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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

PINA-CABRAL, João de

World: An Anthropological Examination,

Chicago, Hau Books, 2017, 134 pp.

ISBN 9780997367508

Miguel Vale de Almeida*

*CRIA, ISCTE-IUL. Av. das Forças Armadas 376 - 1600-077 Lisboa, Portugal. miguelva@gmail.com


 

Raríssimos têm sido, neste século XXI, os livros de grande âmbito e fôlego teórico em Antropologia. Tal raridade, justificada talvez por razões de escala e massa crítica, tem sido ainda mais notória no meio antropológico português. A leitura de World: An Anthropological Examination desperta-nos, desde logo, para a sensação benfazeja de quebra desse jejum. Essa sensação foi, aliás, reforçada pela frescura (no sentido europeu da palavra, embora o sentido brasileiro pudesse igualmente ser aplicado de forma jocosamente positiva, tal o desafio teórico e ético feito à modorra vigente) do curso em torno do livro que o autor lecionou no ICS-UL e no ISCTE-IUL na primavera de 2017. Dá-se ainda a circunstância de, sendo o autor português e especialista de longa data em contextos de expressão portuguesa ou da expansão do Estado português e, hoje, docente numa universidade britânica, e de ter redigido e publicado o livro em inglês, esta obra resultar como uma quebra do referido jejum tanto no plano internacional quanto no plano português.

Pina-Cabral escreve este texto num contexto de crise da produção antropológica. Crise, naturalmente, no sentido duplo de tensão e oportunidade de renovação que a expressão comporta. É com notável maestria académica que o autor demonstra estar sintonizado com, e ser conhecedor das tentativas de ultrapassar o estado de narcisismo catatónico dos anos oitenta - tentativas que poderiam ser etiquetadas com nomes de referência como Marilyn Strathern, Tim Ingold, ou Eduardo Viveiros de Castro, entre outras e outros. O autor não só demonstra ter interiorizado os debates dos anos oitenta, de modo a processá-los em algo de positivo (o retorno ao, ou resgate do, gesto etnográfico), como enfrenta as fragilidades e as forças dos modelos analíticos recentes (o retorno à, ou o resgate da, coragem da análise e da teoria).

Isto é feito a partir de uma longa experiência etnográfica, reflexiva e analítica que passou, como sempre sucede nos momentos de inovação teórica, por dois gestos fundamentais: a visitação da filosofia, transpondo-a para os desafios da análise empírica; e a visitação de outros campos disciplinares, sobretudo os que abordam a condição humana a partir de ângulos que não os da estrita ciência social. No caso de World, o programa é claríssimo logo no início: “… o modo como relacionamos a cognição humana com a característica encarnada (embodied) da humanidade, sugere fortemente que estamos no limiar de uma nova conceptualização da condição humana - uma nova antropologia - que rompe com os constrangimentos sociocêntricos e assentes na representação que assolaram as ciências sociais ao longo do século XX” (p. vii).[1]

Pina-Cabral não se fica pelo que tantas vezes, em tantos autores, se resume a uma algo periférica, ou mesmo provinciana, subscrição de teorizações na moda. Ele “engaja-se” nelas e “engaja-as”. Discute--as. E fá-lo a partir de um ângulo resultante do seu próprio percurso de busca que, é sabido, bebeu muito do filósofo Donald Davidson. O autor diz-nos, aliás, que “quando recorri a Donald Davidson nos finais dos anos noventa, a ideia era encontrar um caminho que conduzisse das suas águas epistemológicas cristalinas para as águas turvas da fenomenologia, que eu teria de navegar se quisesse estudar pessoa, presença e transcendência” (viii). Talvez seja este, de facto, um dos grandes desígnios de uma antropologia contemporânea e do contemporâneo: o caminho da clareza conceptual para a turbulência (a “turvolência”?) da vida tal qual ela é. Ou, como diz o autor, “O meu objetivo era produzir uma versão antropológica realista que simultaneamente preservasse a tarefa etnográfica e iluminasse a condição humana” (p. ix).

Para tal, o autor formula uma abordagem da condição humana em condições inevitavelmente de diversidade cultural (atrever-me-ia a dizer que ele procura, e bem, regressar sem complexos à contemplação do “universal”) que assenta em três aspetos centrais que dialogam com as evoluções na análise da socialidade (e mantém-se a versão original de modo a não deturpar o sentido conceptual de algumas expressões): “(…) (i) the world embraces humans as a source due to their capacity to address it intentionally…, thus initiating worlding; (ii) as, in becoming persons, humans acquire a presence, they start confronting the world perspectivally as a domain, so the world encompasses them diadically; (iii) and, finally, with the rise of propositional thinking, the world is divided by symbols into a myriad of intrinsically plural entities: relations emerge out of the containment imposed by the limits of propositionality” (p. x).

Ao longo dos capítulos, intitulados com expressões-chave - “World”, “Transcendence”, “Imagination”, “Person”, World-view” - o programa é desenvolvido com base em exemplos e estudos de caso que remetem para áreas científicas e disciplinares fora das ciências sociais, para a história da antropologia, para a prática etnográfica, e para uma crítica do que se poderia chamar a economia político-simbólica de algumas produções teóricas na antropologia contemporânea, destacando-se quiçá a denominada “viragem ontológica”.

No final, diz-nos o autor, numa avaliação implacável - mas não desprovida de esperança - da crise inicialmente referida, que “Nós queríamos ordem e, quando já não a encontrámos, sucumbimos, quais crianças mimadas, à dissolução analítica. Em vez de procurarmos novos caminhos para a análise, desistimos dela; em vez de procurarmos novos modos de comparação, desistimos dela. Mas, pior ainda, em vez de procurarmos novos modos de lidarmos com a transcendência humana, simplesmente sucumbimos ao agnosticismo antropológico, recorrendo à solução enfraquecedora de postularmos um Outro transcendente e inalcançável” (p. 182).[2]

Sintetizando as recorrências que decorrem, naturalmente, de um longo percurso de investigação e publicação, Pina-Cabral diz-nos estar convencido de que a principal razão para este “triste estado das coisas é a nossa repulsa face ao messy thinking” (p. 182), bastando para tal ver a resistência, nos círculos antropológicos, a noções como pensamento politético, processos estocásticos (stochasticism), participação, partibilidade (partibility), dividualidade (dividuality), mutualidade, ou equívoco (equivocation). O autor quebra com esta resistência, entra em diálogo com estes avanços na crítica ao sociocentrismo e ao foco nas representações, abraça as descobertas (antropológicas ou não) sobre cognição e embodiment, aplica-as à análise daquilo em que elas se tornam patentemente relevantes na socialidade (pessoa, presença, transcendência…).

Mas, como? Isto é, como fazê-lo, como passar para a realidade turva das vidas humanas, sem o solipsismo da recusa etnográfica, antes trazendo a etnografia para a iluminação do Mundo que “abraça” as pessoas e no qual elas se engajam? Através do gesto etnográfico, precisamente aquele que serve de epílogo ao livro: “A etnografia é intrinsecamente uma atividade comparativa… a ideia de que poderia fazer-se uma coisa chamada ‘uma descrição etnográfica objetiva' é parte de uma ontologia ingénua… A etnografia é comparativa em três sentidos: (a) face ao discurso antropológico geral num dado momento e aos debates na moda; (b) face ao que já tenha sido escrito sobre o objeto concreto que está a ser descrito; e (c) face às inclinações particulares do etnógrafo” (p. 185).

É a partir daqui que é possível dizer, para o autor - numa crítica a algumas modas contemporâneas e assumindo a preocupação com a política do conhecimento com que Pina-Cabral sempre se ocupou - que “… a ideia de que cada cultura tem a sua própria antropologia é um perigoso truísmo. Trata-se de um falso jogo com o sentido da palavra antropologia, que acaba por servir os interesses daqueles que estão sentados numa posição de hegemonia global e para quem a incomensurabilidade cultural é um estratagema conveniente para evitarem os desafios éticos da comparação” (p. 185).

Terminemos esta breve recensão recorrendo à última frase do livro, e assim produzindo uma sobreposição entre texto e texto-sobre-o-texto: “O objetivo de des-etnocentrificação da antropologia depende de três processos humanos básicos: a intencionalidade partilhada, que conduz à intersubjetividade; a capacidade para transcender parcialmente a condição própria através da imaginação; a hospitalidade, que conduz à sobrevivência humana e à participação social” (p. 189).

Raramente surgem livros de grande fôlego teórico que consigam simultaneamente dialogar com os debates seus contemporâneos, que consigam criticá-los, mas também resgatá-los nos seus aspetos produtivos, e que ancorem a análise na preocupação etnográfica e em fundamentos éticos e políticos sobre a condição humana e o seu estudo. Este é, sem dúvida, um deles.

 

[1] Todas as traduções são da responsabilidade do autor da recensão.

[2] A obra de Pina-Cabral mereceria uma análise - talvez mesmo através do método da entrevista ao autor - do recurso ao que simplisticamente se poderia designar como uma linguagem religiosa ou teológica, não confessional ou sequer crente, mas apostada numa preocupação humanista (é-me permitido ainda usar este termo?) com a(s) transcendência(s).

 

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