; Nico e Caetano, 2017).

Considerar a importância da reflexividade nos processos de crise implica reconhecer que a ação social se explica por mecanismos quer conscientes quer não conscientes, envolvendo tanto processos de racionalização e deliberação reflexiva, como a ativação de esquemas incorporados que atuam sem que os sujeitos deles se apercebam, por via de um sentido prático (Bourdieu, 2001, 2002). Em situações de crise, o papel da reflexividade individual tende a sobrepor-se a este último na procura de uma orientação alternativa das condutas sociais. No entanto, aquilo que constitui a subjetividade dos sujeitos, palco do exercício da reflexividade, foi constituído em contextos socializadores que, através dos processos de interiorização da exterioridade, delimitam o campo de possíveis da consciência de cada pessoa. O que significa que a reflexividade, ao ser ativada para dar resposta a uma situação de crise, pressupõe também os sistemas de disposições incorporados.

A reflexividade individual tende a ser particularmente ativada quando o sentido prático não é suficiente para orientar a ação, ou seja, quando há um desajuste entre contextos e esta orientação tácita (Lahire, 2003). A existência de uma rutura face ao domínio prático do mundo exige que a ação seja tomada como objeto para poder ser concretizada. Em contextos de rápida mudança das sociedades contemporâneas são inúmeras as situações de confronto entre o incorporado e o novo (Archer, 2012; Lahire, 2003).

Ocorrências marcantes, geradoras de crises biográficas, como as que têm até aqui sido discutidas, forçam os indivíduos a serem reflexivos porque deixam de poder orientar (ainda que parcialmente) o presente e o futuro de acordo com os mesmos parâmetros do passado. A procura e definição de uma nova forma de organização da vida, adequada às novas circunstâncias, exigem reflexão. Distanciando-se de si mesmos e objetivando-se, os sujeitos têm de ajustar a sua autoimagem. Assumindo que têm os seus próprios esquemas de observação e interpretação daquilo que os rodeia, na sequência de momentos disruptivos esses quadros interpretativos são afetados, o que exige um trabalho interno de atribuição de sentido. Nalguns casos ocorrem pequenos ajustes e processos adaptativos face ao que são as estruturas mentais básicas dos ­indivíduos; noutros, verifica-se mesmo uma reestruturação mais ampla dos esquemas mentais (disposicionais e reflexivos) e do modo como se veem a si mesmos e aos outros no mundo. Ocorre também muitas vezes uma reestruturação (pelo menos parcial) do seu quotidiano, frequentemente reorganizando tarefas quotidianas que tomavam como garantidas (Caetano, 2016, 2017). Os hábitos e rotinas entram no campo de consciência dos indivíduos e passam a ser objeto de questionamento porque deixam de ser viáveis nos seus novos enquadramentos de vida. Basicamente têm de reaprender a viver em circunstâncias diferentes. É também através do exercício da reflexividade que mobilizam e reconvertem os recursos que consideram mais ajustados aos novos contextos (Soulet, 2006). No fundo, a reflexividade atua como instrumento de orientação das práticas para fazer face à incerteza que caracteriza os períodos de crise.

IDENTIDADE E INTEGRAÇÃO SOCIAL

O exercício da reflexividade que resulta de situações de crise enquadra-se em processos mais vastos de redefinição identitária. Como tem vindo a ser destacado, os momentos e acontecimentos que despoletam disrupções têm efeitos profundos na vida dos sujeitos, não apenas em termos da sua estruturação material e rotineira, mas também no que diz respeito às visões que os indivíduos têm do mundo e sobretudo de si mesmos. A quebra de rotinas e do que é habitualmente tomado por garantido força as pessoas a saírem de si e dos seus hábitos para se tomarem a si e às suas práticas e ideias como objeto, de modo a lidarem com o sucedido. Os sujeitos questionam quem são e o que fazem, e procuram adaptar-se e restaurar ordem nas suas existências, redefinindo os sentidos do self, do mundo e da vida em termos gerais (Becker, 1997). Face à perda de confiança em si e nas instituições e sistemas abstratos que resulta frequentemente de situações de rutura (Burnay, 2006; Giddens, 2001), os indivíduos revelam capacidade para integrarem ocorrências inesperadas na sua autoidentidade e para produzirem novas assunções sobre as suas vidas que passam a tomar por garantidas (Giddens, 2001). A adaptação às novas realidades emergentes das crises biográficas consiste, acima de tudo, num trabalho identitário que assenta em diferentes dimensões.

Desde logo, envolve o desenvolvimento de um sentido de continuidade e coerência. Uma ocorrência disruptiva tende a criar uma descontinuidade entre o eu passado e o eu presente, e a introduzir dissonância na biografia individual. Neste âmbito, os sujeitos sentem, muitas vezes, que não são os mesmos que eram (pelo menos parcialmente), perspetivando um contraste acentuado, aparentemente irresolúvel, entre duas realidades e dois momentos temporais das suas vidas (Becker, 1997; Strauss, 2009). Para restaurarem continuidade e coerência ao percurso biográfico as pessoas reinterpretam o passado e reelaboram projetos de futuro para conseguirem integrar nos seus trajetos novas circunstâncias de vida e conceções de si no mundo (Bidart, 2006; ­Burnay, 2006; Caetano, 2016, 2017; Voegtli, 2004). As rotinas quotidianas (novas ou alteradas) desempenham um papel central a este nível, estruturando – e por isso ordenando socialmente e atribuindo lógica, sentido e segurança ao nível individual – o que parecia desordenado e mesmo caótico (Becker, 1997). Mesmo que a coerência dos percursos de vida e dos esquemas mentais não seja verificável empiricamente – porque os sujeitos se movem por contextos sociais heterogéneos e vão incorporando essa diversidade –, é, contudo, um mecanismo social importante de preservação pessoal. A unidade de si, enquanto ilusão socialmente fundamentada, é aliás mantida e fomentada por múltiplas instituições e ocasiões da vida em sociedade (Becker, 1997; Lahire, 2003).

O trabalho identitário decorrente de situações de crise não se esgota, contudo, na relação que os sujeitos estabelecem consigo mesmos, sendo também indissociável do relacionamento que mantêm com outros significativos. Como afirma Becker (1997), as histórias de disrupção são, por definição, histórias de diferença. Diferença face à sua identidade anterior (Exley e Letherby, 2001) e diferença face aos outros indivíduos. Lidar com a situação de crise é nalguns casos eliminar ou minimizar esse sentido de diferença (Becker, 1997), noutros é exponenciá-lo na construção de uma nova identidade (Ebaugh, 1988). A criação de novos grupos de referência, a integração em redes de pessoas que passam ou passaram por experiências similares, a aproximação a indivíduos que experienciam as mesmas fases de transição de ciclo de vida e o reajuste do papel desempenhado nas redes interpessoais em diferentes esferas de vida são tudo estratégias relacionais associadas a processos identitários em situações de crise. Ao mesmo tempo que desejam que a sua singularidade seja reconhecida e compreendida pelos outros, não querem, por outro lado, ser estigmatizados (Goffman, 1990) e tratados como estranhos (Becker, 1963; Exley e Letherby, 2001), precisamente porque para que os indivíduos mantenham a sua identidade e pertença grupal precisam de estar inseridos em meios que as confirmem (Berger e Luckmann, 2004).

Os processos identitários associados às disrupções, momentos críticos e transições estão ainda intimamente conectados à relação que os sujeitos estabelecem com as estruturas sociais, nomeadamente com os constrangimentos que não podem controlar e com as possibilidades e recursos que têm à sua disposição para lidarem com a sua situação, criando um espaço de possíveis ao nível objetivo e subjetivo (Voegtli, 2004). Face às múltiplas crises de nível global, nacional e local a que se tem assistido nos últimos anos, em diferentes partes do mundo, e afetando múltiplas esferas de atividade humana, assume ainda maior importância compreender a dialética entre estruturas e indivíduos. Disrupções vividas individualmente e com impacto nas identidades e vivências quotidianas, como por exemplo o desemprego ou dificuldades económicas, têm frequentemente origem em processos sociais mais vastos que não dependem do controlo dos indivíduos. São situações impostas externamente e que forçam as pessoas a encontrar recursos (eles próprios desigualmente distribuídos), dentro dos seus contextos e enquadramentos estruturais, para lidarem com as consequências dessas crises.

Um dos principais efeitos das crises biográficas é o da perda de controlo, geralmente parcial e temporária, sobre as suas vidas, sobretudo face a ocorrências inesperadas. Em casos mais extremos, como aqueles que Goffman (1991) relata num hospital psiquiátrico, ocorre mesmo aquilo que o autor designa por mortificação do self, ou seja, o processo mediante o qual os indivíduos perdem a sua privacidade e autonomia e passam a ser totalmente controlados pela organização em que estão inseridos. Procurar minimizar as consequências negativas e recuperar pelo menos algum desse controlo faz parte das estratégias em que os indivíduos investem de atribuição de continuidade e coerência aos seus percursos (Becker, 1997; Négroni, 2009). Apesar de não poderem controlar aquilo por que estão a passar, podem, ainda assim, ter alguma margem de ação sobre o modo como lidam com o ocorrido e perspetivam o seu futuro, ajustado às novas circunstâncias. Aquela que é frequentemente descrita por alguns autores como a etapa derradeira de um processo de crise é precisamente a fase em que os sujeitos estão socialmente comprometidos, investidos (no sentido de engaged e committed) e integrados, afastando-se de momentos de limbo e indecisão e sendo capazes de tomar decisões, atribuir coerência ao percurso e agir em conformidade (Becker, 1997; Mazade, 2011; Voegtli, 2004). No fundo, ocorre a refundação das relações de confiança consigo mesmos, com os outros e com os sistemas abstratos (Burnay, 2006).

VULNERABILIDADE E SOFRIMENTO

A vivência de uma crise biográfica acarreta, por definição, a experiência de sentimentos negativos de sofrimento, angústia, ansiedade, incerteza e insegurança. Face à desestruturação, mesmo que temporária, de tempos, hábitos mentais e práticas rotineiras, os sujeitos ficam numa situação de vulnerabilidade não só pessoal (porque têm de lidar com mudanças identitárias e com a diferença face aos outros), mas também social (porque o seu estatuto pode mudar, ou simplesmente porque se alteram alguns padrões relacionais). Os registos habituais de pensamento e ação não permitem, em grande medida, dar resposta imediata às novas situações emergentes, gerando emoções ­negativas, com as quais os indivíduos têm de lidar. Muitas vezes são sentimentos transitórios de mal-estar, mas noutras ocasiões atingem os sujeitos de forma mais profunda, conduzindo mesmo a depressões clínicas (Mazade, 2011). Determinadas situações geram esta componente negativa, mas parte do sofrimento experienciado pelos indivíduos advém também da luta que os mesmos enfrentam na reconstrução de um sentido positivo para si mesmos e para o mundo em que vivem, por contraponto à severidade da ocorrência que abalou a sua segurança ontológica (Wilkinson, 2005). Ainda que a superação de uma crise biográfica possa levar as pessoas a identificarem aspetos positivos, em termos de auto-crescimento e resiliência, como resultado da sua experiência, na realidade, são sobretudo emoções negativas que caracterizam o período disruptivo (Becker, 1997; Exley e Letherby, 2001).

O modo como os indivíduos olham para si mesmos, para os outros e para aquilo que os rodeia espelha uma relação emocional com o mundo (Archer, 2004; Burkitt, 2012). Considerando as emoções comentários às preocupações centrais dos indivíduos, na medida em que se direcionam para aquilo que eles mais valorizam (Archer, 2003, 2004), ruturas e transições são momentos marcados pela experiência de intensos estados emocionais. As emoções geradas por determinados eventos e processos são indicadores do grau de preocupação que os sujeitos lhes dirigem e da importância que os mesmos assumem nas suas vidas. Em situações de crise as pessoas vêem-se em estados de turbulência emocional e sentem necessidade não só de atribuir sentido aos seus sentimentos, como também de geri-los. É, em parte, a forma como lidam com essas emoções que determina os resultados da crise biográfica e os efeitos, mais ou menos duradouros, que a mesma pode ter nas suas vidas (Bidart, 2009; ­Grossetti, 2004).

Neste sentido, para além de ser um trabalho de reconstrução identitária, o modo como a crise é gerida é também, de forma indissociável, um trabalho emocional. Os indivíduos têm de gerir, de forma reflexiva, as suas próprias emoções internamente, na relação que estabelecem consigo mesmos, mas também na relação com os outros, que têm as suas próprias expressões emocionais (Barbalet, 2001; Burkitt, 2012; Caetano, 2016; Exley e Letherby, 2001; Hochschild, 1983; Holmes, 2010). Para além dos outros significativos, pode haver também recurso a apoio institucional, por via da terapia, que ajuda os sujeitos a viverem com, a ultrapassarem e a converterem as suas emoções negativas quando não encontram as ferramentas em si e nos outros para fazê-lo (Caetano, 2016).

A gestão emocional ocorre enquadrada por expectativas e enquadramentos sociais relativamente à adequação da manifestação de determinadas emoções em circunstâncias específicas. No fundo, face aos diferentes tipos de crise biográfica há formas mais e menos apropriadas de sentir e expressar emoções (sofrimento, em particular), que obedecem, não apenas a critérios psicológicos, mas também a normas sociais e culturais (Otero e Namian, 2011). Como afirma Hochschild (1983), tratam-se de regras de sentimentos, que delimitam a intensidade, a direção e a duração das emoções mais adequadas em determinada situação, e regras de expressão emocional, que definem quando e como deve ocorrer a manifestação de emoções em circunstâncias concretas. Em articulação com estes enquadramentos e expectativas sociais, os sujeitos estão dotados de capital emocional para lidarem com os estados despoletados pelas crises biográficas. Ou seja, os indivíduos têm os seus próprios recursos emocionais (que incluem conhecimento, contactos, relações, bem como competências afetivas) para gerirem e filtrarem o que sentem, bem como as emoções dos outros (Reay, 2004).

SENTIDOS SOCIOLÓGICOS DAS CRISES BIOGRÁFICAS

A discussão centrada em elementos da problemática das crises biográficas permitiu identificar eixos centrais de análise, que possibilitam circunscrever a dispersão conceptual associada a esta temática e, assim, delimitar o campo analítico deste conceito.

A crise biográfica é definida como uma fase de vida de uma pessoa marcada pela perturbação de hábitos e rotinas associadas às práticas e aos esquemas de pensamento num dado segmento de existência, com possíveis efeitos noutras esferas de vida. Inclui situações de viragem, rutura e transição com implicações variadas na biografia, que acarretam, para quem as vive, uma carga negativa através da experiência de sofrimento, incerteza, desorientação e tensão inter e intra individual. Devido à suspensão, geralmente temporária, dos quadros habituais de ação e de pensamento, as crises requerem a mobilização de mecanismos de adaptação que implicam a ativação da reflexividade individual na interpretação da situação, na atribuição de sentido ao sucedido, no ajuste dos quadros mentais, no reequacionamento de opções, na procura de recursos e na definição de cursos de ação adequados. A duração das crises é variável, sendo que as mesmas podem ser despoletadas por um evento ou momento específico, ou podem decorrer de processos continuados e prolongados no tempo. Podem ainda ser mais ou menos previsíveis e enquadradas institucionalmente (em termos de eventos, momentos, efeitos e respostas).

Estas considerações têm por implicação que uma situação de crise se define pelo facto de os indivíduos a terem vivido como tal. Implicam ainda que o foco analítico seja direcionado para um conjunto de dimensões do conceito que se considera serem centrais para a sua análise (quadro 1).

 

 

As dimensões temporal e sequencial remetem para a origem da crise biográfica e permitem identificar o que é a situação de crise. Por um lado, a componente temporal dá conta do período em que a mesma ocorre, da sua duração, localização no percurso biográfico e eventual simultaneidade e sobreposição com outros eventos e fases de vida marcantes. Por outro, a dimensão sequencial representa o modo como a crise decorre. Desde logo, é importante compreender o que despoleta a crise, ou seja, identificar se foi causada por um evento ou sequência de eventos, ou se foi antes resultado de um processo mais prologado no tempo. Há também que considerar o grau de previsibilidade, do ponto de vista dos sujeitos e da sociedade, associado ao processo de crise, quer em termos dos eventos que a originam, quer no que diz respeito à ocorrência da crise como produto de determinados acontecimentos, quer ainda no que concerne o momento em que a mesma ocorre no percurso biográfico. Importa igualmente perceber se a crise é desencadeada voluntariamente por escolhas individuais, se é o efeito de dinâmicas estruturais ou contextuais que os sujeitos não puderam controlar, ou se é consequência de uma combinação de fatores individuais, estruturais e contextuais. Assumir o cariz processual das crises biográficas é ainda destacar a sua configuração faseada, pelo que é fundamental reconhecer as suas diferentes etapas e respetiva sequência, desde a sua origem até à sua possível superação. Para além disso, é relevante averiguar se se trata de uma crise que já ocorreu no passado e se é provável que venha a ser repetida no futuro.

As dimensões contextual, material e subjetiva permitem perceber como a crise é vivida pelas pessoas, remetendo assim para uma componente mais experiencial. Ao nível contextual importa compreender não só em que esfera de vida a crise biográfica tem origem, como também se os seus efeitos se circunscrevem a esse contexto ou se se propagam para ouros domínios de vida. Desta forma é possível identificar a dimensão e alcance da situação disruptiva. É também neste âmbito que se averigua a existência de um eventual enquadramento institucional da crise, seja em circunstâncias social e individualmente expectáveis (como as transições de vida), seja em situações inesperadas para as pessoas, mas coletivamente previstas (como as doenças). Importa atentar em particular aos ritos e mecanismos de gestão, suporte e adaptação que podem apoiar os sujeitos a lidar e superar obstáculos. Do ponto de vista material, o foco analítico é direcionado para os diferentes tipos de recursos a que os indivíduos acedem em momentos de crise quer para fazerem sentido do ocorrido, quer para definirem linhas de ação que lhes permita lidar com disrupções e superá-las. Integram esta dimensão recursos socioeconómicos – que remetem quer para as origens sociais dos sujeitos, quer para os seus capitais escolares, culturais e económicos –, recursos relacionais – que dizem respeito às redes de relacionamento das pessoas (familiares, amigos, vizinhança, etc.) – e institucionais – por via da integração dos indivíduos em enquadramentos formais que facultam instrumentos de apoio (terapia, por exemplo).

A forma como as situações de crise são vividas depende ainda do modo como subjetivamente os sujeitos as percecionam e interpretam. Interessam sobretudo as dinâmicas conscientes da mente individual, já que face a uma rutura do familiar os indivíduos se veem forçados a refletir sobre o que aconteceu, procurando sentido no ocorrido, observando o que era tomado por garantido e delineando estratégias de adaptação. Contudo, como foi já referido, o campo de consciência de cada pessoa é delimitado pela incorporação de esquemas disposicionais associados aos contextos socializadores por onde os sujeitos se movem, pelo que é igualmente importante atentar às disposições incorporadas e ao modo como estas se articulam com a reflexividade na experiência subjetiva de crise. Os processos reflexivos decorrentes de situações de rutura têm também de ser pensados em estreita relação com dinâmicas de reconstrução identitária, já que a disrupção de rotinas e assunção de novos papéis sociais incorporam uma forte componente de questionamento por parte dos indivíduos sobre quem são e de redefinição do self na adaptação às novas circunstâncias. A centralidade, do ponto de vista identitário, das dimensões de vida afetadas pela crise biográfica é indissociável da força do impacto no modo como as pessoas se veem a si mesmas e aos outros. A este nível, é importante compreender se a vivência da crise é isolada (no sentido em que as pessoas em seu redor não estão a passar pelo mesmo, acentuando dinâmicas de diferença) ou coletiva (resultando numa experiência partilhada com quem atravessa situações similares).

A componente emocional é outro eixo fundamental para analisar o processo de crise. São sobretudo emoções negativas que caracterizam o período disruptivo, pelo que é necessário perceber o trabalho emocional em que os indivíduos investem para gerirem os seus sentimentos e reconstruírem sentido para si mesmos e para as suas vidas. A experiência subjetiva da crise deve ainda ser pensada atendendo à desejabilidade individual e social do evento ou processo desencadeador, ou seja, consoante se trate de algo que os indivíduos queiram que ocorra (o divórcio por escolha pessoal, por exemplo), ou algo que seja socialmente expectável (como é o caso da transição para a vida adulta). Por fim, é também importante considerar, na dimensão subjetiva, a componente agencial dos sujeitos, que se manifesta através do grau de controlo que têm sobre o processo de crise, da postura que adotam (aceitação, rejeição, resistência, resiliência, apatia, etc.), do plano de ação que delineiam (se for esse o caso) e das escolhas que fazem.

A última dimensão, a causal, remete para o que faz a crise, ou seja, para os efeitos concretos que a mesma tem nos percursos de vida das pessoas. Importa atentar ao impacto de situações disruptivas nos esquemas mentais dos sujeitos, nomeadamente em termos de possíveis ajustes disposicionais e desenvolvimento/ocultação de determinadas competências reflexivas. Estas alterações podem traduzir-se em reconfigurações identitárias e mudanças de postura perante a vida. Porque a crise representa precisamente processos de mudança, é fundamental compreender se se verifica algum tipo de reorientação dos trajetos individuais, alterações nas práticas e rotinas dos sujeitos e reconfiguração de projetos de vida. A análise deve ainda incidir sobre a reversibilidade dessas transformações, procurando perceber se os efeitos dos momentos de rutura podem ser, em alguma medida, mesmo que parcialmente, revertidos, quer por vontade individual, quer por constrangimentos contextuais e estruturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um modelo analítico com estes diferentes níveis e dimensões de análise permite estudar as crises biográficas de forma integrada e não como estando segmentadas e contidas numa determinada esfera de vida. Possibilita ainda entendê-las como um processo, com diferentes temporalidades, indissociáveis quer dos contextos sociais e enquadramentos estruturais em que ocorrem, quer da subjetividade de quem as vive.

Uma abordagem deste tipo, que requer aprofundar as componentes objetiva e subjetiva das crises, tem por implicação direta a mobilização de uma metodologia qualitativa, nomeadamente assente em métodos biográficos, que permita aceder às ocorrências, recursos, trajetórias e enquadramentos, mas também às interpretações, emoções, atitudes e identidades das pessoas que experienciam disrupções nos seus percursos de vida. Numa etapa posterior de pesquisa, a operacionalização do modelo teórico aqui discutido nas realidades sociais concretas das crises é feita através da realização de entrevistas biográficas. Num primeiro momento importa mapear os percursos individuais, nomeadamente os principais acontecimentos que ocorreram ao longo da vida de uma pessoa em diferentes esferas de existência e em fases do tempo distintas, numa perspetiva diacrónica. A problematização do conceito de crise assenta, em grande medida, na identificação das situações de rutura que este exercício permite. É dada especial atenção à configuração singular do trajeto pessoal, mas também à forma como este se articula com as estruturas sociais num dado período histórico. Os três patamares analíticos do modelo proposto permitem estruturar uma segunda parte do guião direcionada para a origem da crise, para o modo como é vivida e para os efeitos que tem na vida dos sujeitos.

O léxico das crises biográficas e as suas principais dimensões de análise foram aqui considerados tendo especificamente por referência a produção sociológica sobre o tema. A relevância deste enfoque disciplinar ganha particular relevância pelo facto de se tratar de uma problemática tradicionalmente associada a outras áreas científicas, nomeadamente à psicologia. A componente psicológica da vivência da crise é incontornável, na medida em que as pessoas se veem forçadas a lidar mentalmente com as ruturas que ocorrem ao longo das suas vidas. Contudo, o modo como lidam com essas ocorrências ou fases tem também uma forte componente social, como se viu a respeito da discussão das diferentes dimensões do modelo analítico proposto. Uma análise mais abrangente sobre estas questões implicaria combinar contributos de diferentes áreas científicas (sociologia, psicologia, antropologia, história, mas também neurociências e psiquiatria) na construção de uma perspetiva interdisciplinar sobre as crises biográficas. Este tipo de abordagem permitiria complexificar o próprio conceito de crise, no sentido em que a sua definição e análise integraria outros elementos para além dos que foram aqui discutidos (reações fisiológicas, funções cerebrais, por exemplo), com recurso também a instrumentos de recolha e a procedimentos analíticos distintos.

 

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Recebido a 20-12-2016. Aceite para publicação a 24-04-2017.

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