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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

DOSSIÊ - DESPORTO E LAZER EM ÁFRICA

O futebol nos musseques e nas empresas de Luanda (1950-1960)

Football in the slums and business enterprises of Luanda (1950-1960)

Marcelo Bittencourt*

*Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense.Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bloco O, Sala 505, 5.° andar - CEP 24210-201, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. marcelo216@gmail.com


 

RESUMO

O futebol nos musseques e nas empresas de Luanda (1950-1960). O objetivo deste artigo é analisar a vivência colonial em Luanda nas suas duas últimas décadas através de determinadas práticas desportivas existentes na cidade. A partir do jornal Angola Desportiva iremos observar o desporto corporativo e o mais popular torneio de futebol de bairro na colónia. Dessa forma, pretendemos realçar as mudanças na estratégia de controlo dos angolanos por parte das autoridades coloniais e a expansão económica da colónia, que geraram um novo dinamismo nas zonas mais pobres da cidade e induziram alterações nas ações comerciais das empresas.

Palavras-chave: Luanda; desporto; colonialismo; economia.


 

ABSTRACT

Football in the slums and business enterprises of Luanda (1950-1960). The aim of this paper is to analyze the colonial experiences in Luanda in its final two decades through the lens of sports activities in the city. Using articles in the newspaper Angola Desportiva we observe sports in the corporate environment and the neighborhood football tournaments. We highlight the changes in the Angolan control strategy exercised by the colonial authorities and the economic expansion of the colony, creating a new dynamism in the poorest areas of the city and inducing changes in commercial activities among the firms.

Keywords: Luanda; sport; colonialism; economy.


 

Introdução

A proposta deste artigo é olhar, através da imprensa desportiva, mais especificamente do jornal Angola Desportiva (AD),[1] para a vivência colonial em Luanda, para as tensões que ela comportava, escapando a uma análise de tipo bipolar, colonizador/colonizado, dominação/resistência, que limite, dada a tentação homogeneizante desses opostos extremos, a percepção da complexidade do contexto, dos caminhos de difusão do poder e das suas formas de articulação, contestação e apropriação (Cooper, 2008). Constitui, em paralelo, uma mudança de foco, deixando de concentrar a análise nos movimentos de libertação e na guerra anticolonial, temas que indiscutivelmente receberam maior atenção dos historiadores, para olhar mais detidamente para aqueles que não ingressaram na luta armada, mas continuaram a viver o colonialismo no seu quotidiano (Moorman, 2008; Bittencourt, 2010; Bosslet, 2014).

Da mesma forma, ao privilegiar o futebol e a imprensa desportiva, pretende destacar temas e fontes mais próximos da história cultural, a fim de analisar aquela sociedade por um prisma que permita atentar com mais acuidade para o seu quotidiano, para o seu lazer e práticas culturais (Moorman, 2008; Marzano, 2016; Domingos, 2012; Melo, 2011), observando nesses espaços as ambiguidades e temores da Luanda colonial. Daí a opção pelo desporto corporativo, pelas equipas suburbanas e por aquele que foi o grande mobilizador do futebol nos bairros, o torneio da cervejaria CUCA, que envolveria as equipas dos musseques.[2] A ideia é realçar as mudanças na estratégia de controlo dos angolanos por parte das autoridades coloniais e perceber a expansão da economia colonial e os seus produtos, alcançando as zonas mais pobres da cidade e induzindo as empresas a mudarem a sua relação com esses habitantes, que afinal também eram consumidores.

É preciso ter em conta que a partir dos anos 1950 ocorreu uma ampliação da prática do futebol, o que fez com que os jovens dos bairros organizassem as suas próprias equipas e a sua forma de encarar o jogo, a partir do que observavam nas equipas e nas competições oficiais angolanas e metropolitanas (Domingos, 2012). O sucesso dos jogadores ultramarinos na metrópole, em especial dos angolanos, funcionou como uma espécie de correia de transmissão que colocou em contacto o futebol metropolitano com o futebol do musseque, passando pelos clubes oficiais de Angola. Exatamente por isso é possível perceber, em Angola, que tanto se reclamava da saída dos melhores jogadores para a metrópole, empobrecendo o futebol local, quanto se exaltava essa conexão.[3]

Era uma relação colónia/metrópole[4] permanentemente tensa neste terreno desportivo. Por exemplo, é de destacar o pedido de filiação da Federação Angolana de Desportos na FIFA, que foi mal recebido em Lisboa, sob a acusação de “anti-patriota”, mas que foi defendido pelo editor do Angola Desportiva como sendo uma pretensão que deveria ser encarada “pelo lado das realidades actuais”.[5] O argumento de que existia um desinteresse metropolitano em relação à colónia era recorrente.

Nessa linha de argumentação, é preciso reconhecer que a expansão do futebol que se fez sentir na década de 1950 em Angola, expressa na criação de várias equipas, refletiu, ao mesmo tempo que alimentou, uma imprensa especializada. É preciso chamar a atenção para o facto de que em 1954 teve início a transmissão dos jogos do campeonato metropolitano de futebol pela Rádio Angola - Emissora Oficial.[6] Da mesma forma, a partir de 1956, a Rádio Clube de Angola passou a transmitir as partidas de futebol do campeonato da 1.a divisão distrital de Luanda,[7] mesmo que somente as partidas jogadas no estádio municipal.[8] Ainda em 1956, o próprio jornal Angola Desportiva organizou o I Salão de Fotografia Desportiva. Para completar, ao longo dessa década, seria constantemente demonstrada, nas páginas do periódico, a preocupação com as instalações para a imprensa nos campos de futebol por toda a colónia. Ou seja, estabeleceu-se uma espetacularização crescente do campo desportivo, sobretudo do futebol, e isso reforçou, ao mesmo tempo que espelhou, a sua popularização.[9]

É preciso alertar também para o importante crescimento populacional da cidade de Luanda a partir da década de 1940. Os dados estatísticos coloniais existentes impressionam. Em 1940 a cidade somava 61 028 pessoas. Segundo a divisão dessa população por “tipos somáticos”, como espelhada nos documentos oficiais, tal número comportava 8 944 brancos, 45 884 negros e 6 175 mestiços. Em 1950, o número total salta para 141 647 indivíduos, sendo 20 710 brancos, 111 112 negros e 9 755 mestiços. Em 1960 teríamos 224 540 indivíduos, sendo 55 567 brancos, 155 325 negros e 13 593 mestiços. O último registo existente, já para o ano de 1970, indica um total de 475 328 indivíduos, sendo 124 817 brancos, 312 290 negros e 37 974 mestiços (Bettencourt, 1965, p. 95 e República Portuguesa, 1973, p. 8). Vale a pena referir, ainda, que em 1960 os principais musseques absorviam aproximadamente 140 mil pessoas, a sua esmagadora maioria, cerca de 115 mil, composta por negros. Ainda assim, é importante ter presente, sobretudo por se tratar de uma situação colonial, que os brancos e os mestiços rondavam as 18 e as 6 mil pessoas, respetivamente (Bettencourt, 1965, p. 102).

O nosso objetivo é demonstrar que a expansão da prática desportiva acompanhou o crescimento da cidade e da sua população, em especial a dos bairros. E que tal fenómeno foi identificado e mobilizado pelas autoridades coloniais portuguesas. A perceção da mudança é importante. Ainda na década de 1950, o futebol jogado no musseque era visto nas páginas do jornal Angola Desportiva como violento e desorganizado. A tentativa das instâncias oficiais em relação a esse espaço desportivo foi de buscar o seu controlo, ampliando a 2.a divisão e criando uma 3.a divisão de futebol em Luanda, através da oficialização de alguns clubes de musseque.[10] Estes, por sua vez, entusiasmaram-se com o reconhecimento, mas em alguns anos começaram a perceber a impossibilidade de dar conta das atribuições, taxas e exames médicos exigidos. Aos poucos abandonaram a 3.a divisão.

Na década de 1960, a mesma publicação tece inúmeros elogios ao campeonato de futebol de bairro patrocinado pela cervejaria CUCA, que seria disputado por aquelas equipas dos musseques e apoiado pelas autoridades coloniais. O que mudou?

O nosso argumento é o de que tais autoridades coloniais, enquadradas pelas novas orientações da “ação psicossocial”[11], passaram a reconhecer e a incentivar o futebol jogado nos musseques com o objetivo de conseguir um acesso diferenciado, alternativo à lei e à força policial, aparentemente menos político e controlador, aos habitantes dos bairros populares luandenses.

A partir de medos da década de 1960, os avanços da guerrilha do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no leste da colónia, fizeram reacender o sinal de alerta nas autoridades militares portuguesas, após a sua rápida reconquista dos territórios ocupados pelos movimentos de libertação angolanos no imediato início da luta anticolonial, em 1961. O receio das autoridades militares portuguesas gerou um novo empenho quanto ao controlo sobre a população angolana, a fim de evitar que ela aderisse à revigorada luta de libertação. Tal empenho materializou-se, entre outros instrumentos, na ação psicossocial.

Essa estratégia pode ser visualizada através do futebol, assim como aconteceria com a música, como podemos observar em alguns dos relatórios e das atas do Conselho de Orientação de Acção Psicológica (COAP)[12] de Angola - órgão que abrigava as mais importantes autoridades civis e militares portuguesas no combate aos movimentos de libertação.

Isto foi possível, evidentemente, porque existia, desde os anos 1940, uma vida desportiva nos musseques (Bittencourt, 2014), que se manifestava nas inúmeras partidas informais disputadas nos vários campos de terra batida que esses bairros abrigavam. Esses campos eram fruto de diferentes embates entre a população africana e a administração colonial, quer pelo controlo do espaço, em função das expropriações recorrentes visando a acomodação da população colonial branca que chegava em maior número, quer pelo controlo da atividade desportiva, como se percebe ao acompanhar as disputas no campo das associações de futebol na década de 1920 (Marzano, 2010, pp. 91-95).

O DESPORTO CORPORATIVO

As práticas desportivas corporativas merecem ser destacadas por serem tanto um espaço de atuação dos habitantes dos musseques, que compunham as equipas nas disputas desportivas, como por serem também uma instância em que o tom disciplinador e controlador sobre os trabalhadores africanos aparece de forma mais evidente.

O desporto corporativo começou a aparecer de forma sistemática no jornal Angola Desportiva a partir de 1955. O primeiro texto a fazer referência à modalidade, assinado por Francisco Borges Leitão, ex-atleta internacional em vela, à época diretor da SIGA,[13] afirmou que o “desporto nas classes trabalhadoras de Luanda é praticamente nulo”.[14] Informou ainda que até àquela data só tomara conhecimento de dois torneios de futebol entre trabalhadores. O seu argumento central era de que já existiam firmas comerciais e indústrias em número e com capacidade para organizar grupos desportivos e recreativos que “proporcionem aos seus empregados meios suficientes para passarem as tardes de sábado e as manhãs de domingo em exercícios ao ar livre”.

O tom disciplinador e de controlo do tempo livre é notório no texto, bem ao sabor das análises sobre o desporto em África, que realçam a sua face de força auxiliar na empresa colonial (Giulianotti, 2010, pp. 14 e 15). Leitão afirmava que a prática desportiva:

Beneficia as entidades patronais porque ao iniciar cada semana tem os seus empregados com melhor disposição para o trabalho e daí, como consequência, um maior rendimento. Beneficia a sociedade em geral, porque deste modo evita-se a frequência de tabernas e de antros de vícios tão prejudiciais e infelizmente tão procurados nos fins de semana.

Por fim, uma lembrança importante, que evidenciaria mais precisamente o alvo das suas palavras recriminatórias: “temos a contar com o grande contributo dos desportistas indígenas, pois com a sua habilidade natural muito animam qualquer competição”. O elogio à participação dos indígenas não consegue esconder a perceção estereotipada quanto à sua suposta aptidão para as atividades físicas, mas também para o consumo de álcool. De facto, o regime do indigenato,[15] naquele momento em pleno vigor, iluminava friamente as barreiras raciais e sociais.

Por outro lado, tal relato das competições desportivas organizadas pelas empresas permite-nos perceber, através da presença dos trabalhadores indígenas nesses torneios, a participação dos negros e mestiços, na sua grande maioria moradores dos musseques luandenses, numa arena organizada pelas autoridades coloniais. Assim, era o domínio da prática desportiva que os habilitava a tal participação, mas esta concretizar-se-ia, neste caso, num terreno adverso.

Ainda em 1955,[16] o jornal passou a publicar a coluna “Desporto Corporativo” e anunciou a realização, também em 1955, de um torneio de futebol com 10 grupos corporativos, incorporado nas comemorações do 25.o aniversário da Associação Industrial de Luanda, com jogos no campo do bairro da Samba e da Textang,[17] uma dessas empresas.

A avaliação do torneio seria feita num novo texto de Francisco Leitão. O nível técnico e físico das equipas foi descrito como deficiente, mas o artigo ressaltou que mereciam destaque as equipas da Tipografia Angolana e da SIGA, que mostraram “maior resistência física, o que não admira, pois eram praticamente constituídas por jogadores indígenas e, como é sabido, estes se os deixarem treinam 24 horas por dia”.[18] No aspeto disciplinar, afirmou-se que o torneio foi um sucesso “tanto mais que se tratava de jogadores com educação bastante heterogénea e, uma grande parte, desconhecedora das leis do jogo”.[19]

Leitão explicou, no entanto, que esse “quase bom comportamento (…) [era] devido em muito à presença de dirigentes responsáveis de algumas das firmas concorrentes”.[20] Ou seja, o que funcionou bem teria sido obra da presença dos dirigentes, ainda que ele admitisse que a própria organização do evento sofreu com o improviso, que fez com que “o regulamento, ainda por falta de tempo, teve de ser feito quase que sobre o joelho”. Importante é destacar que o autor, conhecedor da expansão do espaço desportivo colonial, fez questão de ocultar que aqueles jogadores já praticavam o futebol nos seus bairros nos fins-de-semana e que dominavam as regras do jogo.

Por fim, o mesmo autor destacou que as equipas que fizeram a final, LAL[21] e Robert Hudson[22], estavam mais bem preparadas no aspeto técnico e físico, em função de possuírem “jogadores treinados e jogados nos campeonatos da A. F. L.”.[23] Essa referência é importante por identificar algo que iremos ver ao longo dos anos 1950 e 1960, que é a conexão entre espaços e jogos oficiais e não oficiais, através de alguns jogadores que participavam em ambos. E como isso gerou críticas por parte dos clubes que integravam a 1.a e 2.a divisões, mas também da imprensa desportiva, sobretudo nos anos 1950, pelo facto de alguns jogadores priorizarem a competição nas empresas, porque essa poderia resultar em maiores ganhos financeiros, ou mesmo a competição informal do bairro, em função dos laços afetivos que esta envolvia, em detrimento dos jogos oficiais.

Essa dinamização do desporto corporativo resultou na criação de grupos desportivos e culturais em várias empresas instaladas na colónia, que assumiram a responsabilidade de organizar as competições desportivas dentro das próprias companhias. O grupo da cervejaria CUCA, por exemplo, foi o responsável pela montagem do programa de comemorações do aniversário da empresa no ano de 1956. A divulgação das atividades planeadas foi precedida pela esclarecedora explicação de “que a denominada classe B, refere-se aos modestos servidores indígenas, que não foram esquecidos.”[24] Portanto, brancos e negros, cidadãos e indígenas, participaram do evento, mas apenas uma vez estiveram todos juntos, quando dos cumprimentos ao administrador da companhia. Em todas as atividades desportivas e sociais as classes A e B ficaram separadas. Não houve disputa desportiva envolvendo indígenas e não indígenas. As partidas de futebol foram para ambas as classes, mas separadas; os jogos de ténis foram só para a classe A, assim como o passeio de confraternização, que incluiria as suas famílias, e o “sarau cultural” no salão do Rádio Clube de Angola. Para os indígenas, só para esses, houve “na fábrica - sessão de cinema educativo para os sócios da classe B, sendo-lhe oferecido cervejas e sucos”.[25]

A ideia de vincular o nome da CUCA ao desporto era explícita, mas tal associação ainda mantinha as fronteiras raciais e coloniais. Enquanto o futebol parecia ser o desporto destinado aos trabalhadores indígenas, modalidades como as corridas de automóvel, também patrocinadas pela cervejaria, atendiam, em função do seu custo elevado, aos colonos mais abastados.[26] Em ambos os casos o que estava em jogo era a associação entre a marca da cerveja e determinada prática desportiva, buscando como resultado o aumento das vendas da bebida, algo que acompanharia o crescimento da cidade (Clarence--Smith, 1990, p. 172).

Em 1960, surgiu uma nova tentativa de levar adiante a organização de competições desportivas corporativas. Dessa vez, 19 empresas participaram da organização dos “I Jogos Desportivos e Culturais do Comércio e da Indústria”.[27] As modalidades foram bem diversificadas: futebol, futebol de salão, andebol, ténis de mesa, ténis, badmington, voleibol, basquetebol, xadrez, pesca, natação e atletismo. Na parte cultural: poesia, prosa, pintura e fotografia.[28] A novidade, para além da variedade das modalidades desportivas e culturais, foi que a distinção entre os atletas se fez sentir num único item do regulamento, que mencionava a necessária apresentação do “bilhete de identificação”. Não foi dito bilhete de identidade, o que inviabilizaria de imediato a participação dos indígenas. É possível especular que esse artifício permitia deixar a cargo das próprias empresas a definição de quem poderia competir por elas.

Para além disso, evidentemente, algumas das modalidades previstas eram de difícil acesso, quando não impossível, às camadas mais pobres. Cabendo sugerir que a simples distinção de quem praticava tal atividade pode ter sido suficiente para separar trabalhadores indígenas e civilizados, conforme a orientação legislativa colonial à época, se é que aos primeiros foi permitida a participação. O Angola Desportiva informou, ainda, que, depois de inscritos, os atletas teriam que ser aprovados pelo Conselho Provincial de Educação Física. A ideia era impedir a participação de atletas que estivessem inscritos em associações distritais na modalidade para a qual se inscreveram no evento, mantendo, assim, a separação entre o desporto corporativo e o desporto oficial.

A competição foi iniciada no dia 3 de setembro do mesmo ano. O acompanhamento pelo Angola Desportiva limitou-se aos resultados e aos comentários das provas iniciais.[29] A competição reapareceu no Angola Desportiva no ano seguinte, em maio, sendo que os jogos terminaram em abril.[30] O número de equipas inscritas e o número de finalistas evidenciam que não foi apenas o jornal que foi perdendo o interesse pela competição.

Uma nova iniciativa teve lugar em 1967, com o “I Torneio Corporativo de Luanda”, desta vez organizado pelo Instituto do Trabalho, Previdência e Acção Social, que nessa década de 1960 assumiu maior protagonismo no apoio e na promoção do desporto corporativo da colónia, mantendo, no entanto, a perspetiva inicial das empresas de pensar as práticas desportivas como mecanismos de controlo do tempo livre dos trabalhadores e de preparação do seu físico para a atividade laboral (Bosslet, 2014, p. 102).

O torneio de 1967 envolveu várias modalidades e o sucesso do evento, que seria repetido nos anos seguintes, fez o Angola Desportiva defender a participação das equipas das empresas nas competições distritais oficiais, nas modalidades em que os clubes apresentassem equipas muito fracas ou não apresentassem, como seria o caso do ténis de mesa e do voleibol.[31]

Várias empresas começaram a patrocinar competições, agora não apenas nas modalidades que, dada a sua dinâmica e necessidade de investimento, eram levadas adiante por colonos ricos. Novas inciativas como torneios de futebol, atletismo e provas de ciclismo, com diferentes categorias, passaram a atrair o olhar de algumas companhias, como seria o caso da cervejaria Nocal,[32] não por acaso concorrente direta da CUCA, aquela que parece ter sido a primeira no ramo a prestar atenção às relações entre o desporto e o mercado para o seu produto.[33] A expansão económica da colónia era percetível e tinha por base um “mercado interno dinâmico e em expansão” que incentivava as empresas (Valério e Fontoura, 1994, p. 1203) a pensarem em estratégias para alcançarem esses novos consumidores.

OS JOGOS DE SUBÚRBIO

Seguindo o nosso caminho de procurar observar a expansão da prática desportiva pela cidade de Luanda, passaremos agora para os clubes de bairro. Se o desporto corporativo, pelas dimensões apresentadas e pelo seu alcance junto aos trabalhadores aponta para a popularização das práticas desportivas, alcançando inclusive os trabalhadores indígenas, no caso do futebol suburbano o que podemos ver é o crescimento, bem como a organização da modalidade, ao largo do controlo do Estado.

No dia 2 de junho de 1964 (p. 4), o Angola Desportiva apresentou um artigo com o título “ronda domingueira pelos clubes suburbanos”, que incluía uma foto do Clube Desportivo e Recreativo dos Bairros Unidos. O texto elogiava o facto de no domingo os jovens se enfrentarem nessas “disputadíssimas pelejas”, afirmando que eles poderiam “num futuro que antevemos próximo aumentarem o número dos clubes inscritos na nossa A. F. L.”

Em 20 de novembro de 1965 (p. 14), um novo artigo com o nome “Ronda pelos clubes suburbanos” destacou o “União Desportivo do Bom Jesus”. Tratava-se de uma entrevista com o presidente da agremiação e o jornalista mostrou-se surpreso com a “ordenação, quer no aspecto higiénico, quer ainda na da arrumação em si” da sede, já que se situava no musseque Rangel. Dizia ainda que o clube enfrentava dificuldades financeiras porque tinha poucos sócios e que contava com sessões de baile nos fins de semana para obter fundos.

Em 16 de novembro de 1968 (p. 5), o jornal iniciou uma coluna sobre os clubes de musseque, “Nós… e o futebol suburbano”, assinada por João Fortunato. O tom era simpático a tal atividade, falando da quantidade de jogos aos domingos nos musseques e dos muitos jogadores habilidosos que eles reuniam. Ainda assim, afirmava, recorrendo à forma como até aos anos 1950 o jornal caracterizava tal espaço, que “pratica-se ali um futebol indisciplinado (…) clubes não federados e extremamente pobres que nem sequer podem arcar com as despesas de aquisição dos próprios equipamentos!”.

A novidade dessa coluna é que ela consistia basicamente em entrevistas com jogadores de clubes de musseque. Ao todo conseguimos contabilizar sete entrevistados nos números consultados do jornal. Todos bem jovens, entre 18 e 22 anos, negros, nascidos em Luanda, com passagem por equipas oficiais da colónia. Em alguns casos, afirmaram ter saído desses clubes porque os dirigentes não pagavam o que tinham combinado, noutros relatos alegaram ter escolhido jogar pela equipa do subúrbio ou musseque.[34] A coluna surgiu um mês antes do início do torneio de futebol que seria patrocinado pela CUCA e que mobilizaria as principais equipas dos bairros. Tal referência foi recorrente nas entrevistas, funcionando como mais um reforço de divulgação do torneio.

Merece destaque o facto de vários desses jogadores afirmarem nas suas entrevistas que preferiram jogar em equipas do subúrbio. Tal opção é importante por indicar que o clube oficial nem sempre cumpria o prometido e que os clubes de musseque talvez oferecessem compensações, inclusive financeiras, aos jogadores. Podemos aventar ainda a hipótese de que tal escolha representasse a afirmação de um espaço de autonomia, longe da esfera mais explicitamente colonial, como se o jogador dissesse que a sua dignidade não era medida pela sua inserção no universo do colono.

Quanto à relação entre o jornal e os habitantes dos musseques, é preciso realçar que temos conhecimento das altas taxas de analfabetismo em Angola e do quanto o acesso ao jornal era limitado por tal condicionalismo e também pelo preço da publicação. No entanto, a perspetiva aqui adotada é a de pensar o Angola Desportiva como uma fonte de informação do que se passava em Luanda, ciente dos limites da nossa capacidade em precisar a sua repercussão nos bairros, ainda que essa também existisse, quer pela leitura direta do periódico, quer através dos comentários que animavam as rodas de discussão sobre as diferentes esferas do desporto. Para além disso, podemos supor que a cobertura dos jogos entre as equipas dos musseques fizesse com que as populações daqueles bairros se sentissem prestigiadas. Não é difícil imaginar a alegria e o zelo daqueles jovens em guardarem as edições do jornal com as suas entrevistas e respetivas fotografias. Portanto, é preciso ter em conta que o jornal não só revelava, como também provocava ou buscava provocar o interesse pelo desporto.

Dado importante, que corrobora uma ideia apresentada no início deste texto, é que o jogador citado como mais admirado no futebol metropolitano, uma unanimidade entre os entrevistados, foi Jacinto João, que ganhou fama em Portugal jogando pelo Vitória de Setúbal. Não por acaso, Jacinto João foi um dos fundadores de um famoso clube de bairro, Os Perdidos na Bola, no qual jogou antes de ingressar no desporto oficial, primeiro no Benfica de Luanda e depois no Futebol Clube de Luanda. JJ, como também era conhecido, espelhava um caminho de ascensão social possível de ser trilhado pelos entrevistados, reforçando as conexões entre os diferentes espaços do futebol metropolitano, colonial, corporativo e do musseque.

Por outro lado, a mudança de postura do Angola Desportiva em relação aos clubes dos bairros deve ser pensada a partir do novo cenário colonial que os anos 1960 inauguraram. O início da luta armada pela independência desencadeada pelos movimentos de libertação angolanos em 1961 gerou respostas divergentes entre as forças coloniais. Se no plano das leis se assistiu ao fim do indigenato, no tocante às relações sociais é recorrente a afirmação quanto ao recrudescimento do racismo por parte dos colonos brancos, agora não mais oficializado pela restrição da assimilação (Neto, 1997, p. 349), mas inflamado pelo medo.[35] A já citada ação psicossocial que, como vimos, foi elaborada pelos militares portugueses que acreditavam que uma possível vitória passava pela atração da população africana para a órbita portuguesa, é mais um exemplo dessas divergências, já que sofria críticas tanto entre os próprios militares, como da parte das autoridades coloniais.

Essas tensões internas às autoridades coloniais, militares e civis, e, como vimos, o recomeço da inciativa nas frentes de batalha do leste da colónia pelo MPLA, ajudam a entender por que só na segunda metade da década de 1960 se tornou mais evidente a estratégia da ação psicossocial para os musseques de Luanda. A sua atuação nesses espaços visava a construção de uma rede de contrainformação às orientações dos movimentos de libertação, bem como a divulgação das ações de melhoria nas condições de vida da população negra. E o futebol foi um dos caminhos escolhidos para fazer passar tais orientações e induzir a imagem de certa normalidade na vida colonial quer pela via da valorização dos jogadores negros na metrópole, em especial os que atuavam na seleção portuguesa, quer pela exaltação da expansão dessa prática desportiva pelos musseques.[36]

O TORNEIO DA CUCA

A competição de clubes de musseque organizada pela CUCA deve ser observada a partir dessa nova estratégia de atuação moldada pela ação psicossocial. A ligação com as forças de segurança, em especial os comandos militares e a PIDE[37], ou mesmo com as diferentes instâncias administrativas estatais, não seria explicitada no correr da divulgação do torneio, mas é percetível, entre outros elementos, através do policiamento presente nas partidas. Mais do que isso, seria inimaginável a realização de um evento com aquelas dimensões, envolvendo mais de 4 mil pessoas por jogo na assistência, sem qualquer tipo de autorização ou aprovação das autoridades coloniais civis e militares.

Angola vivia uma guerra de libertação e os musseques, como alerta Juliana Bosslet (2014, pp. 146-150), viviam essa guerra em outros moldes, sem ações armadas anticoloniais diretas, mas com inúmeros casos de extrema violência, quer em função do policiamento ostensivo, quer devido à presença dos militares nos seus momentos de folga, acumulando bebedeiras e brigas pelas estreitas ruas dos bairros.

Por outro lado, as autoridades coloniais estavam receosas de que novos impulsos de clandestinidade brotassem nos bairros, que novos jovens aderissem ao processo de construção de células independentistas, como aconteceu no final dos anos 1950. Num cenário assim, o torneio de futebol da CUCA dificilmente escaparia à vigilância e ao controlo da PIDE e dos militares portugueses.

Outro dado importante que confirma a inserção do torneio na estratégia da ação psicossocial foi o apoio que a competição recebeu dos dois principais canais de propaganda por ela criados: o jornal Tribuna dos Musseques (TM) e a rádio Voz de Angola.[38] O jornal foi lançado em 1967, inicialmente como um suplemento de um outro jornal, o ABC Diário de Angola,[39] e em 1969 passou a ser uma publicação isolada.[40] A rádio Voz de Angola, criada em 1968, usava as instalações da Emissora Oficial de Angola (EOA).[41] Transmitia alguns programas em línguas locais e muita música angolana. Apresentou também uma série de entrevistas com desertores “reais e imaginários” dos movimentos de libertação, ao lado de “heróis africanos” que eram leais aos portugueses (Moormam, 2008, pp. 156-157). O seu nome era uma evidente tentativa de sobreposição à famosa rádio do MPLA, instalada no Congo Brazzaville e chamada Voz da Angola Combatente (Bittencourt, 2008, v. 1, pp. 271-278).[42]

Ambos os meios de comunicação tinham como missão afastar os angolanos da ideia de independência e do poder de atração dos movimentos de libertação, em especial sobre os mais jovens (Bittencourt, 2008, v. 1, pp. 303-304). Pretendiam passar a imagem de uma crescente integração da população dos musseques na cidade de Luanda.[43] Veiculavam notícias dos bairros, informações culturais e, evidentemente, desportivas. A Voz de Angola transmitiu os jogos do torneio[44], enquanto o Tribuna dos Musseques acompanhou atentamente o desenrolar da competição.[45]

Esse foi indiscutivelmente o torneio de futebol que mobilizou os bairros e ultrapassou o seu território. Jornais de grande circulação na cidade também noticiavam a competição, gerando uma gigantesca propaganda indireta para a empresa. O Diário de Luanda (DL), por exemplo, ainda que sem a dedicação quer do Angola Desportiva quer do Tribuna dos Musseques, foi capaz de assinalar o facto de que as equipas estavam alugando autocarros para que as suas respetivas torcidas pudessem acompanhar as partidas. Ou ainda de que era constante a presença de dirigentes das equipas do futebol corporativo nos jogos, com o intuito de realizarem “sondagens” junto às jovens revelações.[46]

Na sua primeira edição, com início em 1 de dezembro de 1968, e fim em 6 de abril de 1969, o torneio envolveu os principais musseques da cidade e contou com 10 equipas: Naturais Futebol Clube, Académica Escola Social do Zangado, Futebol Clube Barreirense, Juventude Unida do Bairro Alfredo - JUBA, Ases Futebol Clube, Os Onze Bravos do Quinzau, Sport Quinzau e Benfica, Os Perdidos na Bola, Associação Académica do Ambrizete e Grupo Desportivo do Cazenga.[47] Os jogos, 2 por rodada, ocorriam ou no “pelado” do Clube Atlético de Luanda ou no “pelado” do Cazenga. A designação curiosa buscava enfatizar as condições do campo de jogo. Todas as partidas eram acompanhadas de vários pontos de venda da cerveja patrocinadora.[48]

O artigo que abriu a cobertura do torneio no Angola Desportiva[49], curiosamente, fez referência a uma outra matéria publicada no ano anterior,[50] pelo próprio dono do jornal, Eduardo Castelbranco, que usando do espaço da sua coluna, “Do meu cantinho…”, criticou os “clubes suburbanos - ou melhor, os grupelhos de futebol que todos os domingos se exibem em diversos terrenos baldios ainda espalhados pelos muceques!…”. Segundo o autor, havia normas das entidades do desporto que proibiam o “desporto não oficializado e vadio que sempre grassou lá para as bandas dos nossos vastíssimos muceques”. A crítica dele também se referia à denúncia de que um jogador de um dos grandes clubes da 1.a divisão se negou a jogar num determinado sábado, alegando doença, mas apareceu no domingo seguinte jogando pelo seu clube de musseque.

No texto de 1968, referente à abertura do torneio da CUCA, o jornal aparentemente muda a sua perspetiva, valorizando as equipas do subúrbio, afirmando que “nós o que éramos (e somos ainda) sim, é contra o futebol indisciplinado, sem “rei-nem-roque”, agressivo e zaragateiro, quezilento, tão frequente nas peladas dos muceques”.[51] O autor lembrava, também, que não gostava de ver jogadores inscritos nos clubes oficiais faltarem a jogos para “se esfarraparem todos nas tais pelejas e pugnas das mais diversas, aos domingos”.[52] Ou seja, mantinha todos os argumentos críticos aos jogos de subúrbio, mas dizia, em seguida, que com o torneio da CUCA a coisa era diferente. A empresa

desceu ao pormenor nos cuidados da organização (…) marcou os campos e cuidou dos vestiários para os jogadores e equipas de arbitragem (…) terraplanou os terrenos e levou até eles o necessário policiamento para nas tardes dos encontros manter a ordem entre os assistentes e jogadores, etc… Enfim, a CUCA esmerou-se para dar ao indisciplinado futebol dos clubes dos muceques uma outra feição, séria e ordeira.[53]

Retomava assim a questão recorrente, pelo lado da ordem colonial, quanto à necessidade de policiar, disciplinar e organizar as práticas desportivas construídas nos musseques. No entanto, essa perspetiva tão explicitamente controladora não seria assumida nem pela empresa de cervejas, nem pelas autoridades coloniais na análise do torneio. Em entrevista à rádio Voz de Angola, reproduzida no Angola Desportiva, o dono da CUCA, Manuel Vinhas, usou termos bem menos agressivos ao informar que os objetivos foram alcançados e que se pretendia “fomentar a prática do desporto” e “aproveitar a oportunidade para que determinadas estruturas morais fossem observadas”.[54] Enquanto isso, as avaliações realizadas pelo Tribuna dos Musseques e pela Voz de Angola foram sempre no sentido de destacar o apoio da CUCA, mas também de exaltar a participação dos habitantes dos musseques.

Na sequência do torneio, a cobertura feita pelo Angola Desportiva passou a ser assinada por João Fortunato. As reportagens traziam fotos das equipas, as pontuações e os comentários sobre os jogos e os árbitros. A destacar que a média de público na fase final do torneio foi estimada entre 4 e 6 mil pessoas, com um jogo alcançando o público recorde de 7 mil pessoas.[55] Apenas um jogo, na rodada do dia 2 de março de 1969, seria noticiado como tendo sido encerrado antes do tempo em função da invasão da torcida inconformada com a marcação de um golo irregular.[56] O Tribuna dos Musseques aproveitou o comentário ao “sururu” para reafirmar que o objetivo do torneio era “altamente patriótico que honra e enobrece a sua organização: o da portugalidade das massas suburbanas à escala da sua necessária promoção social no conjunto pátrio”.[57] Ou seja, não deixando dúvidas, quer quanto ao seu vínculo às autoridades coloniais, quer quanto aos objetivos traçados por essas autoridades em relação àquela competição.

O sucesso do torneio fez a CUCA anunciar a sua ampliação para uma segunda edição a ter lugar no segundo semestre de 1969. A competição passaria a contar com 16 equipas em Luanda, 10 em Nova Lisboa (atual Huambo), 8 no Lobito e 4 em Benguela, cidades nas quais a CUCA possuía instalações. Dessa fase inicial sairiam 4 equipas que disputariam a fase final em Luanda, no estádio Municipal dos Coqueiros.[58] Dessa forma, o evento da CUCA ultrapassava as fronteiras dos musseques, da própria Luanda e alcançava repercussão em toda a colónia, expandindo sua marca e, evidentemente, o seu consumo.

Conclusão

O desporto corporativo permitiu perceber o quanto as empresas, mas também as autoridades coloniais, reconheciam a adesão ao desporto, em especial ao futebol, por parte do trabalhador africano, morador do musseque. No entanto, a estratégia nesse caso foi a de buscar o controlo do tempo livre do trabalhador e de condicioná-lo para o trabalho, o que nem sempre resultou como planeado, a julgar pelas reclamações, por parte de jornalistas e empresários, quanto à opção de os atletas atuarem nos jogos dos musseques. Os clubes de musseque, por sua vez, eram fruto da organização dos africanos, à margem da ordem colonial. A novidade do torneio da CUCA é sua inserção nos musseques, nos clubes de bairro, sem que os suburbanos aparentemente perdessem o protagonismo dessa ação.

A análise bipolarizada, citada na introdução deste artigo, favorece o olhar sobre a resistência, que por sua vez tende a concentrar a nossa atenção nos movimentos organizados com discursos nacionalistas, deixando de lado a complexidade do quotidiano colonial. O nosso exercício foi em sentido diverso, o de perceber as diferentes estratégicas construídas na situação colonial. Dessa forma, foi possível atentar para o facto de que apesar do poder militar e administrativo das autoridades coloniais, “a rotina do poder” (Cooper, 2008) exigiu que elas articulassem mecanismos de contacto para um outro tipo de aproximação aos angolanos, que, por sua vez, estabeleceram as suas respostas, elaboraram as suas próprias estratégias. O campo desportivo, em especial o futebol, dada a sua aparente despolitização, tornou-se, nesse sentido, um interessante espaço de intervenção e negociação para essas estratégias.

Como vimos, os novos produtos alcançavam os musseques. A rádio Voz de Angola e o jornal Tribuna dos Musseques, ainda que implementados pelas forças de segurança, eram alguns deles. O futebol e a cerveja não possuíam a conhecida, ainda que camuflada, vinculação que a rádio e o jornal tinham com as autoridades policiais e militares. O futebol e a cerveja estavam inseridos na vivência daquelas pessoas e, exatamente por isso, eram valorizados como meio de acesso a esse espaço do musseque. A novidade dessa investida estava na vinculação entre o interesse controlador e informativo das forças de repressão coloniais com o interesse comercial dos novos mercados em expansão.

 

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Recebido a 13-01-2016. Aceite para publicação a 24-07-2017.

 

[1] O jornal Angola Desportiva (AD) foi publicado entre 08-08-1930 e 29-09-1971. Teve no total 847 números. Para este artigo foi possível consultar 290 números, entre os anos de 1953 e 1969. V. também Pinheiro (2009), pp. 300-303 e 425.

[2] Companhia União de Cervejas Angola. Os musseques são bairros pobres, com construções muitas vezes improvisadas, sem saneamento básico e demais serviços públicos regulares. Nos anos 1950 e 1960, em paralelo à palavra musseque, começaram a ser usadas as designações bairro e subúrbio, para nomear os mesmos locais, como pode ser observado ao longo de vários números do jornal Angola Desportiva. Os bairros que não eram musseques eram chamados pelo nome, como era o caso, por exemplo, da Vila Alice e dos Coqueiros. Nesse texto usaremos musseque, bairro e subúrbio como sinónimos.

[3] Essa acusação era ainda mais forte pelo facto de muitas dessas transferências não gerarem qualquer pagamento ou indemnização à equipa que revelou o atleta (AD, 21-01-1961, p. 2).

[4] Vale lembrar que com a revisão constitucional de 1951, as colónias portuguesas em África passaram a ser chamadas de províncias ultramarinas. Dessa maneira, Portugal tentava reforçar a ideia de que o seu colonialismo era diferente dos demais impérios coloniais (Bittencourt, 2008).

[5] AD, 17-08-1954, p. 2. Outro motivo de grande insatisfação dos dirigentes desportivos em Angola era o facto de os montantes do Totobola, que foi comercializado na colónia a partir de 1961, não reverterem também para as entidades desportivas da colónia. A Associação Provincial de Futebol receberia uma primeira parcela em 1964 (AD, 02-02-1965, p. 12), mas a reclamação continuaria, pois em 1968 (AD, 29-06-1968, pp. 1 e 4), quase metade das receitas do Totobola em Angola continuava a reverter para instituições metropolitanas.

[6] AD, 17-08-1954, p. 2.

[7] A transmissão radiofónica desses campeonatos gerou sérios danos à popularidade do Angola Desportiva, já que este passou a publicar comentários sobre jogos que as pessoas escutaram mais de 3 ou até mesmo 6 dias antes. Tratava-se de um semanário, publicado aos sábados.

[8] Em Angola, desde 1941, ainda que com algumas interrupções, jogava-se primeiro o campeonato distrital. Depois passava-se para um torneio por zona ou região (Norte, Centro, Leste e Sul). Os vencedores de cada zona jogavam um novo torneio. O vencedor dessa fase seria o campeão provincial. Esse, a partir de 1958, ganhava o direito a disputar a Taça de Portugal (AD, 22-10-1966, p. 16 e 03-12-1966, pp. 3, 8, 9 e 11).

[9] Um grande feito nas instalações desportivas de Angola, desse período, seria a colocação do relvado no estádio municipal dos Coqueiros, em 1969 (AD, 22-02-1969, p. 4).

[10] AD, 26-04-1967, pp. 5 e 8.

[11] O documento que apresenta as diretivas da “ação psicossocial”, datado de 22 de junho de 1961, informa que o seu objetivo era: “incitar, por um lado, as populações de cor ainda fiéis a manterem-se conosco e conseguir, por outro lado, que as populações rebeldes abandonem o adversário”. Ou seja, a ideia central era de que a guerra colonial não seria vencida sem a conquista das populações africanas e isso seria feito com base na melhoria das suas condições de vida. Evidentemente, a estratégia cultural e política que orienta o documento não dava conta dos limites que uma situação colonial impõe. Arquivo Histórico Ultramarino. MU/GM/GNP/60/Pt. 1. Documento enviado pelo Gabinete do ministro para o Gabinete dos Negócios Políticos. Preâmbulo.

[12] Essa documentação encontra-se, desde 2014, no Arquivo Histórico e Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Originalmente estava integrada no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino. A título de exemplo pode ser destacada a Ata da sessão de 3 de abril de 1970, MU/GM/GNP/56/Pt. 3 - COAP (Bittencourt, 2014).

[13] Sociedade Industrial de Grossarias de Angola, pertencente ao conglomerado empresarial do grupo CUF (Companhia União Fabril).

[14] AD, 22-09-1955, pp. 1 e 2.

[15] Fórmula jurídica que colocava ao alcance do trabalho obrigatório a esmagadora maioria dos africanos. Segundo o Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, de 1926, os indígenas eram os “indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça”. Os negros e mestiços que requeressem a cidadania precisavam atender aos critérios exigidos pela administração colonial, que giravam em torno do domínio de códigos culturais europeus. Passavam a ser chamados de assimilados e obtinham o bilhete de identidade. No final do regime do indigenato, em 1961, contabilizavam menos de 1% da população da colónia. Os brancos, nascidos na metrópole ou não, eram considerados civilizados (Cruz, 2006, pp. 29-40, 172).

[16] AD, 06-10-1955, pp. 1 e 6.

[17] Fábrica de Tecidos.

[18] É possível ler o mesmo texto como um elogio à disposição física do indígena para o desporto e como uma crítica à sua suposta indisposição para o trabalho. AD, 24-11-1955, pp. 1 e 2.

[19] AD, 24-11-1955, pp. 1 e 2.

[20] AD, 24-11-1955, pp. 1 e 2.

[21] Empresa de abastecimento de Luz e Água de Luanda.

[22] Concessionária da FORD.

[23] Associação de Futebol de Luanda. AD, 24-11-1955, pp. 1 e 2.

[24] AD, 21-04-1956, pp. 7 e 8.

[25] AD, 21-04-1956, pp. 7 e 8.

[26] AD, 14-04-1956, p. 8.

[27] AD, 14-05-1960, pp. 1 e 3.

[28] AD, 18-06-1960, pp. 1 e 2, e 30-7-1960, pp. 1 e 2.

[29] AD, 03-09-1960, pp. 5 e 6, 17-9-1960, pp. 7 e 8, e 24-9-1960, pp. 5 e 6.

[30] AD, 16-05-1961, pp. 7 e 8.

[31] AD, 16-12-1967, p. 2 e AD, 10-08-1968, p. 6.

[32] Nova Empresa de Cervejas de Angola. AD, 22-12-1962, pp. 1 e 2.

[33] AD, 01-10-1965, p. 3, e 15-3-1969, p. 4

[34] A coluna pode ser consultada em 16-11-68 (p. 5), 23-11-68 (p. 5), 30-11-68 (pp. 3 e 4), 21-12-68 (p. 4), 04-01-69 (pp. 2 e 8), 15-02-69 (p. 2) e 01-03-69 (p. 2) no AD.

[35] Quanto à questão racial, cabe lembrar a existência de um número não desprezível de brancos residente nos musseques luandenses. V., por exemplo, Soares (1961, pp. 240-241) e (Bettencourt, 1965, pp. 102 e 103).

[36] Na já citada ata de 03-04-1970 (AHU/MU/GM/GNP/56/Pt. 3) do COAP é possível ver um bom exemplo dessa estratégia. Consta dos seus anexos um cartaz elaborado pelo COAP, com a imagem de um jogador negro e um branco, vestindo equipamentos respetivamente do Benfica e do Sporting, balizados pelas frases: “Angola é Portugal” e “Ambos portugueses”. Esses cartazes elaborados pelo COAP eram afixados nos mais diversos locais e bairros angolanos e faziam parte da sua estratégia de valorizar a ideia de convivência harmoniosa (Bittencourt, 2014).

[37] A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) era a polícia política portuguesa. Chegou a Luanda em finais dos anos 1950 para combater as agitações urbanas a favor da ideia de independência (Bittencourt, 2008).

[38] Roberto de Almeida, dirigente histórico do MPLA, libertado pela PIDE em 1968, relembra aquele período como sendo uma época de novidades na estratégia colonial portuguesa, com incentivos à contratação dos negros pelos serviços administrativos e a criação de canais de propaganda, como o jornal Tribuna dos Musseques e a rádio Voz de Angola (Entrevista com Roberto de Almeida, Luanda, 16 de fevereiro de 1995).

[39] Afonso Dias da Silva, um dos redatores do Tribuna dos Musseques, afirmou em entrevista (Rio de Janeiro, 08, 13 e 14 de março de 1996) que a criação do jornal tinha sido ideia do próprio diretor da PIDE em Angola, Aníbal de São José Lopes, e que a orientação era a de tratar de coisas sociais, que afetassem o dia-a-dia dos angolanos.

[40] Vale referir, ainda, que segundo Bosslet (2014, p. 131), em 1968, a cervejaria CUCA passou a apoiar uma secção do ABC Diário de Angola com o nome “Vida militar”, em apoio às tropas coloniais portuguesas em Angola, comprovando a boa relação existente entre a empresa e as autoridades militares.

[41] V. http://angolaradio.webs.com, acessado em 14-09-2015. Tanto a criação da rádio Voz de Angola quanto a do jornal Tribuna dos Musseques podem ser acompanhadas nas atas do COAP datadas de 19 e 26 de julho de 1968 (Arquivo Histórico e Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, MNE/AHD/UM/GM/GNP/SR.440/UI00383).

[42] Ambos os veículos de propaganda seriam acompanhados de perto pelo Gabinete de Ação Psicológica, através de relatórios que buscavam analisar a sua receção junto ao público angolano. V., por exemplo, “Memorando para o COAP”, datado de 26-09-1969, MNE/AHD/UM/GM/GNP/SR.440/UI00383.

[43] É interessante nesse caso destacar a mensagem de um dos responsáveis do jornal, Afonso Dias da Silva, à PIDE, sugerindo que o periódico estava sendo conotado como um “jornal da PIDE”, e que para evitar tal situação era importante haver um espaço para reclamações e para a presença de “colaboradores nativos não tidos como salazaristas” (Bosslet, 2014, p. 104). O pedido de Dias da Silva indica também o quanto a imagem do jornal como um produto das forças coloniais se expandiu pelos bairros.

[44] AD, 14-12-1968, pp. 4 e 6.

[45] No Arquivo Histórico e Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MU/GM/GNP/SR.56/Pt. 7), encontrei 12 números do jornal entre 19-12-1968 e 24-04-1969 e em todos eles havia referência ao torneio de futebol da CUCA. As matérias sobre o torneio eram assinadas por Teófilo José da Costa.

[46] DL, 03-01-1969, pp. 4 e 7. Cabe referir que a organização do torneio vedava a participação de jogadores vinculados a qualquer outra competição oficial, que fosse organizada por associações provinciais ou distritais, pelo Instituto do Trabalho ou pela Mocidade Portuguesa (TM, 09-01-1969, p. 9 e 23-01-1969, pp. 8 e 10).

[47] No domingo seguinte ao término da competição, vencida pelo Escola Social do Zangado, uma seleção composta por jogadores de destaque do torneio seria derrotada por 2 a 1 pelo Sport Huambo e Benfica, um clube oficial, que disputava o campeonato provincial. O jogo foi no campo do Clube Atlético de Luanda e teria reunido 10 mil pessoas (TM, 17-04-1969, p. 9 e 24-04-1969, p. 9).

[48] AD, 14-12-1968, pp. 4 e 6.

[49] AD, 07-12-1968, p. 3.

[50] AD, 26-04-1967, pp. 5 e 8.

[51] AD, 07-12-1968, p. 3.

[52] AD, 07-12-1968, p. 3.

[53] AD, 07-12-1968, p. 3.

[54] AD, 08-02-1969, pp. 1 e 6.

[55] AD, 01-03-1969, p. 5 e TM, 19-12-1968, p. 14.

[56] AD, 08-03-1969, p. 2.

[57] TM, 06-03-1969, p. 4.

[58] DL, 02-10-1969, pp. 4 e 15.

 

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