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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

PACHECO DE OLIVEIRA, João

O Nascimento do Brasil e Outros Ensaios: “Pacificação”, Regime Tutelar e Formação de Alteridades,

Rio de Janeiro, Contra Capa, 2016, 384 pp.

ISBN 9788577402069

Henyo Barreto Filho*

*Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Antropologia. Universidade de Brasília, Asa Norte - CEP 70910-900, Brasília, DF, Brasil. henyo.barretto@gmail.com


 

A relevância do mais recente livro de João Pacheco de Oliveira – professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos mais destacados etnólogos do país – foi ratificada no dia 27 de outubro de 2017, quando a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) lhe outorgou o prémio de “Melhor Obra Científica” na edição de 2017 – que premeia produções publicadas em 2016. Trata-se do mais prestigioso prémio específico na área das ciências sociais no Brasil.

Isso deve-se mais à consistência e densidade do conjunto de textos reunidos no livro do que propriamente à sua novidade. Explico. Esta é uma coletânea de nove artigos escritos desde meados da primeira década do século XXI, “a convite de colegas historiadores e antropólogos […] para conferências em congressos, artigos em revistas e coletâneas” (p. 7). Testemunho da vitalidade e compromisso com que João Pacheco respondeu a tais solicitações ao longo desse tempo, boa parte dos textos já havia sido publicada em revistas das áreas de antropologia, história e ciência política, e em coletâneas organizadas por terceiros. Quase todos estão disponíveis e podem ser lidos gratuitamente de seu site pessoal (http://jpoantropologia.com.br/pt/home/), no link “Produção”. Lá se encontram informações sobre os contextos originais de publicação dos artigos, que não se limitam à antropologia, mas percorrem os campos da economia, história e ciência política. A preocupação em tornar o mais acessível possível a sua produção recente – uma marca do autor – chega até ao livro em questão, premiado pela Anpocs, pois também ele pode ser lido gratuitamente em https://drive.google.com/file/d/0B3dCd225OocZcENadzV5LTMxTTg/view

Como disse, contudo, é a qualidade do material reunido na coletânea e menos o seu não ineditismo que torna a sua publicação significativa. Passados mais de 15 anos da primeira coletânea exclusiva de textos do autor – Ensaios em Antropologia Histórica (Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1999) –, este novo conjunto de textos permite observar tanto os rumos que tomaram o seu pensamento, quanto o que tais desdobramentos devem às interações do autor com diferentes áreas do conhecimento e interlocutores ao longo desse período.

Certos capítulos de O Nascimento do Brasil desdobram e aprofundam formulações anteriores reunidas na coletânea de 1999. O capítulo 6 (“Mensurando alteridades, estabelecendo direitos”), por exemplo, propõe-se estudar as muitas histórias dos índios no Brasil a partir dos censos nacionais, e questiona os procedimentos censitários como prática e saber governamental. Esse tema foi focado originalmente no artigo sobre “os índios nos censos nacionais” da coletânea anterior. Já o capítulo 8 (“Sem a tutela, uma nova moldura de nação”) estende a análise sobre a presença das sociedades indígenas na organização do Estado nacional brasileiro do artigo “Cidadania, racismo e pluralismo” da coletânea anterior. Tal análise estende-se até ao Brasil contemporâneo pós-Constituição de 1988, ponderando as várias consequências da revogação da tutela do Estado na vida institucional brasileira. Por sua vez, o capítulo 5 (“Uma etnologia dos ‘índios misturados'?”) – conferência realizada no concurso para professor titular da disciplina de Etnologia do Museu Nacional/UFRJ e que se transformou na introdução à coletânea A Viagem da Volta – retoma, estende e aprofunda o argumento assaz debatido desde a sua publicitação original, há quase 20 anos, quando se propôs “discutir as prioridades e as premissas dos estudos americanistas”, considerando o “desconforto [destes] quanto a populações indígenas com baixo grau de distintividade cultural”.

Como ex-orientando e colaborador do professor João Pacheco, em algumas circunstâncias tive o privilégio de observar alguns experimentos seus com versões preliminares dos artigos reunidos na coletânea, tanto no âmbito académico, quanto em trabalhos implicados. Destes, destaco dois: (i) o capítulo 1, que empresta o título à coletânea e no qual o extenso prefácio se baseia, foi apresentado numa conferência da 26.ª Reunião Brasileira de Antropologia, em Porto Seguro/BA, em 2008; e (ii) o argumento, a iconografia e os mapas dos capítulos 1, 2 (“As mortes do indígena no império do Brasil”) e 6 (já referido) foram testados pelo professor João Pacheco com um público indígena no curso “Formação Técnico-Política de Lideranças Indígenas” promovido pelo CINEP (Centro Indígena de Estudos e Pesquisas) e parceiros na Universidade de Brasília, também em 2008. A participação do autor em atividades de formação demonstra a sua constante busca de diálogo, da forma mais simétrica possível, com os indígenas como sujeitos políticos e de conhecimento de direito próprio. A sua etnologia, definitivamente, não é ensimesmada.

Antropólogos, como eu, que se interessam por uma antropologia pública e por novos géneros narrativos produzidos no campo antropológico – penso nos laudos antropológicos periciais e nos relatórios técnicos de identificação de terras indígenas e quilombolas – vão encontrar inspiração nos artigos da coletânea. Não obstante, sentimos falta de alguns artigos de João Pacheco sobre questões metodológicas, éticas e políticas do ofício antropológico, publicados ao longo do mesmo período coberto pela coletânea. Penso aqui, por exemplo, em trabalhos como “O antropólogo como perito” (2002), “Pluralizando tradições etnográficas” (2004) e a versão revista e ampliada deste em “Etnografia enquanto compartilhamento e comunicação: desafios atuais às representações coloniais da antropologia” (2013). Para representar de modo mais completo a produção do autor nesse período, a coletânea teria feito bem em incorporá-los.

Não obstante, é com as complexas conexões entre antropologia e história que o autor se preocupa e esse é o foco – e o enfoque – que dá unidade e consistência a este livro. A evolução do seu pensamento nessa direção parece estar relacionada com a experiência profissional que decidiu ter como pesquisador do CNPq, sediado na Fundação Joaquim Nabuco (FJB), em Recife/PE, durante 18 meses (entre 2005 e 2006), que menciona no prefácio. Um dos objetivos dessa estadia foi organizar, em conjunto com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a exposição “Os Primeiros Brasileiros” – ocasião em que também pôde “conhecer no plano local as múltiplas formas políticas e culturais que assumiam as etnogêneses e os processos de resistência indígena” (p. 9). Parece não haver dúvida de que a experiência de organizar essa exposição em conjunto com os seus sujeitos explica o lugar que a análise das manifestações estéticas assume nos vários artigos da coletânea e na interpretação mais geral que os articula. Entre tais manifestações, destacam--se: no capítulo 2, o “indianismo literário e a pintura acadêmica”, que engendram “uma modalidade específica de esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade” (p. 76); no capítulo 4, o “componente de pesquisa de imagens” na “investigação histórica” das “representações [artísticas e científicas] construídas sobre os indígenas amazônicos e a expansão desta fronteira” por pensadores do século XIX (p. 162), em que recorre às noções de “cenário” e “paisagem”; e a fotografia das alegres mulheres Tupinambá na contracapa, escolhida como “inspiração […] na releitura de episódios passados e presentes na história nacional” (p. 40). Parte dessa rica iconografia reunida por João Pacheco a partir do período em que esteve na FJB está compilada no caderno de imagens da coletânea, que dialoga com o prefácio e com os capítulos 1, 2, 6 e 7.

Para usar os termos do próprio autor, os capítulos “constituem exercícios de uma antropologia histórica” (p. 8), em cuja construção ele tem trabalhado há décadas e que tem implicado repensar a clivagem entre antropologia e história. Ele teria sido levado a isso por um conjunto de “esforços criativos” de pesquisadores de diferentes nacionalidades e “novas linhas de investigação nas duas disciplinas [que] tornaram evidentes os limites dessa pretensa separação” (p. 30). A intenção explícita comum aos artigos é “reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Desse modo, João Pacheco define como “preocupação constante […] abordar os fenômenos sociais partindo de uma postura etnográfica e dialógica, procurando de modo sistemático combinar o olhar antropológico com a crítica historiográfica, alimentando-se também da pesquisa histórica e antropológica atual”(p. 31). De facto, essa é a compreensão que emana da leitura de todos os textos, em especial o instigante nono e último capítulo. Quiçá, o único artigo inédito e que não desdobra, necessariamente, alguma formulação anterior, nele o autor analisa o emprego moderno da categoria colonial de “pacificação” pelos governos e pela imprensa nas políticas voltadas para a população das favelas cariocas – situação em que também usa a noção de “fronteira” como ferramenta analítica. Nada mais contemporâneo e com mais significado histórico, em termos dos valores e práticas que reverberam na/da ação das unidades de polícia pacificadora.

Ainda usando os termos do próprio autor, os artigos abordam “eventos, personagens e processos de momentos distintos […], descritos e analisados de maneira separada, sem a intenção de estabelecer entre eles qualquer forma de continuidade cronológica ou nexo causal” (p. 7; itálicos meus), “realiza[ndo] intervenções críticas e pontuais” (p. 9). Apesar disso, a organização dos textos na ordem em que aparecem na coletânea dá a sensação de certa continuidade cíclica. Se não, vejamos. O livro começa com a revisão do paradigma historiográfico hegemónico, a autorrepresentação da nação e as metáforas de fundação que tal paradigma agencia. Em seguida, analisa as narrativas estéticas (literárias e plásticas) do esquecimento nos processos políticos e socioculturais de formação da nacionalidade no século XIX. Logo após, trata da expansão da “fronteira” (entendida como guerra permanente) pelo vale amazônico e as suas correspondentes ideologias dos vazios demográficos, pujança da natureza e ignorância da diversidade cultural. Daí prossegue enfocando os processos de etnogénese ocorridos ao longo do século XX no Nordeste e o papel das práticas censitárias na modulação das alteridades e na criação de fronteiras étnicas. Chega, então, à sociogénese dos modernos movimentos indígenas no Brasil e à revogação formal da tutela com a Constituição de 1988, que sinaliza uma aparente “nova moldura de nação”. Por fim, conclui – como já notámos acima – com a ressurreição da categoria colonial de “pacificação” no tratamento de questões urbanas contemporâneas, cuja etnografia faz o autor retornar à discussão do emprego social dessa categoria no primeiro capítulo. Dois conceitos-chave para o autor – o de “regimes específicos de formação de alteridades”, que também são “regimes de memória” – alternam-se e encadeiam-se ao longo da coletânea de um modo que não necessariamente sinaliza ruturas, posto que a coletânea tem uma espinha dorsal: tratar os indígenas como protagonistas e agentes efetivos na construção do país que temos hoje.

Há algum tempo, João Pacheco vem enfrentando o desafio de “compreender melhor – mais além dos estereótipos – as motivações e significados das ações realizadas por indígenas” (p. 8), “recolocando-os como agentes efetivos na construção do Brasil” (p. 9). Tem feito isso, também, em publicações não dirigidas exclusivamente ao público académico. Um exemplo do que acabo de referir é o livro A Presença Indígena na Formação do Brasil, escrito com Carlos Augusto Freire, e publicado em 2006 na série Via dos Saberes da coleção “Educação para Todos” (Brasília, Secadi/MEC; Rio de Janeiro, Laced/Museu Nacional, 2006), como material para qualificar a formação de professores dos ensinos fundamental e médio. Se empregarmos para a sua produção recente a sua própria noção de “situação etnográfica” (“condições sociais específicas que envolvem a produção de dados etnográficos”, p. 33), veremos que os seus trabalhos reunidos na coletânea emergem numa situação de diálogo com múltiplos atores: sujeitos indígenas, professores e formadores de opinião, e pesquisadores de várias disciplinas. Aplicando, assim, a mesma abordagem que ele empregou para mostrar “como ocorreu a formação do objeto de investigação e reflexão intitulado ‘índios do Nordeste'”, veremos que o seu trabalho se desenvolveu na inter-relação concreta entre “modelos cognitivos e demandas políticas” (p. 194). Como dissemos acima, uma etnologia que não se compraz em contemplar o seu próprio umbigo.

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