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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

FEIJÓ, Rui Graça (coord.)

Timor-Leste: Colonialismo, Descolonização, Lusutopia,

Porto, Edições Afrontamento, 2016, 572 pp.

ISBN 9789723614695

Daniel de Lucca*

*UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Campus dos Malês, São Francisco do Conde, Av. Juvenal Eugênio Queiroz, Centro - CEP 43900-000, Bahia Brasil. dandelucca@gmail.com


 

O livro que temos em mãos oferece um contributo inédito e de peso aos estudos sociais sobre Timor-Leste. Com mais de meio milhar de páginas, 22 artigos, além da apresentação e uma formidável introdução, a organização da obra constitui a materialização de um longo percurso de trabalho e uma ampla rede de contactos envolvendo investigadores, conferências e instituições portuguesas e estrangeiras. A própria realização da coletânea pode ser situada nos desdobramentos da trajetória de seu coordenador, Rui Graça Feijó, autor de inúmeros estudos e artigos sobre Timor-Leste e de pelo menos outros três livros sobre a experiência histórica e política timorense (Feijó, 2006, 2014, 2016). Conhecedor do terreno, Feijó deslocou-se ao país em diversas missões, tendo lá residido, estabelecido relações pessoais, trabalhado como docente universitário e inclusive atuado como assessor da presidência da República ao tempo de Xanana Gusmão. No conjunto das trocas intelectuais que levaram à feitura do livro, Feijó destaca a parceria e colaboração de Susana de Matos Viegas, antropóloga e coordenadora de outro projeto de pesquisa no país, cuja interlocução e inserção conjunta em campo contribuíram para o produto final. A este respeito, vale lembrar que Susana de Matos Viegas e Rui Graça Feijó organizaram na Fundação Oriente, em Lisboa, no ano de 2015, a exposição Morte e Vida Fataluko, resultado parcial da pesquisa coletiva em curso, que posteriormente também foi exibida no Arquivo & Museu da Resistência Timorense (AMRT), em Díli, no ano de 2016.

Por sua vez, a participação de diversos pesquisadores reconhecidos pela sua produção sobre Timor-Leste fornece ao livro uma faculdade rara, aquela somente vislumbrada a partir da sedimentação de longos períodos de observação e ponderação, no qual apenas o acúmulo atento das reflexões permite apreciar melhor a profundeza das linhas de força e de fratura que tensionam o real. Além de apresentar autores estrangeiros, alguns pouco conhecidos entre o público leitor de língua portuguesa, a publicação abrange pesquisadores de nacionalidades diversas, com as suas particulares visões e tradições disciplinares, o que dá ao livro um atraente tom internacionalista e comparativista. No folhear das páginas podemos apreciar estudos feitos por portugueses, australianos, ingleses, timorenses, franceses e uma autora nascida em Angola. Destacaria a ausência de alguma produção brasileira, visto que este país conta hoje com uma massa crítica considerável sobre o tema, com pesquisadores, grupos de estudo e projetos de pesquisa em universidade públicas voltados especificamente para Timor-Leste. Seja como for, o processo de feitura da coletânea é-nos apresentado como um enlace de diversos interesses e frutos, “uma cesta de cerejas: puxa-se por uma e vem um ramo delas…” (p. 8).

Os artigos estão distribuídos nas 3 grandes secções que estruturam o livro e buscam diferenciar importantes momentos da história timorense: “colonialismo”, “descolonização” e aquilo que o autor chama de “lusutopia”. Os títulos orientam a visão cronológica que estrutura a obra, respetivamente “uma análise da vida na colónia portuguesa e da natureza da presença europeia no território, a traumática e turbulenta descolonização que se prolongou até ao dealbar do novo milénio, e os desafios que se colocavam à nova nação independente e democrática em relação ao modo como podia encarar o seu próprio passado colonial” (p. 9).

Dos 22 autores que integram a coletânea, 10 são de nacionalidade portuguesa e os seus trabalhos concentram-se na primeira e na última secção. E, no conjunto da obra, a maior presença de artigos oriundos de académicos internacionais dedica-se aos “anos de chumbo” da ocupação indonésia. Interessa notar, também, que a maioria dos trabalhos desta segunda secção – chamada “descolonização” – volta-se especialmente para a trama das relações internacionais e das condicionantes geopolíticas que, de facto, foram determinantes para os acontecimentos de Timor-Leste no último quartel do século XX. Por contraste, a primeira e última secções – “colonialismo” e “lusutopia” – distanciam-se da escala transnacional e aproximam-se das dinâmicas internas e locais, demonstrando assim uma maior sensibilidade etnográfica e qualitativa no esforço de compreensão dos processos vividos pelos próprios timorenses. Em todo caso, é notável o esforço inter e transdisciplinar presente em vários artigos, o que revela como a potência da obra não se restringe unicamente aos estudos de Timor-Leste, mas também oferece importantes subsídios para diversos campos da pesquisa social: história colonial portuguesa, antropologia, ciência política, relações internacionais, também estudos pós-coloniais, da comunicação e de género. Assim, nas várias secções que compõe o livro podemos apreender a vida timorense desenrolar-se em histórias conectadas que transbordam, em muito, as fronteiras disciplinares, coloniais e nacionais.

A primeira secção, a maior, chama especialmente a atenção do leitor pelo peculiar diálogo entre história e antropologia. Temos aqui diferentes linhas de investigação que ajudam a mapear este diálogo interdisciplinar num campo mais alargado, plural e experimental: seja na direção de uma história da antropologia de Timor, seja no trabalho historiográfico orientado por conceitos e problemáticas de natureza antropológica, também na pesquisa etnográfica associada à hermenêutica do arquivo colonial, ou mesmo no sentido de uma antropologia das representações timorenses sobre o tempo e a história. São orientações distintas e diversas que estão contidas nestes estudos e que permitem, inclusive, interrogar e modular os sentidos mais clássicos atribuídos à noção de etnohistória. Ricardo Roque abre esta secção – “colonialismo” – com um ensaio instigante a respeito da linguagem cerimonial que se tornou comum tanto a colonizadores quanto a colonizados no Timor Português. Argumenta ali que a autoridade colonial e as tecnologias de governo, erguidas em fim do Oitocentos, se desenrolaram em função do mimetismo de etiquetas rituais e “usos e costumes” no contexto das negociações políticas entre a frágil administração de Díli e a miríade de “reinos” locais. Judith Bovensiepen, por sua vez, coteja os documentos portugueses a respeito do “reino de Funar” com distintas narrativas históricas veiculadas hoje na localidade. O cruzamento entre a crítica das fontes, a consideração sobre a posição dos interlocutores de campo e o próprio sistema diárquico timorense, de organização espiritual e política, coloca em coexistência temporalidades associadas ao período pré-colonial, bem como conflitos propriamente coloniais e pós-coloniais que habitam o presente.

Já Lucio Souza propõe uma leitura original sobre a Guerra de Manufahi (1911-1912) vista a partir dos periódicos portugueses e que muito pode interessar aos leitores timorenses, já que Dom Boaventura Sottomayor, líder máximo da revolta anti-colonial, é hoje tido como herói nacional, representado em monumentos, moedas e centro da atenção timorense na celebração centenária da Guerra de Manufahi. Lúcio analisa os distúrbios, sentidos e ruídos que estavam em tela entre os catorze mil quilómetros que separam Díli de Lisboa, contexto de uma “guerra de pacificação” comandada por uma recém-nascida república cuja expressão imperial se fez presente na mais distante colónia através do massacre.

Ainda nesta secção, Janet Gunter tece um relato corajoso e contundente sobre as tecnologias da morte e da violência extrema colocadas em prática durante a Segunda Guerra Mundial em Timor. Recorrendo a materiais díspares – escritos australianos e portugueses, narrativas timorenses e objetos em ruínas – Gunter dá especial atenção às conexões entre a maquinaria guerreira nipónica e as práticas autóctones ancestrais, cujos impactos levaram ao recrudescimento da “caça de cabeças”, ou mesmo à dificuldade dos nativos em realizar os seus cerimoniais funerários. Segundo Gunter, a impossibilidade de rituais de luto acabou por expandir o trauma do mundo dos vivos àquele dos “mortos inquietos”, pois não foram adequadamente honrados e sepultados. Dimensões como territorialidade, historicidade e religiosidade também são colocadas em questão no artigo assinado por Susana de Matos Viegas que, através do livro-diário de um padre catequista e de etnografias contemporâneas, adentra na terra dos Fataluko, na ponta leste da ilha. A tardia missionação na região é interpretada como um “encontro colonial” atravessado pelo problema da tradução linguística e religiosa, e a análise de Viegas explora os sentidos do batismo e da autoridade num contexto em que a cruz passa a ser acolhida nos túmulos Fataluko ao lado do arapou-cau (“escada” feita de chifres de búfalos), revelando na materialidade funerária o “sistema paralelo” de co-habitação de valores e crenças.

No final da primeira secção temos artigos de dois pesquisadores timorenses, Vicente Paulino e Sabina da Fonseca, que abordam os apontamentos etnográficos de Manuel Ferreira, fazendo da antropologia colonial portuguesa objeto da reflexão, confrontação e crítica. Também noutro ensaio de autoria exclusiva de Vicente Paulino temos uma visão alargada da história do jornalismo e da imprensa no Timor Português. Mas, considerando a tardia instalação do “capitalismo de imprensa” no território e seus impactos no nacionalismo e na literatura ficamos ansiosos por um maior embate com as teses de Benedict Anderson, além de estranhar o silêncio em relação ao primeiro livro publicado no Timor Português – Flores de Coral – de Alberto Osório de Castro (1908), juiz-poeta metropolitano, cuja importância ecoou na história literária timorense posterior. Outros dois trabalhos colocam o Estado colonial em questão através da abordagem historiográfica. Fernando Figueiredo destaca a evolução das relações político-administrativas entre Portugal e Timor entre 1945 e 1975 no contexto de um “colonialismo débil”, enquanto Luís Filipe Madeira penetra no emaranhado da contabilidade pública apontando o descompasso entre os gastos não computados, o baixo investimento no desenvolvimento do território e o crescente custo do contingente militar quando era enraizado o mito de Salazar como “mago das finanças”.

A segunda secção – “descolonização” – constitui uma rica contribuição ao entendimento da “questão de Timor” num campo geopolítico mais alargado, considerando os equilíbrios entre os poderes globais, regionais e locais. Autores reconhecidos, com estudos e inclusive livros próprios sobre Timor-Leste, destacam aqui as negociações ocorridas no sistema internacional da Guerra Fria envolvendo as posições do “ocidente”, da ONU, da antiga potência colonial, da nova potência neocolonial e da Austrália.

A partir de fontes anglófonas variadas, Moisés Silva Fernandes analisa a construção do consenso entre as potências “ocidentais” a respeito da inevitabilidade da absorção do Timor oriental pelo arquipélago vizinho, isso antes do violento golpe de Estado que levou à ascensão da “nova ordem” de Suharto, num momento em que a Indonésia e o nacionalismo de Sukarno despontavam com importância no “bloco dos não alinhados”. O discurso da inevitabilidade do anschuluss indonésio de 1975 é reforçado no provocador ensaio de David Hicks. Investigador que desde a década de 1960 desenvolve estudos em Timor, Hicks parece radicalizar o argumento estrutural da inexorabilidade da ocupação militar, de modo que os condicionantes do evento já estariam dados anteriormente pela própria precariedade do investimento colonial no território, pelo abandono do contigente militar após o 25 de abril e pela “falta de maturidade” e “ingenuidade” da elite local timorense. Recordo-me de quando Hicks, numa conferência do Timor-Leste Studies Association, em Díli no ano de 2015, apresentou este último argumento de psicologia social, ao utilizar a palavra backward, a plateia timorense lotada no auditório protestou contrafeita: “afinal, o que significaria ser ‘maduro' naqueles conturbados tempos?”. Constatei que o tema da contingência e da agência histórica, secundarizados na análise de Hicks, insurgiram meio ao público que recusava entender a sua história como exógena aos sujeitos que a faziam.

Uma hipótese contrária à inevitabilidade da ocupação é proposta por dois autores franceses, Frederic Durand e Stéphane Dovert, que ao se debruçarem sobre fontes indonésias interpretam o destino de Timor como algo não pré-determinado. De modo interessantíssimo voltam-se para as hesitações e negociações feitas entre as fações da elite indonésia. Destacam, inclusive, o papel de setores da igreja católica indonésia a favor da integração de parte oriental da ilha e a posição diplomática de Moscovo que, no contexto de tensão com Beijing, aproximava-se de uma Jakarta mais anti--chinesa que anti-comunista, e assim não colocava o problema da autodeterminação de Timor em pauta.

Já Clinton Fernandes, baseando-se em fontes australianas, coloca em debate a receção pública da “questão de Timor” no continente austral, permitindo discutir os interesses de “segurança nacional” e os entraves da democracia australiana, um Estado que ainda hoje mantém um rígido controlo sobre os arquivos relativos ao período da ocupação e permanece cauteloso quanto ao ajuste da fronteira marítima e um novo acordo sobre o usufruto do petróleo com Timor-Leste. Peter Carey, através de documentação da ONU, focaliza Timor nos altos escalões da organização, sobretudo no Conselho de Segurança. Temos aqui um porto de observação privilegiado para entender como as potências globais exercem a realpolitik jogando entre as normas do direito internacional. A indeterminação de Timor redefinir-se-á ali com o fim da Guerra Fria e o desbloqueio dos processos travados no Conselho de Segurança pelo antagonismo e o poder de veto dos Estados-membros permanentes.

Por sua vez, o texto de Manuel Luís Real apresenta-nos de perto as dinâmicas e expectativas políticas vividas em Timor no singular contexto das eleições de Lautém, em 1975, evento do qual o autor do texto foi também ator do processo enquanto militar destacado em Timor. Esta experiência piloto no extremo leste da ilha colocou em prática novos sentidos políticos numa população que, vivendo sob um regime ditatorial e colonial, nunca antes participara de uma eleição. O texto também serve como documento importante para refletirmos sobre o lugar da democracia em Timor, sobretudo no meio rural, considerando uma história mais alongada de turbulências coletivas ocorridas em momentos de votação, passando pelo referendo de 1999 até às primeiras eleições do século XXI. O FITUN, organização de destaque no movimento estudantil da resistência timorense é analisado por Michael Leach. De facto, um setor negligenciado pela literatura e pelo debate público, principalmente considerando o conjunto das três frentes da resistência timorense: a armada, a diplomática e a clandestina. Esta última, a menos destacada nos discursos, memoriais e museus do país, é contudo a mais complexa e foi condição para o alargamento do sentimento nacionalista no território, além de principal base de recrutamento da resistência.

As contribuições de Manuel Luís Real e de Michael Leach são aquelas da segunda secção que se voltam detidamente para as formas locais de agência. Junto a estes dois artigos podemos aproximar o ensaio de Rui Graça Feijó, situado na terceira secção, mas que se reporta cronologicamente à ocupação indonésia e retoma, através de um relato mais pessoal e intimista, argumentos presentes em trabalhos anteriores. Feijó associa o exercício do poder às práticas de nomeação e analisa a manipulação do sistema de atribuição de nomes aos indivíduos em Timor. Como forma de marcar diferença em relação à presença linguística e cultural do invasor indonésio, os antigos nomes costumeiros e gentílicos da ilha foram substituídos por nomes lusificados e de origem católica como forma de reforçar uma identidade e uma história precedente à ocupação. De forma inesperada compreendemos, então, como no intervalo de uma geração a paisagem antroponómica de Timor--Leste foi completamente alterada pela ação dos próprios timorenses.

A terceira secção –“lusutopia” – é aberta com o trabalho de Paulo Castro Seixas, antropológo que viveu a infância e juventude no Timor Português, e que apresenta uma reflexão sobre a produção da alteridade considerando a longa história de trocas entre os ilhéus e outros povos e culturas. Através dos conceitos tetumófonos malae e maun, aprofunda as conexões entre a sociedade internacional e a nacional, propondo leituras transversais que cruzam o dentro e o fora através de formas de tradução e negociação de sentido. Por sua vez, Teresa Cunha inicia o seu trabalho destacando aquilo que chamou de “ressaca imperial”: os efeitos da violência sofrida em Timor nas estruturas sócio-afetivas da ex-metrópole. Na segunda secção do seu ensaio, Cunha ampara-se nos aportes do feminismo pós-colonial para problematizar “a nação delas” a partir da intensa narrativa de Mina-Be, que coloca em pauta o corpo político da mulher timorense em tempos de paz e guerra.

Já na original contribuição de Marisa Ramos Gonçalves aprendemos sobre a “arte de rua” em Díli em tempos de ocupação e de independência. É uma leitura instigante e generosa que articula pelo menos três questões que me parecem fulcrais à compreensão de Timor-Leste contemporâneo: 1) as tensões geracionais e a juventude vista como problema num país em que a média de idade não chega aos 19 anos; 2) as linguagens artísticas e visuais, bem como os sentidos propriamente comunicacionais e disruptivos destas, num contexto em que quase metade da população não tem acesso ao mundo letrado e é definida como “analfabeta”; 3) a complexidade da cidade e da experiência urbana timorense, o que nos faz pensar sobre a acelerada urbanização de Díli e Baucau frente ao mundo rural do interior montanhoso, onde a maior parte da população do território ainda vive. A autora sugere, também, que esta economia visual – expressa, observada e coibida nos espaços da rua – contribui para ampliar o repertório da imaginação nacional formando e questionando valores da identidade timorense.

Os dois últimos artigos do livro tocam em temas importantes relativos à governança, descentralização e democracia em Timor-Leste. Ambos analisam como o processo de edificação do Estado-nação, ao mesmo tempo que institucionalizou procedimentos políticos de cariz moderno, também reafirmou práticas e valores autóctones, desdobrando-se num aparente simultâneo processo de modernização e indigenização da administração pública. Processo este que merece, no entanto, ser mais cuidadosamente observado.

A partir do trabalho de campo nas zonas rurais, Déborah Cummings reconhece a sobreposição do Estado moderno e do direito costumeiro. No seu texto, Cummings desloca prerrogativas de uma abordagem funcional das instituições políticas para outra que enfatiza dimensões processuais, argumenta então a existência de um “estado de hibridismo” no âmbito das aldeias, na medida em que leis e princípios formais são negociados localmente a partir das necessidades comunais, das autoridades do suku e de acordo com as obrigações dos antepassados materializados na lisan (tradição). Parece-me que a interessante discussão da autora talvez pudesse avançar mais se incorporasse algumas contribuições dos estudos antropológicos de modo a detalhar melhor as formas de organização inscritas neste “hibridismo”, um conceito que sugere mistura, mas não especifica as formas de ordenação das partes misturadas. Amostras de uma melhor especificação foram exemplificadas na primeira secção do livro através dos conceitos de “linguagem cerimonial” do poder e de co-habitação num “sistema paralelo”.

O ensaio final de Rui Graça Feijó centra fogo no urgente desafio da descentralização política timorense, suas formas de regulação e compreensão, bem como nas distintas opções de distribuição do poder decisório no país. Um aspeto de destaque é o tratamento histórico dado ao fenómeno, fazendo com que Feijó situe a questão da capilarização do poder do Estado no território num quadro temporal estendido: incorporando as sucessivas vagas e transformações do Estado colonial português, as alterações impostas pelo Estado de exceção indonésio, bem como os princípios constitucionais contemporâneos e seus dilemas atuais. Vê-se aqui como as dinâmicas da democracia, da participação e da distribuição dos recursos públicos se inscrevem em estruturas de longa duração, que hoje se atualizam no país, fazendo de Timor--Leste um “Estado pós-colonial bifurcado”: marcado pela negociação entre os discursos binários da modernidade e da tradição, ema Díli (gente da capital) e ema foho (gente da montanha), da escrita e da oralidade, do direito e do costume, também da igualdade e da hierarquia.

Timor-Leste: Colonialismo, Descolonização, Lusutopia, constitui assim uma obra fundamental para um entendimento mais profundo, crítico e ampliado a respeito do país no passado, no tempo presente e nos seus projetos de futuro. Entretanto, como leitor brasileiro e também pesquisador de Timor-Leste não posso deixar de mencionar, senão uma crítica, ao menos um desconfortável incómodo relacionado com as duas últimas palavras do subtítulo do livro.

Em contextos pós-conflito a representação do passado é sem sombra de dúvida um objeto de conflito, daí a especial atenção que deve ser dada às palavras que o nomeiam. Sabe-se que nos países africanos de língua portuguesa, o termo “descolonização” tem sido sistematicamente criticado devido a uma leitura implícita que lhe subjaz: a de que os agentes da descolonização foram os mesmos da colonização, o que silenciaria as várias frentes da resistência e das lutas de libertação nacional. Por sua vez, no último quartel do século XX, Jakarta proclamava nos fóruns internacionais, e para os próprios timorenses, que a descolonização da distante província ultramarina já fora efetuada graças à anexação do Estado-nação vizinho. Nesta versão narrativa, que buscava legitimar a invasão ilegal mediante um palavreado terceiro--mundista, os agentes da descolonização não foram nem portugueses, nem timorenses, mas indonésios. Em todo caso, no período em questão, a dura realidade vivida em Timor Timur era a da ocupação militar e a da resistência. Não por acaso, ainda hoje, os timorenses narram esse tempo em termos de tempu indonézia, momento em que experimentavam e descobriam uma luta pela liberdade. Parece-me então que a “descolonização” atribuída ao período minimiza a complexidade desta experiência e negligencia a perspetiva da ação timorense, além de evidenciar uma visão particular – a da ex-metrópole – entre outras tantas interpretações possíveis que os trabalhos da coletânea muito bem reconhecem.

Esta posição parcial no sistema de atribuição de nomes à experiência timorense torna-se mais evidente ao lado da palavra seguinte. A noção de lusutopia foi utilizada no livro para circunscrever os complexos desafios pós-coloniais da democratização e auto-determinação de um Estado-nação situado no Sudeste Asiático. Feijó afirma recuperar este conceito de João de Pina-Cabral, autor que introduz a noção com uma importante diferença: na versão original trata-se de lusotopia. Ao introduzir a letra “u” no conceito, Feijó sugere uma modificação não apenas fonética do termo, mas também semântica, associando a rede das identidades continuadas pela expansão portuguesa à própria noção de “utopia”. Contudo, no corpo de todo livro não há qualquer menção à modificação gráfica, fonética ou semântica do conceito proposto por João de Pina-Cabral. Um silêncio que definitivamente torna a sua compreensão mais difícil. Ainda que o conceito original de Cabral busque afastar interpretações eurocêntricas (Cabral, 2010, 2014), há que reconhecer que não é tão fácil estabelecer uma purificação completa entre os termos lusotopia, lusofonia e lusotropicalismo, sobretudo se estamos abaixo do Equador. Assim, ao menos no subtítulo da publicação, a perspetiva lusocêntrica parece ganhar vantagem, marcando posição e nome próprio num trabalho coletivo, plural e que tem a salutar ambição de colocar-se num patamar internacionalista, comparativista e policêntrico.

Mas é justamente pela pluralidade de problemas abertos, conceitos apresentados, interrogações e hipóteses levantadas, também pela notável quantidade e qualidade das novas pistas de investigação ali sugeridas, que esta publicação constitui um poderoso manancial de conhecimento para todos aqueles que se interessam em compreender Timor--Leste numa perspetiva que transcenda, em muito, o já-dito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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