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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.225 Lisboa dez. 2017

 

DOSSIÊ - DESPORTO E LAZER EM ÁFRICA

Lazer em Luanda: o controlo do tempo livre dos trabalhadores e a manutenção da ordem colonial (1961-1975)

Leisure in Luanda: the control of workers’ free time and the maintenance of the colonial order, 1961-1975

Juliana Bosslet*

*School of Oriental and African Studies 53 Gordon Square — WC1H 0PD, Londres, Reino Unido. j_cordeiro_de_farias_bosslet@soas.ac.uk


 

RESUMO

Lazer em Luanda: o controlo do tempo livre dos trabalhadores e a manutenção da ordem colonial (1961-1975). Com o esforço para desenvolver uma economia capitalista em Luanda, o tempo desperdiçado com lazer tornou-se uma questão a ser solucionada pelos agentes da ordem. A eclosão da guerra de independência contribuiu para que o ócio fosse visto pelo aparato policial e administrativo enquanto propício para o desenvolvimento de ideias consideradas subversivas. O objetivo será entender em que medida o lazer em Luanda se tornou um problema de ordem pública e como o controlo do tempo livre dos trabalhadores negros configurava uma necessidade política e económica sem o qual as relações de poder próprias daquela realidade colonial estariam em risco.

Palavras-chave: lazer; subversão; colonialismo; trabalho.


 

ABSTRACT

Leisure in Luanda: the control of workers' free time and the maintenance of the colonial order, 1961-1975. As a result of the effort to establish a capitalist economy in Luanda, time “wasted” on leisure became a problem to be dealt with by members of the police force. Following the outbreak of the liberation struggle, idleness was considered by authorities as an opportunity to develop subversive ideas. The aim here is to understand the extent to which leisure activities in Luanda became an issue of public order. Further to that, the control of the black workers' free time developed into a political and economic need without which the power relations that characterized Luanda's colonial society would be at risk.

Keywords: leisure; subversion; colonialism; labor.


 

Introdução

Era sábado à noite. Luzes mais fortes indicavam bailes. Sombras mais escuras pediam desordens […]

Era sábado à noite. De tarde tinha-se recebido a magra quantia do suor duma semana. Domingo ainda haveria dinheiro para continuar.

Segunda-feira o mesmo destino de mais uma semana, mais duas, mais, mais semanas de suor e magro vencimento. […]

Homens que trabalhavam toda a semana na Baixa e que ao sábado gastavam todo o dinheiro nas lojas dos brancos, em vinho e cigarros. Gastando-se numa vida sem perspectivas, sem janelas abertas. Mas era o único divertimento acessível. Era a única maneira de se desforrarem de uma semana inteira de humilhações [Vieira, 1978, pp. 129-132].

Em crónica de 1957, Luandino Vieira apresenta uma descrição de um sábado à noite em Luanda. Vieira tratava de um grupo e de uma região específicos, que compunham a grande cidade que Luanda já se havia tornado. Não escreve sobre aqueles que moravam na cidade de asfalto, a Baixa, cujas opções de lazer eram bastante diversificadas. Tratava dos que na Baixa transitavam na função de trabalhadores, daqueles que lá circulavam entre segunda e sábado à tarde, e que, nas noites de sábado e aos domingos, gastavam nos subúrbios o seu magro vencimento. É esse também o grupo sobre o qual nos deteremos no presente artigo.

Ao escrever sobre um sábado à noite, o autor não ignora a proximidade da segunda-feira, e, quando o faz, torna percetível o tom de amargura com que aborda o tema do lazer. Através dos divertimentos disponíveis para os diferentes grupos sociais que habitavam a capital, reproduzia-se as relações de dominação próprias àquela sociedade colonial.

Algumas palavras tornam-se necessárias para explicitar o que aqui se entende por lazer, tendo em consideração as dificuldades em atribuir uma definição para o termo, uma vez que os significados atribuídos ao lazer variam não só ao longo dos anos, mas também entre grupos sociais e até entre indivíduos que vivem num mesmo período histórico. Os anos entre 1950 e meados de 1970 foram marcados por um desenvolvimento industrial e pela expansão do sistema capitalista em Angola, tendo Luanda como centro. Trata-se, por isso, de um momento ideal para a difusão de uma conceção de lazer em sintonia com a tentativa de imposição de uma determinada noção de tempo e de disciplina de trabalho (Ambler, 2003, pp. 4-5), o que gerou tensões ao abrir caminho para uma disputa por autonomia na organização do ritmo de vida na cidade. Nesse sentido, a noção de lazer aqui adotada será a que melhor ilumina a relação conflituosa entre o regime colonial português e as populações africanas[1] dos musseques, como são chamados os bairros periféricos de Luanda. É também nesse contexto de disputa que se formula a ideia de que o lazer das classes trabalhadoras e o ócio das fileiras de desempregados seriam um problema. O lazer, noutras palavras, será aqui abordado na sua apropriação pelo Estado português como parte da sua estratégia de manutenção da ordem colonial.

ESTUDO SOBRE A PRECARIEDADE DAS CONDIÇÕES DE VIDA NOS MUSSEQUES, 1966

É que se torna impossível […] poder destrinçar dentre esta enorme massa populacional aqueles que procuram a cidade para alcançarem, assim, uma melhoria de vida daqueles que a procuram com fins e ideias inconfessáveis. […] Em parte, o que se passa em Luanda passa-se em todos os grandes centros. […]. Mas, se só assim fôsse, por normal, não teria implicações mais graves do que as já conhecidas e estudadas pelos sociólogos; […] Mas a tudo isto há que acrescentar um outro fenômeno: o do terrorismo.[2]

Em 1966, o governador-geral de Angola nomeou um grupo de trabalho (GT) para elaborar um estudo das medidas necessárias para um maior controlo das entradas e saídas de Luanda e das condições de vida das populações que habitavam os musseques. Esse grupo era inicialmente composto por representantes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), do Comando de Defesa de Luanda e da Polícia de Segurança Pública (PSP). No entanto, ao longo das discussões, por questões que trataremos adiante, foi também convidado a participar um representante do Instituto do Trabalho, Previdência e Ação Social.

O que importa destacar de início é a conceção de que os problemas de Luanda, se não fosse pela eclosão do terrorismo – termo usado para referir a atividades de cunho separatista –, seriam consequências do fenómeno de urbanização presente em qualquer grande cidade. No entanto, no mais das vezes, atribuía-se a deterioração das condições de vida nos subúrbios à imigração africana para a cidade, que não tinha capacidade para dar ocupação a toda gente[3], e ignorava-se os efeitos causados pelo estabelecimento de imigrantes metropolitanos na capital de Angola – o que não surpreende se levarmos em consideração o facto de que o povoamento branco era vistos por muitos de forma positiva.[4] Contudo, como se pode inferir do trecho acima, foi a eclosão da luta armada pela independência que fez da precariedade das condições de vida nos musseques um tema a ser priorizado pelo governo da província[5] e seus agentes policiais e militares.

Com o decorrer das discussões, porém, o grupo chegou à conclusão de que “só medidas repressivas ou de vigilância não resolveriam o problema”, e solicitou ao “Instituto de Trabalho a cedência do seu Chefe do Departamento de Trabalho, Dr. Almeida e Cunha, para connosco colaborar”.[6] Em outras palavras, reconhecia-se que o problema do controlo de populações não era apenas uma questão policial – tratava-se também de uma questão de trabalho.

INDUSTRIALIZAÇÃO E PROLETARIZAÇÃO DOS MUSSEQUES DE LUANDA

Ao longo da década de 1940 assistiu-se a uma diminuição das restrições à implementação de indústrias no ultramar. Grande influência nesse desenvolvimento tiveram os oligopólios portugueses – que ganharam força com a concentração de capital decorrente da recessão dos anos 1930 – e os colonos estabelecidos no império. Foi durante as décadas de 1940 e 1950 que a imigração da metrópole para os territórios ultramarinos atingiu o seu máximo: cerca da metade dos emigrantes de Portugal (Clarence-Smith, 1978, p. 26). Ademais, o grande contingente de população branca que migrou para o território teve por consequência a criação de um mercado consumidor interno. Ao contrário do que se poderia supor, a eclosão da guerra de libertação em 1961 intensificou o processo de industrialização que já se desenhava[7] (Murteira, 1999, p. 109; Clarence-Smith, 1978, pp. 173-174).

Esse desenvolvimento industrial, porém, não ocorreu de forma idêntica em todas as partes da província. Ao contrário, concentrou-se em algumas regiões, sendo Luanda uma delas (Bosslet, 2014, p. 95). Em consonância com o que aqui já foi dito, o geógrafo Ilídio do Amaral localiza na década de 1940 a criação das primeiras indústrias de maior importância em Luanda, como as de artefactos de borracha, tecidos e massas alimentícias (Amaral, 1968, pp. 85-86). Nos anos que se seguiram, a indústria continuou a crescer. Entre 1950 e 1970, foram instaladas 1141 unidades industriais na cidade (Monteiro, 1973, p. 61). Não admira, portanto, que o desenvolvimento económico da capital atraísse não só metropolitanos, mas também populações de outras regiões de Angola, que para a cidade se dirigiam em busca de melhores condições de vida.

Essa migração maciça resultou no que Fernando Mourão chamou de novo musseque, “que reflete formas de organização resultantes da industrialização de Luanda e da inserção de Angola como um todo num espaço económico maior” (2006, p. 22). O novo musseque, no último período da colonização portuguesa, tornou-se um reservatório de mão-de-obra para a indústria em desenvolvimento. Luanda concentrava grande número de operários[8] que, por sua vez, se aglomeravam na periferia da cidade (Bosslet, 2014, pp. 98-99).

A atração exercida por Luanda, aliada à eclosão da luta armada, deu uma nova dimensão ao controlo das entradas e saídas da cidade. Uma leitura dos relatórios da Polícia de Segurança Pública entre os anos de 1960 e 1970 revela que esta polícia estava fortemente envolvida no controlo das populações.[9] Era função da PSP, através da sua Secção de Identificações, emitir certificados de residência para os recém-chegados à capital. Ainda no que se refere a esse controlo, ganha destaque a realização de rusgas aos musseques, ou operações

de limpeza, mesmo após a abolição do Estatuto do Indigenato em 1961. Segundo a PSP, os objetivos de tais operações seriam o de deter indivíduos que não apresentassem documentos ou que parecessem suspeitos; capturar elementos inimigos (isto é, vinculados a algum dos movimentos de libertação); capturar ladrões ou recetores de artigos roubados; reprimir a vadiagem; capturar desertores.[10] Em suma, aos objetivos das rusgas anteriores a 1961, adiciona-se outro: a busca de terroristas (Bosslet, 2014, p. 141). Importa ressaltar que, durante as rusgas realizadas pelos polícias aos bairros suburbanos, a maior parte dos detidos eram acusados de vadiagem ou de falta de documentação.[11]

Vejamos, como exemplo, as declarações de Francisco Adão, residente do musseque Rangel, para a Polícia de Segurança Pública que o havia detido em 1962. Após narrar os motivos para a sua saída da senzala onde vivia, Adão afirmou ter vindo a Luanda com o intuito de procurar emprego. Alegou que

durante o dia tem andado a ver se consegue arranjar patrão, não tendo no entanto, conseguido, permanecendo as noites dentro de sua casa com receio que seja indicado como bandido. Que no passado dia três do corrente, foi preso em sua casa, por elementos desta Polícia.[12]

A falta de comprovativo de emprego, mesmo após a abolição do Estatuto do Indigenato, era razão para ser vítima das inúmeras rusgas policiais levadas adiante nos musseques. No entanto, no contexto da guerra de independência, ser negro e desempregado em Luanda eram evidências suficientes para se ser indicado enquanto potencial terrorista, o que justifica o temor de Adão.

Não foi, porém, apenas através do controlo das populações e do recurso à força que Portugal buscou conter a difusão de ideias nacionalistas. Vale aqui um parêntesis para tratarmos de algumas medidas tomadas pelo governo no sentido de reformar a legislação e as práticas coloniais vigentes. A nomeação, em abril de 1961, de Adriano Moreira – um dos principais responsáveis pela difusão do lusotropicalismo de entre a intelectualidade portuguesa nos anos 1950 – para o cargo de ministro do Ultramar deixa ver o reconhecimento da necessidade de reformar o colonialismo português.[13] De facto, através de decretos, em setembro de 1961, foi finalmente revogado o Estatuto do Indigenato, o que eliminava a diferença legal entre africanos e metropolitanos e estendia a cidadania aos naturais da província. Além disso, aboliu-se também, na esfera das leis, o trabalho forçado e a expropriação de terras aos africanos (Bender, 2004, pp. 262-263). Foi ainda no último período da presença portuguesa em Angola que se assistiu a um crescente investimento em políticas de cunho social, o que resultou, por exemplo, na expansão do ensino na província e no aumentou das possibilidades de ascensão social dos negros, principalmente daqueles que viviam nos centros urbanos.[14] Clarence-Smith (1985, p. 195) chama a atenção para o facto de que tais reformas eram também respostas às pressões de grupos económicos que necessitavam de mão-de-obra estável e especializada.

Ainda no que se refere às estratégias levadas adiante para conter o alastramento de ideias subversivas, ganhou relevo ao longo dos anos 1960 o que ficou conhecido enquanto Ação Psicossocial, coordenada e executada por autoridades coloniais com o intuito de aproximar as populações ultramarinas ao regime português. O que aqui nos interessa é o espaço de destaque dado às populações suburbanas no que se refere aos planos da ação psicossocial. A partir de 1965, constituiu-se o Grupo de Trabalho sobre a Ação Psicológica, composto pelos Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Angola (SCCIA), pelo Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA) e pelas Forças Armadas, para tratar das linhas gerais de ação. Em informação produzida por este grupo, em fevereiro de 1965, encontra-se um despacho de Silvério Marques, então governador-geral, no qual se dizia que “na consolidação da frente interna ter-se-á como 1.º objectivo a população dos meios suburbanos, depois as dos meios rurais e finalmente a população mais evoluída dos meios urbanos”.[15] O ministro do Ultramar, por sua vez, explicita o seu consentimento em abril deste mesmo ano, o que significa que as populações dos meios suburbanos tornaram-se os alvos principais da ação psicossocial, também conhecida como contrapropaganda. Em fins da década de 1960, a política do regime de repressão e de “conquista de corações e mentes” entrecruzam-se de forma mais clara: aos objetivos das rusgas aos subúrbios de Luanda já mencionados adiciona-se outro – o de exercer a ação psicológica sobre a população.[16]

O INSTITUTO DO TRABALHO E A QUESTÃO DA INSTABILIDADE DA MÃO-DE-OBRA AFRICANA

Ao longo dos anos 1960, o Instituto do Trabalho de Angola esteve fortemente influenciado por ideias de desenvolvimento, as quais nas décadas anteriores haviam dado forma às políticas coloniais francesas e britânicas.[17] O presidente do Instituto, Afonso Mendes, publicou em 1966 uma dissertação sobre trabalho assalariado em Angola, na qual criticava as entidades patronais pelas más condições de trabalho e condenava a sua atitude hostil às políticas de bem-estar social. Mendes apresenta uma conexão direta entre o bem-estar social e a estabilidade da mão-de-obra.[18] Tal ideia aparece também na análise elaborada por Almeida e Cunha na sua contribuição para o GT. Cunha enfatizou que as medidas militares não seriam capazes de, por si só, resolver a questão da vadiagem e da criminalidade em Luanda, e apelou para a imposição de um salário mínimo não inferior a 30$00 diários.[19]

Ainda mais relevante para a presente discussão é o relatório do chefe da Secretaria do Instituto do Trabalho, Adriano Cândido dos Santos, despachado para o governador-geral em fevereiro de 1966 e anexado ao documento final do GT. Neste relatório, Santos questiona a definição de vadio.

Legalmente, é vadio todo aquele que, sendo maior de dezasseis anos, não tenha meios de subsistência, nem exercite habitualmente alguma profissão ou ofício, ou outro mister em que ganhe a vida, não provando necessidade de força maior que o justifique de se achar nessas circunstâncias […].

Não obstante a sua antiguidade, este conceito legal, o único válido, tem sido em Angola esquecido ou substituído por outro, que classifica de vadio todo o indivíduo, de origem africana, que não exerce trabalho assalariado ou actividade própria de determinada expansão mínima.[20]

Santos chama a atenção para o carácter racial que a definição de vadio tomou no senso comum da sociedade angolana. A discriminação racial influenciou de forma significativa a maneira pela qual se estabeleceram as relações de trabalho em Luanda. À medida que a população branca crescia na capital, as clivagens raciais eram aprofundadas. A mobilização de quantidade significativa de mão-de-obra metropolitana contribuiu para intensificar o sistema de exploração dos africanos (Heimer, 1980, p. 20). Vimos que, com a eclosão da guerra, o governo português deu impulso a uma série de medidas com o intuito de atenuar as clivagens raciais, com destaque para a abolição do Estatuto do Indigenato. No entanto, no que se refere às práticas sociais, percebe-se a manutenção dessa segregação. Pode-se destacar a continuidade da diferenciação salarial entre trabalhadores negros e brancos, mesmo que desempenhassem exatamente a mesma função numa mesma empresa (Bosslet, 2014, p. 113). O sociólogo José Bettencourt (1965, p. 117) justificou essa diferenciação ao afirmar que o operário europeu possuía um senso de responsabilidade mais agudo e buscava constantemente aprimorar os seus conhecimentos técnicos. Já o africano – leia-se “negro” –, se por acaso fosse promovido, apresentaria uma imediata quebra de produtividade, causada pela aquisição de novos vícios, com destaque para o alcoolismo.

As consequências desta forma de pensar para o trabalhador negro seriam nefastas. Este, encontrar-se-ia estagnado na mesma posição, ganhando apenas o necessário para a subsistência. Nesse sentido, não admira que a instabilidade da mão-de-obra atingisse exatamente esse setor da população luandense, e que o termo “vadio” trouxesse consigo uma definição de carácter racial. Essa vadiagem, estritamente africana, era objeto de repressão policial através das rusgas, conforme tratámos anteriormente (Bosslet, 2014, p. 114).

Com a eclosão da guerra de libertação em 1961, como vimos, o eixo da ação política voltou-se para as massas populares dos subúrbios, e isso não se deu apenas no que se refere às forças repressivas, mas, também, às ações cujo objetivo seria o de conquistar a lealdade desses homens e mulheres. A própria constituição do GT com o objetivo de analisar as condições de vida nos musseques é disso um exemplo, e ainda mais significativo fora o reconhecimento dos próprios agentes da ordem de que apenas medidas repressivas não solucionariam a questão. Esses planos de conquista dos corações influenciaram na maneira pela qual as autoridades abordavam a questão do lazer.

O LAZER COMO PROBLEMA

Segundo as Bases Gerais para a Ação Psicossocial, para travar a difusão de ideias subversivas e garantir o apoio dos naturais da província, era preciso promover entretenimento e diversão para os africanos, ou, para usar o termo presente no documento, fazia-se necessário distraí-los.[21] A não-ocupação, segundo esta forma de pensar, tornaria o indivíduo propício a desenvolver as tão temidas ideias subversivas. Todavia, mesmo essa distração deveria estar sob estrito controlo das autoridades coloniais. As políticas direcionadas para o lazer foram formuladas em sintonia com ideias de desenvolvimento – ou seja, atividades vistas como ferramentas de moralização, particularmente o desporto, eram incentivadas ao passo que se buscava limitar aquelas consideradas indesejáveis, tais quais as festas e o consumo de álcool, vistos como origem da indisciplina e instabilidade dos trabalhadores africanos.

Nesse sentido, fica patente o esforço policial em controlar os horários de funcionamento dos bares localizados nos bairros periféricos da cidade. Um caso recorrente ao longo de 1964 é o do bar de David Lopes Chaves, situado no musseque Marçal. Apesar de ter licença para funcionar apenas até às 20h00, o mesmo organizava farras que se estendiam pela madrugada. Patrulhas da PSP tentavam pôr fim a essas festas e eram recebidas com hostilidade pelos participantes, facto que a polícia utilizava como justificativa para pressionar a PIDE a encerrar o funcionamento do dito bar.[22]

Com o desenvolvimento industrial e a eclosão da guerra, no entanto, a questão do controlo dos espaços de lazer ganhava outros contornos. Em relação ao primeiro, podemos fazer uso das palavras de E. P. Thompson que, ao analisar a formação da classe operária inglesa, afirma que “numa sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser consumido, negociado, utilizado; é uma ofensa que a força de trabalho meramente ‘passe o tempo'” (Thompson, 1998, p. 298). O controlo do tempo livre dos indivíduos tornara-se questão de ordem pública, o que fica evidente se considerarmos o papel da PSP nesse controlo. Vimos o envolvimento dessa polícia na fiscalização dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais localizados nos subúrbios. Pode-se ir além e destacar a função que ela chamava para si de pressionar o governo no sentido de garantir que os próprios estabelecimentos comerciais e industriais se responsabilizassem pela ocupação dos tempos livres dos seus funcionários.

Seria de toda a conveniência que os principais estabelecimentos industriais e comerciais, existentes na área da cidade, proporcionassem condições de trabalho aos seus empregados criando cantinas, refeitórios e salas de diversões, onde os mesmos pudessem passar as horas de folga, sem terem necessidade de vir para as ruas “matar o tempo” durante os intervalos das suas ocupações, amontoando-se aos cantos, entretendo-se a jogar a batota ou noutras acções menos recomendadas, dando má impressão a quem passa ou considerados elementos sem ocupação.[23]

Em outras palavras, era preciso, para a manutenção da ordem pública, que os próprios estabelecimentos de trabalho proporcionassem espaços para ocupar o tempo dos intervalos de trabalho dos seus funcionários de modo a evitar que estes “matassem o tempo” nas ruas. Se as horas de intervalo que os trabalhadores passavam fora dos locais de trabalho eram já vistas com hostilidade pela polícia, não é de surpreender que os desempregados – os tais “elementos sem ocupação” – fossem vistos com ainda maior desconfiança. Quando a existência de um tempo livre de ocupações passa a ser considerado enquanto um problema, a questão de como ocupar esses indivíduos torna-se questão central. É nesse sentido que poderemos compreender a participação de um representante do Instituto do Trabalho no GT. Conforme explicitado no relatório, o motivo para a inclusão do Instituto nas discussões devia-se ao reconhecimento de que “se em Luanda nós temos um problema de vadiagem e de abundância de gente perniciosa, também temos o problema do desemprego e do sub-emprego”.[24] Repare-se que os termos “vadiagem” e “gente perniciosa” aparecem juntos.

Vimos que o Instituto do Trabalho chamava a atenção para o facto de que as rusgas, por si só, não resolveriam o problema da vadiagem e da instabilidade da mão-de-obra africana. Estas deveriam ser conduzidas sem qualquer intervenção do Instituto. O motivo para tal seria a necessidade de conservar a confiança dos africanos nas políticas do trabalho, resultado das reformas realizadas no setor e das medidas de promoção social.[25] Era exatamente enquanto medida de promoção social que o Instituto oferecia atividades para preencher o tempo livre dos trabalhadores luandenses. Tomemos como exemplo o desporto que, segundo estudo elaborado por Ramiro Monteiro com chefes de família dos musseques, atraía 30,4% dos seus entrevistados (Monteiro, 1973, p. 358). Desde 1963, através do Fundo de Acção Social no Trabalho de Angola (FASTA), o Instituto investia em atividades desportivas para trabalhadores. No seu orçamento de 1963, a FASTA aplicou 14,45% das suas receitas no que chamou de Acção Educativa Social, das quais 13,2%, equivalente a 350 000$00, foram investidas no fomento de jogos desportivos no trabalho. Importa salientar que os gastos com desporto aparecem ao lado de gastos como “fomento de ensino primário nas empresas” e “aquisição de biblioteca para trabalhadores”, e não enquanto “Acção Recreativo Social”, para a qual a FASTA cedeu apenas 0,32% de suas receitas.[26] O desporto, portanto, era tido sobretudo enquanto ferramenta educacional, e o seu aspeto recreativo era considerado secundário.

Ao longo da segunda metade da década de 1960, o Instituto promoveu campeonatos compostos por equipas de empresas. Os jogos eram disputados nos campos das próprias empresas aos sábados e domingos. A justificativa para a organização de tais jogos fora publicada em 1968 no periódico semanal Tribuna dos Musseques.

O público suburbano, que na época passada vibrou de entusiasmo ao presenciar as pugnas desportivas destes jogos, reconhecendo o papel do desporto na vida dos trabalhadores, de novo vai aplaudir alegremente esta iniciativa do Instituto do Trabalho, que, em relação aos trabalhadores, visa preencher os tempos livres com exercícios físicos, fonte de revigoramento da saúde, estimulante do equilíbrio psíquico-motor e meio compensatório das formações a que as ocupações diárias dão origem. [27]

Adiante, no mesmo artigo, salientou-se que era de competência das entidades patronais, na defesa de seus próprios interesses “de segurança e produtividade”, preencher os tempos livres dos seus funcionários com atividades que estimulassem o seu desenvolvimento físico, moral e intelectual. Ou seja, a prática do desporto não era apenas para divertir os trabalhadores. Buscava--se, através dela, mantê-los ocupados nos seus horários de ócio, ao mesmo tempo que se “modernizava” a força de trabalho. Segundo representantes do Instituto, os reflexos dos campeonatos corporativos no campo político seriam “óbvios”.

Se as atividades oferecidas pelo Instituto eram destinadas a priori a trabalhadores assalariados inseridos no mercado formal, homens na sua maioria, o governo da província buscava influenciar de forma mais ampla nas atividades recreativas disponíveis para os habitantes do subúrbio da cidade[28], seja através das tentativas de supressão das festas ilícitas e das dificuldades impostas para a legalização das mesmas, seja através da realização de espetáculos gratuitos nos musseques, voltados para mulheres e crianças, organizados pela Câmara Municipal ou pelo CITA[29], o que indica a reprodução da relação desigual de género através dos espaços de lazer.[30]

Claro está que a segregação social, que em Luanda tomava contornos raciais, transbordava também para os espaços de lazer. Vimos que o trecho da crónica de Luandino Vieira com o qual abrimos este trabalho se referia a um sábado à noite vivenciado pelos moradores dos subúrbios angolanos e que, para a população do asfalto, maioritariamente branca, eram diversas as opções recreativas.[31] As autoridades coloniais faziam uso dessa segregação para controlar as informações que chegavam a cada um dos grupos sociais por meio de uma censura diferenciada.

A partir da segunda metade dos anos 1950, os meios de comunicação de Angola passaram a ser submetidos à censura prévia. Adolfo Maria, antes de deixar a província para aderir à luta de libertação em 1962, relembra que trabalhou para o periódico ABC Diário de Angola, tido enquanto jornal de oposição liberal ao regime e, por isso mesmo, visto com certa hostilidade pela polícia secreta. Segundo ele, o jornal estava a tornar-se popular entre os moradores dos musseques, que o adquiriam na Baixa no seu percurso de volta para casa após o dia de trabalho. A PIDE, por isso, procurava retardar a saída do jornal para os pontos de venda de modo a impedir a sua aquisição pelos trabalhadores dos subúrbios. Adolfo Maria relembra ainda a sua indignação quando, ao imprimir no ABC matéria publicada noutro jornal diário angolano no dia anterior, teve a matéria integralmente censurada. Alguns assuntos, segundo ele, não podiam ser tratados no jornal popular nos musseques da cidade.[32]

O mesmo se passava com os filmes em cartaz nos cinemas. Segundo a pesquisa de Monteiro (1973, p. 358), o cinema constituía o divertimento mais popular entre os chefes de família dos musseques. Em Luanda, multiplicavam-se os espaços cinematográficos. Os jornais diários traziam a programação, entre outros, do cinema Restauração, do Miramar, Avis, e, partir de 1965, do Tivoli e do Império. Em geral, essas casas de espetáculo, localizadas na Cidade Alta e na Baixa, estavam reservadas para a população branca. Não havia legislação que proibisse o acesso aos negros a tais casas. A segregação fazia-se através de uma estratificação baseada em critérios supostamente económicos, dada a diferença dos preços dos bilhetes. Para a maioria dos negros e para os brancos de baixa condição social, o principal cinema era o N'Gola Cine, localizado na zona dos musseques. Essa hierarquização aparentemente económica, como vimos, escondia uma violenta discriminação racial que se refletia, por exemplo, na diferença entre salários pagos a trabalhadores negros e brancos (Bosslet, 2014, p. 136). Também no caso do cinema, a censura era exercida de maneira distinta. Exemplo disso vê-se na correspondência enviada pela PIDE para a Comissão de Censura, em 1966, sobre o filme Queda do Império Romano, na qual se dizia que “julga-se de interesse que certos filmes, como este, não devem ser apresentados ao público do N'Gola Cine, na sua maioria constituído por africanos menos evoluídos”[33].

Nesse sentido, além da instauração de critérios diferenciados de censura, as autoridades coloniais criaram meios de comunicação e programas especialmente voltados para a ocupação dos momentos de ócio da população suburbana, cujas informações e matérias teriam como pressuposto a sua moralização e, como vimos, a conquista de corações e mentes. Em 1967, fora criado pela PIDE, com financiamento dos SCCIA, o já mencionado jornal Tribuna dos Musseques com o intuito de “defender as infraestruturas necessárias na promoção social das camadas mais débeis” e com o pressuposto de estar “sempre integrado na própria técnica da subversão (conquista das massas menos evoluídas)”.[34] Tendo em conta os níveis de analfabetismo, não é de admirar que, também como parte do esforço de contrapropaganda, o Estado português tenha intensificado o investimento na radiodifusão após 1961. De facto, a rádio popularizava-se com rapidez. Segundo Monteiro, 42,6% dos chefes de família entrevistados por ele alegaram ouvir rádio em casa (1973, p. 372). O acesso à rádio, no entanto, era mais amplo do que o número de indivíduos que possuíam aparelhos, uma vez que escutar a rádio era também uma prática social. Moradores de diferentes casas reuniam-se em torno do aparelho para acompanhar os seus programas prediletos (Moorman, 2008, p. 146). Através da emissora a Voz de Angola, que seria um “órgão de operações psicológicas”[35], o governo português buscava aproximar-se das populações negras por meio do uso de línguas nativas e da emissão de músicas africanas. Os movimentos de libertação, em especial o MPLA, também aproveitaram da popularidade da rádio para veicular, no interior de Angola, os seus programas emitidos através de emissoras estrangeiras.

Em suma, seja devido às necessidades da indústria nascente, seja por conta do perigo da subversão, fica evidente a intenção do Estado em controlar o tempo livre e os espaços de lazer das populações negras e mestiça de Luanda, para que, através deles, pudesse, por um lado, disciplinar a força de trabalho e, por outro, colocar em prática as suas estratégias de persuasão. Ou, dito de outra forma, o regime colonial, através dos espaços culturais, procurou condicionar a seu favor as visões de mundo dos grupos dominados (Bosslet, 2014, p. 102). No entanto, podemos questionar em que medida esse esforço foi eficaz. Vimos, por exemplo, que, apesar das constantes intervenções policiais, os confrontos entre a polícia e negros que frequentavam o Bar “Chaves” fora do horário estabelecido eram reincidentes. Casos como este continuaram a ser registados nos anos que se seguiram. Em 1967, por exemplo, a PSP prendeu 100 africanos devido à confrontação com os agentes da ordem que buscavam encerrar uma batucada “ao som da qual dançavam e faziam grande alarido”.[36]

No caso da Voz de Angola, através de noticiários em línguas nativas e de canções angolanas, buscava-se difundir a propaganda do regime. O programa alcançou grande sucesso entre as populações suburbanas (Monteiro, 1973, p. 372). No entanto, os ouvintes reagiam à propaganda veiculada. Segundo os SCCIA, em 1969, a Emissora Oficial recebeu cartas de ouvintes em relação às afirmações emitidas durante o programa Voz de Angola de que não haveria discriminação racial nas relações de trabalho. Nessas cartas, os ouvintes denunciavam a diferenciação salarial e a discriminação no tratamento prestado pelas entidades patronais aos trabalhadores.[37] Além disso, havia todo um cuidado para manter A Voz de Angola enquanto uma emissora particular, não vinculada, pelo menos juridicamente, à Emissora Oficial de Angola, uma vez que se acreditava que a emissora perderia a credibilidade diante das populações nativas caso se apresentasse enquanto entidade do Estado[38], o que demonstra reconhecimento de que essas populações encaravam as propagandas do regime com desconfiança.

Quanto ao periódico Tribuna dos Musseques, o jornal chegou a adquirir significativa amplitude. De acordo com o subinspetor da PIDE, Jaime Oliveira, o jornal só não era mais popular devido ao receio de alguns de se comprometerem com o “mundo nacionalista”. Todavia, as matérias nele publicadas contribuíam para quebrar essa barreira, e levavam indivíduos a ler o jornal às escondidas.[39] Afonso Dias da Silva, um dos seus criadores e mais importantes contribuidores, insistia nos perigos que poderiam advir de um maior controlo sobre a publicação. Em carta para PIDE, Dias da Silva chamou a atenção para o facto de haver “reclamações, muitas, dos mais variados escalões sociais, alegando que: “o jornal está a perder as características africanas! – Que agora é Jornal da PIDE! – Agora é Jornal do Estado!”.[40] Por outras palavras, afirmava haver uma oposição entre jornal de Estado e o que seria genuinamente africano. Apesar da sua fala estar condicionada pelo seu desejo de manter o controlo sobre o jornal, a leitura da sua posição e daquela explicitada por Oliveira coloca em foco um conflito de grande relevância: o jornal, ao tratar de temas próprios à vida nos subúrbios, fez-se popular. No entanto, eram muitos os que o liam às escondidas, por ser considerado jornal do Estado, o que nos permite concluir que se a iniciativa de criação do periódico foi bem sucedida ao conquistar o público leitor, por outro falhou num dos seus principais objetivos: o de aproximar esse público do Estado colonial (Bosslet, 2014, pp. 104-105).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De resto, poderá constituir-se uma sociedade pluriracial e harmónica, quando um dos sectores vive muito precariamente, enquanto outro, quase unicamente constituído por elementos de uma das etnias, tem um nível de vida aceitável?.[41]

Essa questão foi colocada por Adriano Cândido dos Santos, no já citado documento enviado para o governador-geral em 1966. Nele, Santos procurou demonstrar que a “vadiagem”, termo cujo uso ele criticou veementemente, seria resultado de fatores económicos e sociais não solucionáveis senão através de reformas efetivas na organização social da cidade. Defendeu que o “desemprego, a miséria, o sub-emprego e a verdadeira vadiagem são os fenómenos sócio-económicos” que tornam as circunstâncias favoráveis à ação subversiva. A voz de Adriano Cândido dos Santos, no entanto, fazia parte de um grupo de vozes isoladas, que não foram ouvidas por muitos dos que viviam a colonização e dela se beneficiavam. No mais das vezes, atribuía-se a instabilidade da mão-de-obra africana à sua própria natureza. Segundo a PSP, “algumas entidades patronais têm-se queixado por falta de comparência ou abandono de trabalho por parte dos seus empregados, facto que, em parte, pode ter explicação pelas ‘farras' de fim de semana ou por motivos inconfessados”.[42] Essa instabilidade era atribuída ou às festas, como aquela narrada por Luandino Vieira, ou ao envolvimento dos empregados com movimentos nacionalistas, o que fazia tais trabalhadores suspeitos aos olhos da polícia.

Apesar, portanto, dos apelos de Cândido dos Santos, os termos “vadiagem” e “subversão” tendiam a fundir-se num só, considerados enquanto características próprias do negro, como parte da sua natureza. O negro era, simultaneamente, “vadio” por natureza e “terrorista” em potência. Os indivíduos sem ocupação ou indisciplinados – inseridos em menor escala nas relações de trabalho e menos influenciados pelas noções de tempo e disciplina, consideradas como modernas – eram tidos enquanto possíveis inimigos do regime. Assim, interesses políticos e económicos casavam-se e contribuíam para driblar as conquistas sociais dos anos 1960 e para intensificar ainda mais as clivagens raciais que alimentavam e reproduziam as relações de poder vigentes.

Apesar das transformações efetivas na organização social de Luanda ao longo do último período colonial, o facto é a que a hierarquização socioprofissional não substituiu a racial, mas adequou-se a ela. Numa economia baseada no recurso à mão-de-obra barata, não era viável eliminar a exploração de um grupo por outro, sem que isso significasse o próprio fim da colonização. Em suma, as mudanças efetuadas pelo governo português não tinham como objetivo acabar com a relação de domínio de um grupo sobre o outro, mas conservá-la (Bosslet, 2014, p. 108). Nesse sentido, a apropriação de espaços de lazer pelo Estado fez-se fundamental para essa manutenção. Se, de facto, o Estado se apropriou dos espaços de lazer dos negros e mestiços, pode-se dizer que estes também se apropriaram dos espaços agora oferecidos pelo Estado, e deram-lhes um significado que muitas vezes não fora o previsto pelas autoridades que os idealizaram.

O trecho da crónica de Luandino Vieira que abriu o presente artigo era ainda atual nos derradeiros anos da colonização portuguesa em Angola. Apesar das reformas, a imensa maioria da população africana em Luanda ainda via na segunda-feira o “destino de mais uma semana, mais duas, mais, mais semanas de suor e magro vencimento” e ainda gastava, nas lojas dos brancos, que monopolizavam o comércio nos musseques, a “magra quantia do suor duma semana”. Gastava-se ainda, enfim, numa “vida sem perspectivas, sem janelas abertas”.

 

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Recebido a 13-01-2016. Aceite para publicação a 14-07-2017.

 

[1] Para uma discussão referente à termologia utilizada por autoridades coloniais para referir--se a brancos e negros ver Bosslet (2014, p. 139).

[2] Condições de vida nos musseques de Luanda, IAN/TT, PIDE/DGS, Del. Angola, Proc.14.13.A, NT. 2040, fls. 6-11.

[3] Resumo de Informações da PSP n.º 2, 1965, Arquivo Histórico Ultramarino [AHU], Lisboa, AHU/MU/GM/GNP/058.

[4] Para uma análise dos planos de povoamento do governo português, v. Castelo (2007).

[5] Com a revisão e integração do Ato Colonial na Constituição portuguesa em 1951 e através da Lei Orgânica do Ultramar de 1953, o Império dá lugar às Província Ultramarinas (Neto, 1997, p. 346; Castelo, 1999, p. 58).

[6] Condições de vida nos musseques de Luanda…, fl. 5.

[7] Clarence-Smith apresenta possíveis explicações para a intensificação da industrialização e para a abertura do território ultramarino ao investimento estrangeiro após o início da luta de libertação. V. Clarence-Smith (1978, p. 220).

[8] Henrique Guerra (1979), em livro escrito no início dos anos 1970, expõe o seu entendimento do que seria o proletariado angolano. A sua análise é de grande relevância para o historiador que se dedica ao tema do trabalho em Angola.

[9] Resumo de Informações da PSP, AHU/MU/GM/GNP/058.

[10] Muceque Lixeira, IAN/TT, PIDE/DGS, Del. A., Pinf, Proc. 15.12.A, NT. 2084, fls. 18-19.

[11] Resumo de Informações da PSP, AHU/MU/GM/GNP/058.

[12] Comando Geral da PSP em Angola, IAN/TT, PIDE/DGS, Del. A, Proc. 16.48.A, NT.2179, fl. 23.

[13] Para uma análise a respeito do lusotropicalismo de Gilberto Freyre enquanto ideologia colonial, v. Castelo (1999).

[14] Sobre a expansão do sistema educacional e suas contradições, v. Elisete da Silva (1992-1994).

[15] “Informação”, 1965, Acção Psicossocial…, p. 4.

[16] Rusgas, IAN/TT, PIDE/DGS, Del. Angola, PInf, Proc. 14.09.A/1, NT. 2035, fls. 83-84.

[17] Para uma análise a respeito da influência de ideias de desenvolvimento (development ideas) nas reformas das políticas coloniais inglesa e francesa v. Cooper (1996).

[18] Angola, National Archives, Londres. LAB 13/2153, fls. 1-6.

[19] Condições de vida nos muceques de Luanda, IAN/TT, PIDE/DGS, Del. Angola, Proc.14.13.A, NT. 2040, fls. 19-20.

[20] Condições de vida nos muceques de Luanda…, fls. 39-40;

[21] Bases Gerais da Ação Psicológica e da Acção Social, 1960. Ação Psicossocial…

[22] Muceque Marçal, IAN/TT, PIDE/DGS, Del.A, PInf, Proc. 15.12.E/5, NT.2086, fls. 98-101.

[23] Resumo de Informações da PSP, n.º 2, 1966… p. 16.

[24] Condições de vida nos muceques de Luanda… fl. 5.

[25] Condições de vida nos muceques de Luanda… fl. 17.

[26] Legislação do Trabalho em Angola – vol. 1, 1963, Instituto Diplomático, Lisboa. T/AHD/MU/GM/GNP/RRI/0893/12033, pp. 32-33.

[27] Afonso Dias da Silva, “Recomeçam este mês os jogos corporativos”. Tribuna dos Musseques, 07-03-1968, p. 6.

[28] É importante destacar que não apenas negros viviam nos musseques. Desde fins dos anos 1940, a percentagem de brancos estabelecidos na periferia, apesar de inferior à de negros, era significativa. V., por exemplo, o papel de colonos brancos na construção de casas clandestinas em Luanda em Mourão (2006, p. 228).

[29] Muceque Rangel, TT/PIDE/DGS, Del.A. PInf. Proc.15.12.D NT.2086, fl. 39.

[30] Das 11 categorias desportivas abrangidas pelos jogos corporativos de 1968, apenas uma incluía modalidade feminina: o ténis de mesa.

[31] A jornalista Ana Sofia Fonseca (2009) mostra o quão diversificada e excitante era a vida dos brancos nos centros urbanos de Angola.

[32] Entrevista com Adolfo Maria. Lisboa, 16-03-2015.

[33] Comissão de Censura à Imprensa, IAN/TT, PIDE/DGS, Del.A, Proc.16.23.B/1, NT.2133, fls. 6-7.

[34] Tribuna dos Muceques, IAN/TT, PIDE/DGS, Del.A. PInf., Proc. 15.12-A/2, fls. 15-20.

[35] Voz de Angola (Plano de Radiodifusão de Angola), IAN/TT, PIDE/DGS, Del.A. DInf1.ª, Proc. 15.33.A, NT.2099, fl. 38.

[36] Muceque Marçal, 1967…, fl. 21.

[37] Relatórios especiais de informação dos SCCIA, Maio de 1969. AHU/MU/GM/GNP/138.

[38] Voz de Angola (Plano de Radiodifusão de Angola).., fl. 37.

[39] Tribuna dos Muceques…, fl. 4a3.

[40] Tribuna dos Muceques…, fls. 15-20.

[41] Condições de vida…, fl. 48.

[42] Resumo de Informações da PSP n.º 3, 1966…

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