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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

BAUMAN, Zygmunt

Estranhos à Nossa Porta,

Rio de Janeiro, Zahar, 2017, 119 pp.

ISBN 9788537816103

 

George Bronzeado de Andrade*

*Universidade Estadual da Paraíba, Rua Baraúnas, 351, Bairro Universitário, Campina Grande — CEP 58429-500, Paraíba, Brasil.E-mail:georgebronzeado@gmail.com

 

O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, falecido em 9de janeiro de 2017, legou um importante estudo sobre o fluxo migratório na Europa, que só agora no ano de 2017 chega ao público brasileiro. Publicado pela editora Zahar, o último livro do estudioso, Estranhos à Nossa Porta (2017), trata da grave problemática que tem envolvido sobretudoa Europa: a crise migratória. A análise de Bauman sobre o que se convencionou chamar de “crise migratória”, estabelece-se no plano investigativo que foca o fluxo migratório para a Europa como uma grande tragédia que se abateu sobre as populações migrantes. Nesse processo migratório intenso, Bauman reflete sobre as condicionantes psicológicas que abrem um flanco para o ódio, o medo e a rejeição das populações europeias quanto aos migrantes económicos e refugiados de guerras, assim como aborda diversos ângulos das agruras e violações (físicas e psicológicas) a que estão sujeitas as populações migrantes no solo europeu “estranho”.

O professor da Universidade de Leeds denuncia logo nas páginas iniciais da sua obra, que as sociedades que se vêem inundadas pela grande “onda” migratória são tomadas por uma espécie de “pânico moral”, um sentimento de ameaça ao bem estar da sociedade e ao “sonho” do mundo idealizado pelo liberalismo (pp. 8-9). Bauman explica que a fragilidade existencial e a precariedade das condições sociais humanas nos tempos globalizados, insufladapela competição pelo mercado de trabalho e melhores condições de vida, criam uma profunda incerteza e medo nas sociedades invadidas pelos “estranhos”, que batem a “nossa porta” e a quem se torna mais fácil culpar por todos os males gerados pela conjuntura política e económica da globalização (p. 14). O autor reflete que se torna uma conveniência inconsciente, e mesmo um “hábito” nas sociedades dominadas pelo pensamento hegemónico (quase todas), culpar os mensageiros pelo conteúdo odioso da mensagem de que são portadores – nesse caso, aquilo a que chama de “enigmáticas, inescrutáveis, assustadoras e corretamente abominadas forças globais que suspeitamos (com boas razões) serem responsáveis pelo perturbador e humilhante sentido de incerteza existencial que devasta e destrói nossa confiança” (p. 21). Bauman, neste ponto, assemelha-se aos críticos da globalização hegemónica ou da globalização “de cima para baixo”, como define o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, quando fala dos “localismos globalizados” e “globalismos localizados”, como um processo que sofre a ingerência desigual e espoliante dos países desenvolvidos sobre os atores periféricos do sistema (Santos, 2008, p. 438).

A análise baumaniana identifica, na esteira de outras obras (como Vidas Desperdiçadas (2005) e Globalização, as Consequências Humanas (1999), a coisificação do ser humano como um produto de descartabilidade progressiva. Assim, os migrantes corporificam e representamo estigma das pessoas “redundantes”, do “refugo humano”, espécie de “vítimas colaterais” de um processo desumano de mercantilização da vida, como já apontara em obra anterior (Bauman, 2008, pp. 14-15), e que também já foi anotada pela crítica bourdieuniana (2001). Assumindo mais uma vez a posição de um severo crítico do capitalismo liberal (Bauman que em outra obra já havia declarado não ser liberal, nem tão-pouco um socialista empedernido), defende a tese de que a explicação dos atuais movimentos migratórios de massa, nos seus eixos de partida, assim como os impactos nos pontos de chegada, são um fenómeno biforme. Em primeiro lugar, porque a tragédia migratória tem como causa, em parte, as ações desastradas, mal conduzidas e calamitosas das expedições militares do mundo desenvolvido em países como Afeganistão, Iraque, Síria, entre outros Estados falidos. Essas intervenções, que buscaram substituir muitas vezes Estados ­ditatoriais, geraram desordem e violência por parte de grupos tribais e sectários, instigados pelo comércio global de armas, que é mantido pela indústria armamentista globalizada em busca de lucros. Para Bauman, num mundo tomado por Estados “fracos”, quase submersos em termos políticos, económicos e de proteção aos direitos de suas populações, estimulou-se uma série de guerras tribais, sectárias e o banditismo do “salve-se quem puder” (Bauman, 2017, p. 11). Em segundo lugar, outro processo que se aglutina ao primeiro fator de causalidade e mantém com este um íntimo grau de relação, é o fluxo constante dos “migrantes económicos”, insuflados pelas promessas vendidas pela globalização e imposta pelos Estados dominantes do sistema, que alimentam o desejo de melhoria das condições de vida das populações da periferia desse mesmo sistema.

Bauman consegue também trazer à tona os efeitos de representação psicológica gerados na população que recebe os migrantes e refugiados da crise migratória. Num nível de explicação não menos poderoso do que o viés político ou económico, procura mostrar que num mundo cada vez mais desregulado, desterritorializado e fora de ordem, a chegada dos migrantes provoca estranheza e receios de ordem económico-política, cultural e social nas populações recetoras, assim como medo de que sua segurança física esteja ameaçada. Esse “pânico” geraria animosidade, estímulo ao abuso e violência para com os migrantes, que já estão em situação de trágica vulnerabilidade (p. 16). Nesse sentido, culpar os migrantes pelos problemas políticos, sociais e económicos da sociedade recetora acaba sendo uma espécie de válvula de escape psicológica, um caminho mais “fácil” a ser tomado pelos cidadãos que se sentem atingidos pelos danos nada colaterais dos processos globalizantes. Bauman aproxima-se da crítica bourdieuniana, para quem a globalização legitima processos de ordem global dentro do projeto neoliberal. Essa aproximação entre Bauman e Bourdieu (2001) foi referida por Zolo (2010), numa obra que investiga aspetos fundamentais para se compreender os processos globalizantes, em que citando Bourdieu, o professor italiano afirma que, para o sociólogo francês, a globalização desenvolve uma função naturalizante, onde todo discurso sobre a globalização é, portanto, interpretado como uma construção ideológica, um aparato retórico que se presta a legitimar o projeto neoliberal de ordem global. E um dos principais objetivos da ideologia da globalização é a demolição do modelo social-democrático europeu (Zolo, 2010, p. 20).

Bauman alerta inclusive para os perigos do oportunismo político, em que os partidos políticos, através das figuras públicas de seus candidatos, e os próprios media ampliam o discurso xenofobo, racista e de um chauvinismo sem precedentes, no intuito de angariar dividendos eleitorais, perante uma população que se encontra angustiada pelas incertezas, com medo do futuro e desorientada no caminho a seguir (Bauman, 2017, p. 17).

No segundo capítulo do livro, Bauman critica duramente a política de securitização que tem dominado, sobretudo, a Europa. A securitização aparece como um “truque de mágica” que busca desviar a ansiedade de problemas que os governos não conseguem enfrentar, para outros em que os governantes aparecem (nos media) lidando com vigor e “sucesso” (Bauman, 2017, p. 34). Alguns mais apressados podem, à primeira vista, acusá-lo de “minimizar” o problema do terrorismo na Europa, mas a despeito das críticas, Bauman inaugura um argumento crítico que deve ser debatido por muito tempo: em que medida o movimento de “securitização” tem sido utilizado pelos políticos europeus para atribuir aos imigrantes apecha de terroristas, criminosos (criminalização dos imigrantes – a “crimigração”)1, e até vagabundos.

Bauman alerta que a prática de “securitização” em desfavor dos migrantes, pode ajudar a inflamar os sentimentos anti-islâmicos na Europa, e nesse caso mobilizar recursos da população nativa europeia a recrutar jovens da periferia, estimulados pela repulsa e ressentimento, provocando assim um círculo vicioso de violência e intolerância(Bauman, 2017, pp. 41-43).

Do terceiro ao sexto (e último) capítulo do livro, Bauman traz em retrospetiva um panorama de um mundo globalizado que privilegia os aspectos económicos e de segurança, e nessa tarefa, esse mesmo mundo mostra-se isento de uma perspetiva moral, sobretudo quando se trata da problemática situação dos migrantes que assomam à Europa. Ao trazer Kant para a discussão, e a reivindicação da substituição da hostilidade pela hospitalidade, retomando os preceitos da Paz Perpétua, ensinada pelo autor moralista, Bauman (2017, pp. 84-85) defende a possibilidade de conciliação entre a moral e a política, e nesse sentido, uma abertura para a humanização cosmopolita dos migrantes contra a exclusão da categoria de “seres humanos”. Bauman também chama a atenção do Estado e da sociedade civil para compreender o drama dos migrantes para além de um problema de segurança, para além da questão da defesa da ordem, de ameaça de agressão ou da ótica de uma hostilidade militar. Mas para isso salienta a importância da comunicação e do diálogo, trazendo à tona ensinamentos do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975).

A reflexão baumaniana não chega a ser utópica nos seus fundamentos, e aproxima-se do pragmatismo mais realista, na medida em que compila diversos discursos de ódio proferidos por líderes europeus contra a população de migrantes que tomou a Europa nos últimos anos. Declarações no mínimo desastrosas, como a do primeiro ministro húngaro Viktor Orban, ou do presidente da República Tcheca, Milos Zeman, que acusou os migrantes de explorar crianças na sua travessia, e afirmou que os migrantes convertidos ao islamismo, seguiriam a charia e não as leis tchecas, declarando ainda que mulheres infiéis seriam apedrejadas e os ladrões teriam as suas mãos cortadas (Bauman, 2017, p. 84).

Embora o texto de Bauman, na análise da crise migratória, cultive uma certamelancolia e incredulidade perante a indiferença europeia com o sofrimento humano, o autor não abandona a sua reflexão sem apontar caminhos para tratar a grande tragédia dos migrantes. Para Bauman, a resposta ao efeito “colateral” da globalização não está na construção de muros, na deportação maciça de imigrantes ou na criminalização e exclusão dos migrantes, mas encontra-se no diálogo multicultural, no intercâmbio e na compreensão mútua, no respeito recíproco para negociar conjuntamente a superação dos obstáculos, lembrando aí em muitos sentidos, a ideia da hermenêutica diatópica de Raimundo Pannikkar e a fecundação das culturas. Bauman também lembra as lições de Gadamer, e a concepção de que é preciso reconhecer o outro para compreendê-lo, e que isso não é redutível a nenhum método político ou técnica qualquer.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAUMAN, Z. (1999), Globalização: as Conseqüências Humanas, Rio de Janeiro, Zahar.         [ Links ]

BAUMAN, Z. (2005), Vidas Desperdiçadas, Rio de Janeiro, Zahar.         [ Links ]

BAUMAN, Z. (2008), Vida para Consumo: a Transformação das Pessoas em Mercadoria, Rio de Janeiro, Zahar.         [ Links ]

BOURDIEU, P. (2001), A Miséria do Mundo, Petrópoles, Vozes.         [ Links ]

STUMPF, J. (2006), “The crimmigration crisis: immigrants, crime, and sovereign power”. American University Law Review, 56 (2), pp. 368-419. Disponível em http://digitalcommons.wcl.american.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1274&context=aulr [Consultado em 03/05/2017].         [ Links ]

SANTOS, B. de S. (org.) (2003), Reconhecer para Libertar: os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.         [ Links ]

ZOLO,D.(2010), Globalização: um Mapa dos Problemas, Florianópolis, Conceito Editorial.         [ Links ]

 

NOTAS

 

1Juliet Stumpf (2006) trata desta questão num artigo em que veicula a ideia de criminalização dos imigrantes, que denomina de “crimigração”.

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