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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

BRIGAS, Míriam C. de Sousa Silva Afonso

As Relações de Poder na Construção do Direito da Família Português (1750-1910),

Lisboa, AAFDL, 2016, 1107 pp.

Depósito Legal: 407170/16

Irene Vaquinhas*

*Centro de História da Sociedade e da Cultura, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Largo da Porta Férrea - 3004-530 Coimbra, Portugal. irenemcv@fl.uc.pt


 

A história da família e dos sistemas de transmissão patrimonial tiveram um desenvolvimento significativo, em Portugal, a partir dos anos oitenta do século passado, tendo beneficiado dos contributos de várias ciências sociais e humanas, em especial da demografia, da sociologia e da antropologia. Ao elenco de trabalhos publicados vem juntar-se o estudo de Míriam Cláudia de Sousa Silva Afonso Brigas, centrado na área do Direito de Família, paradoxalmente um campo negligenciado ao nível dos estudos histórico-jurídicos, como bem assinala a autora (pp. 21-22).

Subordinado ao título As Relações de Poder na Construção do Direito da Família Português (1750-1910), a publicação foi editada, em 2016, pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa. Trata-se de uma obra volumosa (1107 páginas), e que resulta da adaptação a livro da sua tese de doutoramento em História do Direito Português, discutida publicamente no ano de 2012, tendo tido como orientador o Prof. Doutor José A. A. Duarte Nogueira, docente que assina o prefácio da obra.

A autora tem desenvolvido estudos de natureza histórica sobre várias temáticas com interesse para a história das relações familiares, mais concretamente nos domínios do direito matrimonial, da filiação, do poder paternal e da adoção, do século XVIII ao século XX. Os seus trabalhos refletem uma preocupação em inscrever a história do direito no quadro mais alargado da história política e social, sem sacrificar a precisão jurídica, perspetiva metodológica que torna os seus estudos particularmente interessantes para os historiadores e um instrumento valioso de consulta. É precisamente sob o ponto de vista historiográfico que se enquadra esta recensão.

Apresentando o rigor científico inerente a todo o trabalho de investigação, este estudo tem por base uma sólida e demorada pesquisa, firmada numa volumosa documentação manuscrita e impressa, recolhida em arquivos e bibliotecas nacionais (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa, Arquivo Histórico da Assembleia da República…), constituída por um conjunto significativo de fontes, na sua maioria de natureza jurídica (fundos dos tribunais eclesiásticos, processos do Desembargo do Paço e da Casa da Suplicação, visitas pastorais, constituições sinodais, legislação codificada e extravagante, textos bíblicos, manuais de confessores, tratadística…), tendo privilegiado, como método científico, a análise discursiva e legislativa.

A investigação é também sustentada por uma vasta bibliografia multidisciplinar produzida sobre o assunto, tanto portuguesa como estrangeira, com a qual dialoga criticamente. Tem, ainda, a virtualidade da qualidade da escrita, estando redigido numa linguagem acessível a um público menos familiarizado com a terminologia jurídica, não obstante a erudição do texto. Contudo, numa obra com a profundidade e qualidade desta, teria sido conveniente uma maior precisão na indicação das fontes consultadas, já que, em alguns casos, se remete apenas para os arquivos que as disponibilizam.

Reconhecendo ser a família um fenómeno social complexo que ultrapassa largamente as fronteiras do direito, não se confundindo a história do direito da família com a história da família, a autora debruça-se sobre o âmbito jurídico das relações de poder no seio da estrutura familiar, desde o reinado de D. José I, em meados do século XVIII, até à I República, em 1910.

A obra obedece a um esquema clássico e reparte-se em duas partes, organizadas segundo critérios temáticos e cronológicos, o que lhe confere uma coerente unidade. Na primeira, intitulada “Os pilares da especificidade familiar – De 1750 aos antecedentes do Código Civil de 1867” (pp. 55-628), é feita a análise do regime jurídico familiar plasmado nas Ordenações Filipinas; na segunda, subordinada ao título “A construção de uma nova realidade familiar. A frágil privatização do poder na família – De 1867 a 1910” (pp. 631-1022), examina-se o modelo de direito familiar decorrente do Código Civil de 1867. Cada parte divide-se, respetivamente, em quatro e cinco capítulos, simetricamente equilibrados, a que acresce uma introdução, uma conclusão e a bibliografia.

Na introdução (pp. 21-52), clara e concisa, a autora procede ao enquadramento geral do seu objeto de estudo, define conceitos, metodologias e periodizações. Detêm-se com algum pormenor no polissémico conceito de “poder” e no princípio estruturante da desigualdade, nós górdios da sua investigação, e delimita o campo de aplicação jurídico do tema que analisa: o poder conjugal, o poder paternal, as relações patrimoniais entre cônjuges.

Abre a primeira parte percorrendo os fundamentos doutrinários das relações de poder, sobretudo no âmbito do casamento. Traz à superfície textos esquecidos, mas fundamentais, para a compreensão do processo de construção da desigualdade na relação conjugal e filial. Revisita o direito romano, explora textos bíblicos (dos Apóstolos, o Antigo Testamento…), bem como dos Padres da Igreja (Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino…), examina antigos Códigos (Códigos Visigótico…) e decisões conciliares (Concílio de Latrão, de Trento…), entre tantos outros documentos, com o objetivo de captar a evolução da autoridade do chefe de família e as raízes do direito canónico, base jurídica do direito familiar dos séculos XVII e XVIII. A recuperação de textos antigos é um contributo historiográfico valioso e útil para o conhecimento dos fundamentos doutrinários das instituições familiares, demonstrando, entre outras temáticas, como a igualdade entre os cônjuges foi defendida nos textos bíblicos, embora, como bem assinala, “a crítica do elemento contratual do casamento foi a tendência maioritária”, valorizando-se o “elemento sacramental” (p. 74).

Centra-se, em seguida, na identificação da especificidade do regime jurídico da legislação produzida no Antigo Regime, analisando, com particular detalhe, as Ordenações Filipinas, não sem primeiro questionar, teórica e historicamente, o léxico das instituições familiares (casa, linhagem, família…), o qual requereu interpretações prudentes e atentas aos contextos do seu uso, de forma a evitar anacronismos, socorrendo-se de um diálogo cruzado com a historiografia disponível sobre a matéria, em particular, peninsular. São muitos os assuntos que aborda, tantos quantos rastreou com relevância jurídico-familiar nesse monumento legislativo, não obstante o caráter disperso e fragmentário das informações nelas registadas.

Convém, no entanto, destacar, como marcos de referência desta visão panorâmica, o reconhecimento da “capacidade plena da mulher fora do expectável” (p. 128), a “valorização da família oficial” (p. 150) e a “importância jurídica da família doméstica” (p. 172).

A seguir, debruça-se sobre o corpo legislativo setecentista, mostrando como a evolução jurídica se vai distanciando da base religiosa, o que coincide com o papel cada vez mais interventivo do Estado “nas matérias conjugais” (p. 211) e o avanço, ainda que lento, do afeto nas relações familiares. Chama também à colação o contributo de consagrados autores (Francisco Manuel de Melo, Luís António de Verney, Ribeiro Sanches…) para “a reforma do velho edifício escolástico” (p. 185).

Cruzando um leque documental variado, somos, assim, levados a percorrer o caleidoscópio das formas de ação e dos recursos do exercício do poder, interrogando-se o sistema que os regia, em particular o poder do cônjuge marido. Com rigor e método, vai dissecando os deveres inerentes à vida conjugal, a coabitação, a situação jurídica dos nubentes, o direito de sangue, o direito de alimentos, o regime de privilégio, a questão da ilegitimidade, o regime jurídico dos órfãos, o conceito de chefe de família ou de pai de família, entre tantas outras problemáticas que constituem o enquadramento jurídico-político da estrutura familiar.

A terminar a primeira parte, reconstitui os antecedentes do Código Civil de 1867, sondando as suas raízes, os princípios, os acontecimentos decisivos e os instrumentos jurídicos que o condicionaram. Detém-se em documentos-chave como o Código Civil francês de 1804 e a produção legislativa anterior à codificação feita pelo Visconde de Seabra, entre outros. Nestas análises pontuais, nunca perde de vista as matérias relativas ao tema convocado, permitindo-nos acompanhar o longo percurso evolutivo da instituição familiar. Desse processo multissecular, a autonomia da família, enquanto realidade jurídica, é uma das grandes conquistas (p. 604), a que se associa a sua valorização, em estreito paralelismo com a progressiva independência régia da influência cristã.

Na segunda parte do volume, a autora colige informação considerável para analisar o modo como o Código Civil de 1867 “tipificou as relações jurídico-familiares” (p. 633), objetivo prioritário da sua tese. A estratégia de análise que foi adotada na primeira parte do volume é replicada na segunda, partindo do geral para o particular, iniciando o estudo pela definição de linhas-mestras da sociedade portuguesa oitocentista, antes de proceder ao estado da arte da bibliografia disponível ao tempo da promulgação do Código Civil e à revisão crítica dos fundamentos políticos e ideológicos que lhe estão subjacentes. Passa em revista a nova terminologia adaptada à família e às instituições familiares, em especial os conceitos de matrimónio e de poder conjugal, os quais são analisados à luz do processo de laicização em curso na novel sociedade liberal, não obstante a resistência da comunidade nacional.

A prevalência masculina na estrutura do casal, as incapacidades jurídicas atribuídas às mulheres e o poder paternal, reforçados pelo novo Código, merecem-lhe particular atenção e substantivas considerações, percorrendo posições de vários autores e de movimentos políticos e sociais (socialismo, feminismos…), da segunda metade de oitocentos, que se pronunciaram sobre essas temáticas. Focaliza a sua atenção no articulado do Código Civil e na sua lógica interna, desmontando contextos e intenções dos legisladores, num vaivém permanente de revisitação de textos e documentos, de forma a captar a singularidade do caso português. Finalmente analisa a projeção da legislação republicana.

Uma conclusão sintética, organizada por tópicos, resume os pontos fulcrais da investigação e os momentos decisivos de fratura com o direito canónico, refletindo sobre o caminho historiográfico percorrido. Fazendo jus às palavras de Michel Vovelle, para quem a família “é uma estrutura resistente”, demonstra a dificuldade em se escrever uma narrativa unificadora sobre a história da família, do século XVIII ao século XX, quando esta é atravessada por múltiplas e complexas problematizações. O desiderato, porém, foi plenamente atingido por fundir, de uma forma sólida, investigação e síntese.

Dos múltiplos aprofundamentos que esta obra faz, um dos temas mais recorrentes respeita às questões de género e ao lugar das mulheres nos quadros conjugal e familiar, analisando a sua evolução diacrónica e fundamentando juridicamente a inferioridade feminina. Pela sua importância para a compreensão da história das mulheres portuguesas, dos séculos XVIII-XX, seria conveniente reunir, em publicação autónoma, todos esses contributos dispersos pelo volume.

É preciso, pois, prestar justiça ao livro As Relações de Poder na Construção do Direito da Família Português (1750-1910). Pelo que se aprende com a sua leitura, pela abrangência teórica, histórica e jurídica das questões abordadas e por sugerir novas perspetivas de investigação, a sua autora está de parabéns pelo contributo prestado à história do direito português e à história da família nos últimos séculos, no fundo, ao nosso próprio conhecimento.

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