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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

PORPORA, D. V.

Reconstructing Sociology: The Critical Realist Approach,

Cambridge, Cambridge University Press, 2015, 249 pp.

ISBN 9781107107373

Nuno Oliveira*

*CIES, ISCTE-IUL.Av. das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. filicastrol@gmail.com


 

Reconstructing Sociology constitui uma boa e acessível introdução ao realismo crítico aplicado às ciências sociais. O seu registo direto e despreocupado, contrasta com a prolixidade de muitos dos textos nesta área, permitindo apresentar ideias complexas de maneira rapidamente apreensível. Para aqueles que não se querem embrenhar na complexidade teórica de realistas como Archer, Harré, Sayer ou Vandenbergh, para mencionar alguns dos mais produtivos no campo das ciências sociais, esta representa sem dúvida uma excelente introdução. Para quem vai à procura de uma teoria sociológica, não será isso que irá encontrar. Como o autor afirma logo de início: o realismo crítico não é uma teoria, é uma metateoria cujos parâmetros permitem identificar o que é boa teoria sociológica. Em consequência, o trabalho de reconstrução da sociologia não deve começar por um depuramento analítico ou um reforço empírico, mas sim por uma reconstrução dos seus pressupostos ontológicos; ou melhor, por uma clarificação do que o realismo crítico entende por tais pressupostos (Porpora, 2015, p. 20). O que torna o realismo crítico (doravante RC) uma metateoria, transparadigmática, com capacidade tradutora entre os diferentes paradigmas concorrentes. Para Porpora, todos os paradigmas possuem os seus pressupostos mais ou menos explícitos, e estes condicionam a ciência que pode ou não ser feita.

Concretamente, Porpora identifica um conjunto de inimigos com os quais vai traçando armas ao longo de todo o livro, em particular o empirismo estrito e a fragmentação pós-moderna do sujeito. Ao primeiro assaca a culpa de ter convertido a investigação sociológica num exercício de sistematização com uma falsa capacidade explicativa e preditiva. Esta parece ser, segundo o autor, uma pecha particularmente resistente na sociologia norte-americana. E, não por acaso, como é explicado logo nas primeiras páginas, o principal objectivo é dar a conhecer o realismo crítico à sociologia norte-americana, campo científico onde o seu debate é praticamente inexistente, em contraste com a intensa discussão no seio da academia britânica.[1]

Segundo esta perspetiva, a análise sociológica deve incorporar as relações que se estabelecem entre estrutura, cultura e agência, rejeitando a conflação entre qualquer um deles. Este é um trinómio familiar aos realistas críticos, identificado pela teoria da morfogénese de Margaret Archer, que lhe conferiu o acrónimo de SAC (Structure-Agency-Culture). Nos três capítulos que são dedicados a redefinir os termos da equação ontológica, ou seja a relação entre os componentes do SAC, Porpora aduz argumentos para a sua reconceptualização segundo os pressupostos do realismo crítico. Desde há muito que o autor defende que a sociologia não pode olhar para os humanos como “veiculadores de estruturas sociais” (Porpora, 1989, p. 202). Por aqui passa, entre outras, a crítica a Bourdieu, cuja filiação estruturalista é denunciada como negligenciando a intencionalidade dos atores, tornando os indivíduos meros recetáculos de habitus (Porpora, 2015, pp. 23-24). Pode dizer-se que Reconstructing Sociology inscreve-se num programa de “humanização das ciências sociais”, segundo a adequada expressão do historiador das ciências François Dosse (1999, p. XX). O que seria central nesta agenda era a recuperação da agência humana, com particular saliência para a sua intencionalidade e intersubjectividade, recusando a “coisificação” do social encerrada em paradigmas anteriores, tais como o funcionalismo ou o já mencionado estruturalismo.

Neste contexto, o título do livro de Sartre – O Existencialismo também é um Humanismo –, é glosado por Porpora relativamente ao realismo crítico (2015, p. 131). Para o autor, o trabalho de reconstrução da sociologia passa inexoravelmente pela recuperação da pessoa humana, pela necessidade de incorporar uma certa dimensão humanista na sociologia. Existem outras tentativas dentro da mesma linha, tais como Being Human (Archer, 2004) ou What is a Person? (Smith, 2010), e nelas podemos identificar as tentativas mais consequentes de recriar uma perspetiva humanista dentro da teoria sociológica.

Tal perspetiva ergue-se fundamentalmente contra dois paradigmas: o pós-estruturalismo e a escolha racional. Do primeiro enjeita a fragmentação do sujeito, a impossibilidade de encontrar um centro de subjetividade individual, a pulverização discursiva da identidade. Do segundo, recusa a uniformidade do agir humano que a optimização das escolhas teorizada por esta abordagem tem por premissa. É preciso substituir este esvaziamento do sujeito atuante pela recuperação da centralidade da consciência como princípio válido para a agência.

O que parece evidente é que para Porpora a sociologia do ponto de vista do RC sustenta-se num personalismo (Smith, 2010, p. 15).[2] Para um realista crítico personalista, como Porpora se assume, o sujeito constitui-se enquanto centro consciente da experiência; e, nesse sentido, a agência toma a forma substantiva de motivações e intencionalidades. Mas não teria toda a agência por definição tais características? Não – quer a ANT (Actor-Network Theory), quer as sociologias relacionais (e para Porpora, sobretudo estas) rejeitam esta conceção de sujeito sem rejeitarem uma conceção de agência. Por exemplo, para os defensores da ANT, representados por Latour, alargar-se-ia esta aos objetos – agência como capacidade causal; para a sociologia relacional, concentrar-se-ia esta nas relações sem prestar atenção aos entes relacionados. Mais ainda, as correntes pós-modernas, para as quais o sujeito se fragmenta em miríades de posições discursivas, estariam totalmente em desacordo com esta primazia do sujeito agencial.

O personalismo coloca a pessoa humana no centro da empresa sociológica. E fazê-lo implica afetar uma especificidade ontológica ao ser-se pessoa. Decorre da estratificação da realidade, assim como pressuposta pelo RC, que o self seja um dos níveis diferenciados dessa mesma realidade, porquanto esta compreende o sujeito como “um centro de experiência consciente substancial ou ontologicamente particular” (Porpora, 2015, p. 193). Um tal entendimento possui consequências para a relação entre agência e estrutura. Desde logo, porque recusa o reducionismo que apenas vê na estrutura padrões agregados de comportamentos (Collins, 1981), ou a resume aos laços sociais, como pretendem os teóricos das redes, ou ainda qualquer comportamento interativo manifesto. Ou seja, estrutura enquanto relações atualistas que apenas se podem manifestar através de eventos.

Para Porpora, cujo trabalho já ofereceu diversos contributos para a definição de estrutura social (1989; 1980), embora estrutura se refira a um “padrão de relações” (Porpora, 2015, p. 99) a relacionalidade é uma categoria ontológica. Por conseguinte, estrutura refere-se a condições relacionais – não necessariamente visíveis ou instanciáveis em acontecimentos – subjacentes aos comportamentos, mas nem por isso menos portadoras de poderes causais. Segue-se que a noção de causalidade estritamente empirista deve ser criticada. Aqui os argumentos reincidem numa já velha insistência dos realistas críticos: regularidades estatísticas não constituem explicações causais (v. Bhaskar, 1975).

O que possui consequências metodológicas. Embora Porpora diga que à partida não existe qualquer prurido por parte dos realistas críticos quanto à escolha entre métodos qualitativos e quantitativos, acaba por afirmar que o método mais apropriado para mostrar os efeitos combinados de estrutura, cultura e agência é a narrativa (2015, p. 210). Ao contrário de correlações estatísticas, a narrativa permite rastrear como é que o pensamento e a ação, mantendo-se esta última todavia em aberto, constituem uma reação cultural causada (de maneira não determinista) por forças estruturais (p. 210). Há portanto uma imbricação entre a continuidade narrativa do self proposta pelo personalismo e a narrativa como método apropriado à inquirição dos efeitos da estrutura e da cultura que surgem nos pensamentos e ações dos indivíduos.

Todavia, a reconstrução teórica pretendida não se esgota nesse desafio. Porpora visa uma unificação teórica que, segundo ele, apenas pode ser obtida através do RC (2015, p. 192). Para o defender, Porpora desenvolve um exercício comparativo com um conjunto de outras teorias e posições metateóricas, em que o RC sai notoriamente a ganhar, colocando em evidência não as fragilidades teóricas dos outros campos sociológicos, mas justamente as suas fragilidades ontológicas. O corolário de uma tal operação é que a adjudicação entre critérios de verdade oferecidos pelos paradigmas em concorrência não se faz pelo acréscimo das fontes empíricas, mas por um aprofundamento da análise conceptual.

Resta apenas notar que, em Portugal, o realismo crítico não possui seguidores em sociologia. O que não deixa de ser curioso, na medida em que mesmo uma nova geração que se inspira em alguns dos trabalhos de Archer, e que procura estudar os processos reflexivos (v. sobretudo Caetano, 2015 e 2011), é indiferente à integração dos pressupostos do realismo crítico nos seus esquemas de análise e tão-pouco estabelece um diálogo teórico com esta corrente. Contudo, o estudo da reflexidade para Archer não é dissociável dos pressupostos ontológicos que comandam as suas investigações. Desde logo, a ideia central segundo a qual os poderes causais são partilhados tanto por observáveis, como por inobserváveis, implica que a reflexividade possua não apenas propriedades emergentes – a ação no e sobre o mundo – como seja esta ontologicamente real ao nível da pessoa humana. Por conseguinte, não se trata de uma mera formulação analítica como estes estudos parecem indicar. É todo um conjunto de pressupostos de uma ontologia estratificada que tem consequências teóricas na forma como se elabora a relação entre estrutura e agência e como nesta se concebe o lugar do self. Reconstructing Sociology é um bom ponto de partida para encetar o debate em Portugal.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARCHER, M. S. (2004), Being Human. The Problem of Agency, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

BHASKAR, R. (1975), A Realist Theory of Science, Leeds, Leeds Books.         [ Links ]

CAETANO, A. (2011), “Para uma análise sociológica da reflexividade individual”. Sociologia, Problemas e Práticas, 66, pp. 157-174.         [ Links ]

CAETANO, A. (2015), “Defining personal reflexivity: a critical reading of Archer's approach”. European Journal of Social Theory, 18 (1), pp. 60-75.         [ Links ]

COLLINS, R. (1981), “On the microfoundations of macrosociology”. American Journal of Sociology, 86, pp. 984-1014.         [ Links ]

DOSSE, F. (1999), The Empire of Meaning: The Humanization of the Social Sciences, Minesota, The University of Minesota Press, p. XX.         [ Links ]

PORPORA, D. V. (1980), The Concept of Social Structure, Westport, CT, Greenwood Press.         [ Links ]

PORPORA, D. V. (1989), “Four concepts of social structure”. Journal for the Theory of Social Behaviour, 19, pp. 195-212.         [ Links ]

SMITH, C. (2010), What is a Person, Chicago, CUP.         [ Links ]

OLIVEIRA, N. (2017), Recensão “Reconstructing Sociology: The Critical Realist Approach, Cambridge, Cambridge University Press, 2015”. Análise Social, 225, LII (4.º), pp. 906-909.

 

[1] Discussão essa que não se concentra apenas na sociologia, mas que se espraia pela economia com Tony Lawson, ou pela psicologia com Harré, pese embora a diversidade de interpretações.

[2] Smith caracteriza a sua abordagem como sendo especificamente um “personalismo realista crítico”.

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