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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

ROSALES, Marta

As Coisas da Casa – Cultura Material, Migrações e Memórias Familiares,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2016, 401 pp.

ISBN 9789726713647

Paula Mota Santos*

*Centro de Estudos de Antropologia Aplicada, Universidade Fernando Pessoa. Praça 9 de Abril, 349 - 4249-004 Porto, Portugal. pmsantos@ufp.edu.pt


 

Marta Rosales em As Coisas da Casa fornece-nos uma análise detalhada das vivências de dois grupos de famílias plurigeracionais (um de origem portuguesa europeia e outro de origem goesa) num período longo de tempo que abarca o Portugal pré e pós abril de 1974. As “coisas da casa” do título são os objetos que estas famílias reportaram à investigadora como sendo relevantes (e logo, significantes), quer no seu período de vivências no Moçambique colonial, quer no seu período de re-localização no Portugal da Europa. O livro recenseado baseia-se na tese de doutoramento da autora em antropologia social e cultural, datada de 2007. Mas os quase dez anos de permeio entre a finalização da tese e a sua publicação em livro não têm consequências no que respeita à pertinência, hoje, do material então recolhido e analisado. O estudo revela uma investigadora atenta ao detalhe etnográfico e exaustiva nas suas leituras teóricas, uma combinação útil na investigação de cariz antropológico.

O livro aborda uma temática – a cultura material – que após um período de menor favor, por conotada com um classicismo estéril pelas correntes pós-estruturalistas da antropologia, veio a ter renovado fôlego nesta, traduzindo-se tal em obras seminais da disciplina nas décadas de 80 e 90 do século passado. Este renovado e diferentemente orientado interesse pelo universo da cultura material teve tal relevo que se traduziu mesmo na institucionalização de linhas de investigação em universidades, como foi o caso do Departamento de Antropologia da University College de Londres, onde nomes como Chris Tilley e Danny Miller (este último frequentemente citado na obra em análise) fizeram escola. Este estudo sobre “as coisas da casa” insere-se claramente nesse momento e movimento dentro da Antropologia, partilhando com ele a utilidade desta nova perspetivação do universo da cultura material em que os seus relacionamentos com os sujeitos que os usam (i. e., o tão anglófono “consumo”) é tido como iluminador de dinâmicas e sentidos de vivências sociais. Por este motivo, é de agradecer a publicação deste trabalho. Outro motivo para contentamento quanto à publicação deste livro é este trabalhar sobre uma realidade social – a vinda rápida e maciça para Portugal de populações portuguesas que viviam nas geografias africanas, as quais até meados da década de 70 eram parte da nação –, que pertencendo à história recente da sociedade portuguesa e suas capilaridades transnacionais e pós-coloniais, é no entanto assunto que até um presente próximo sofreu um silêncio por parte desta, academia incluída. Por esta razão também deve a investigação de Marta Rosales ser apreciada e lida.

O livro apresenta-se dividido em quatro partes: “As coisas da casa” (teoria e metodologia), “Breve contextualização histórica” (do terceiro império a abril de 74), “Quotidianos: experiências de vida em Moçambique” (as trajetórias de migração e vivências dos dois grupos sociais em questão no Moçambique colonial até ao momento da saída do mesmo) e “Quotidianos: experiências de vida em Portugal” (em que nos é dada a re-localização destas famílias transcontinentais no Portugal europeu). Há ainda um breve Prefácio de Filomena Silvano e uma igualmente breve Introdução, esta já de Rosales. O livro remata com uma brevíssima (três páginas) secção final intitulada “Conclusão”.

A primeira parte é fundamentalmente teórica. Nela Marta Rosales versa sobre as bases conceptuais da análise que hoje se faz da cultura material (e aqui encontramos em grande destaque o recurso frequente que a autora faz às contribuições fundadoras desta abordagem da cultura material, nomeadamente Miller e Appadurai), bem como o recurso à abordagem Bourdieuriana do gosto como distinção social; trabalha também o sentido antropológico de “casa”, mas não de modo tão exaustivo quanto os temas anteriores; apresenta igualmente a justificação do objeto de estudo e do modo escolhido para o trabalhar – e é aqui que o entrelaçamento das conceptualizações teóricas com o trabalho etnográfico se desenha, recorrendo à materialidade dos objetos da casa e seu “consumo” como universo e como ferramenta onde se vai buscar o conhecimento que se procura. Nesta secção é clara a presença do objeto--tese que subjaz a este objeto-livro, e constitui-se esta como um bom texto-resumo das recentes abordagens de cultura material para estudantes de antropologia. É nesta primeira parte, também, que é justificada a escolha do universo estudado (nomeadamente famílias com uma presença intergeracional no Moçambique colonial), embora fique alguma dúvida quanto à razão de a escolha acabar por recair sobre dois grupos familiares diferentes (goeses e portugueses/europeus); também não fica totalmente clara a fundamentação para o critério de escolha, segundo o qual a “experiência de vida em Moçambique decorrer de um processo de migração (…) não correspondente a quaisquer outras colónias europeias existentes em África” (p. 38). Estas pequenas questões à parte, neste capítulo Rosales fornece de modo cabal descrição da forma progressiva como ao longo do desenvolvimento da pesquisa e do trabalho de terreno foram sendo tomadas as decisões quanto aos modos diferentes de trabalhar, o que é matéria útil para os que em certa altura têm de aprender sobre “fazer terreno”, lendo.

A segunda parte tem um cariz marcadamente historicista. O lapso temporal (início do século XIX até aos anos 80 do século XX) e objetivos temáticos desta segunda parte (ideologias coloniais e ideologias independentistas, fluxos migratórios portugueses e goeses) são extensos, e mesmo avisando o leitor de que a caracterização a apresentar se pretende “breve” (p. 112) fica-se com o desejo que esta segunda parte – que tem capítulos com três (mínimo) ou quatro (máximo) páginas – pudesse ter tido tratamento diferente, ou até, quiçá, um realojamento diverso na estrutura geral do livro. No entanto, fornece o enquadramento histórico necessário.

Na terceira parte, que é a mais extensa do livro, e na realidade o seu cerne, entra-se finalmente no terreno do concreto como vivido. A autora introduz-nos primeiro as pessoas, depois as casas, e depois as coisas. Nesta parte da obra, Rosales coloca estas vozes a falarem-nos dos modos e motivos que as vieram a levar a ter o Moçambique colonial como lugar de residência e de pertença. Começa assim a abrir-se uma janela de conhecimento sobre estes quotidianos, os seus destinos e as suas tessituras e que (num dos grupos) extravasaram uma “europaneidade” a que mais tarde tiveram que voltar. É nesta terceira parte que a maior riqueza etnográfica do trabalho de Rosales se encontra: colocando-nos no Moçambique colonial e separando no texto famílias de raiz goesa de famílias de raiz portuguesa-europeia, Rosales dá-nos a conhecer de modo detalhado os seus hábitos quotidianos de classe média que pertenciam já a uma elite local (i.e., administração colonial): a gestão das casas enquanto unidade familiar e social, as sociabilidades públicas e familiares, as práticas alimentares. Tudo isto Rosales nos vai dando, cruzando sempre os dados com análise e interpretação teórica que radica nas abordagens exaustivamente tratadas na primeira parte do livro, e onde o sentido do gosto e o habitus Bourdieurianos são também peças centrais. O final desta terceira parte fornece-nos a narrativa da saída de Moçambique, buscando na necessidade de escolher o que se leva consigo e o que se deixa ficar para trás a centralidade significante das “coisas da casa” do título do livro. É-nos dito que o trabalho de recolha foi levado a cabo durante dois anos e que nas dez unidades familiares “se destacaram vozes dominantes” (p. 147). Qualquer investigador com prática de terreno sabe que tal é usualmente o caso: a etnografia é ela própria, e sempre, uma constituição de relações sociais onde a predominância de umas vozes sobre outras é realidade incontornável. No entanto, estas vozes são-nos aqui dadas de modo descarnado, quase desincorporado: nunca têm nome (e a privacidade dos sujeitos estudados salvaguarda-se também com nomes outros, que não os próprios), idade (embora saibamos pela enunciação de obrigação académica que andam todos por volta dos 60 anos) ou género (que não poucas vezes adivinhamos só pela auto-adjetivação de uma voz usando a forma masculina ou feminina do qualificativo utilizado). E não é só uma questão de uma preferência (admitidamente) pessoal por uma antropologia/etnografia mais humanizada: é também uma questão do impacto da forma da escrita por sobre a aferição metodológica do trabalho/investigação apresentados: estas falas, porque sem nomes, não permitem avaliar quão plurais são estas vozes aqui transcritas, nem tão-pouco cruzar de modo sistemático uma individualidade que deveria aqui ser existente com outros traços das suas biografias (qual família de pertença, profissão, período de residência, localização, e mais…), inadvertidamente cerceando assim a riqueza que o trabalho de campo de certeza teve.

A quarta parte do livro leva-nos já para a re-localização destas famílias na Europa, em Portugal. E é aqui que as coisas da casa ganham luz própria. É na estranheza da re-localização num Portugal em nada africano que as coisas da “casa de lá” ganham uma profundidade afetiva e significante que, quando “lá”, não tinham. E “coisas de casa” há muitas… tantas que Rosales, tendo que as segmentar por tipologias (que são: opções decorativas: mobiliários e outros objetos domésticos; práticas alimentares; consumos específicos: literatura, música e artes plásticas) parece depois ter dificuldade em produzir uma interpretação que, alimentando-se daquelas, as ultrapasse. Talvez uma das situações em que Rosales mais consegue fazer esse avanço é quando identifica nas opções decorativas de algumas destas famílias (de raiz europeia) das suas casas no Portugal europeu, a inclusão de um elemento que no contexto do Moçambique colonial era desconsiderado: a pequena estatutária africana que funciona agora como mnemónica da África que se teve que deixar. A última secção do livro, a brevíssima Conclusão, faz também este esforço (bem sucedido) de ir para além da segmentação que o trabalho de análise e recolha implicou. Mas teria sido desejável que o espírito que presidiu a estas três páginas de conclusão se tivesse alongado em mais.

No início desta recensão, foi apontado como motivo de contentamento pela publicação deste livro o facto de ele versar sobre uma realidade social que tem vivido silenciada no Portugal do presente. Sendo isto verdade, a obra em questão não deixa, de certo modo, de paradoxalmente (e provavelmente de forma involuntária) colaborar com esse silêncio. É o caso já aqui referido da despersonalização das vozes apresentadas (os sujeitos reais ficam assim só categorias sociológicas), mas é também o caso da descentralização do afeto/emoção nas narrativas. Não é só o facto de as casas e suas coisas serem formatadas e taxonomizadas pelas categorizações do pensamento científico, mas é mais como a emoção da enunciação (que tem que ter existido) é retirada ou eufemizada. Nada nos é dito da emoção com que estas conversas decorreram para além da caracterização de Rosales como sendo registos de modo “intenso”. Adicionalmente, sendo este um livro que se apresenta como pretendendo integrar “os estudos sobre cultura material e consumo na discussão dos projetos migratórios decorrentes do colonialismo português no século XX (p. 387) – objetivo que cabalmente cumpre – é ele também, e claramente na sua parte etnográfica, um livro sobre o feminino. E dentro desta oportunidade semi-perdida de furar o silêncio sobre este passado/presente, bem como deste sublinhar do feminino que não é feito no livro, referenciar aqui, e somente a título de exemplo, um rememorar específico desses tempos avassaladores de diferenças várias em que, no quotidiano da compra nos mercados e perante os víveres diferentes e desconhecidos, uma das mulheres deste estudo fala de não saber o que fazer com eles, do como os cozinhar: “Tinha que perguntar às vendedoras (…) tive que aprender a cozinhar esses alimentos (…) e o modo como os cozinhamos hoje é ‘à portuguesa', porque foi assim que nos ensinaram cá” (p. 346). E podemos só imaginar as possíveis frustrações das tentativas na cozinha até conseguir cozinhar bem, e bem alimentar a família que se senta à mesa… Considerar a emoção teria enriquecido este ambicioso e inovador estudo.

Uma última nota: o livro apresenta--se com algumas falhas formais. Há casos de autores citados no texto, mas não listados nas referências finais; há texto introdutório no início das partes II, III e IV, mas não na parte I; há casos pontuais, mas não infrequentes, de não sistematização de utilização de convenções gráficas na inserção de extratos de discursos diretos de informantes – pormenores que uma revisão editorial de uma potencial reedição do livro poderá vir a colmatar.

Em resumo, e não obstante alguns pontos acima referenciados, este é um livro que dá aos seus leitores um estudo valioso no domínio das migrações e da cultura material, resultante de uma investigação rigorosa. A leitura deste livro será sem dúvida útil a estudantes e profissionais da disciplina, bem como a um público com certo grau de conhecimento das ciências sociais que se interesse por uma abordagem antropológica de um passado/presente português.

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