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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

SEGURO, António José

A Reforma do Parlamento Português, o Controlo Político do Governo,

Lisboa, Quetzal, 2016, 152 pp.

ISBN 9789897222870

 

Tiago Tibúrcio*

*CIES-IUL, ISCTE-IUL, Avenida das Forças Armadas, Edifício ISCTE — 1600-026, Lisboa, Portugal.E-mail: tiagotib@gmail.com

 

Este livro de António José Seguro sobre a reforma do parlamento português constitui uma adaptação da tese de mestrado do autor.

Um primeiro comentário impõe-se quanto ao objeto desta obra. Ocupando um lugar central no sistema político democrático português (como, aliás, de qualquer democracia), são ainda hoje escassas as obras que se debruçam sobre a Assembleia da República e a sua atividade, e menos ainda as que focam, em particular, a função de controlo do executivo (nomeadamente ao nível de dados empíricos), função que tem vindo a ganhar relevância ao longo das últimas décadas.

Por estas razões, a publicação desta obra deve ser saudada como um contributo para o aprofundamento do conhecimento acerca deste órgão e para a afirmação da área de estudos parlamentares em Portugal, na qual se incluem autores como Manuel Braga da Cruz, Cristina Leston-Bandeira, André Freire ou, mais recentemente, Jorge Fernandes.

O primeiro capítulo, dedicado ao enquadramento teórico, divide-se em três partes principais: o papel da Assembleia, debate sobre a centralidade/declínio dos parlamentos e as suas funções (máxime, controlo político). O segundo capítulo é dedicado à reforma de 2007 do parlamento português, enquadrando-se a sua oportunidade no contexto das ­reformas (do regimento) anteriores, identificando causas e expectativas. No terceiro capítulo, apresentam-se os resultados e a análise da investigação. Num capítulo derradeiro, retiram-se as conclusões.

Esta obra conta ainda com uma nota de abertura, da autoria de Manuel ­Meirinho Martins, e um prefácio, de André Feire, que ajudam a contextualizá-la e enquadram os vários contributos.

A tese deste estudo pode encontrar-se na citação que antecede a obra propriamente dita: “A Reforma de 2007 do Parlamento português marca uma clara fronteira no exercício do controlo político dos atos do Governo e da Administração, bem como nos direitos das oposições. Há um antes e um depois da Reforma. Com a Reforma, o Parlamento aumentou o controlo político sobre os atos do Governo e da Administração”.

Como é notado por Meirinho Martins, a proximidade do autor com o objeto de estudo – Seguro foi, enquanto deputado, coordenador da reforma da Assembleia da República em 2007 – poderia ter “beliscado” o distanciamento académico que se exige numa obra desta natureza. Esta circunstância exigia do autor uma sólida sustentação teórica e metodológica, que afastasse qualquer reserva desta natureza, o que nos parece ter sido conseguido com sucesso. Em contrapartida, daquela proximidade também decorrem vantagens, como a de permitir ao autor um conhecimento privilegiado sobre o tema da investigação, circunstância que, a nosso ver, se reflete na obra.

Ao centrar-se na função de controlo, esta investigação traz também luz a uma das suas dimensões cada vez mais incontornáveis: o poder das oposições. Conforme sublinhado por André Freire, são aspetos cruciais no funcionamento dos sistemas democráticos atuais.

Com vista a aferir o impacto da reforma de 2007 na função de controlo, compara-se o período 2000-2007 e 2007-2014, abrangendo-se, assim, um considerável intervalo de tempo anterior e posterior à reforma, e contemplando um quadro diversificado de governos (governos de maioria relativa, de maioria absoluta de coligação e de maioria absoluta monopartidária).

Seguro começa – e bem – por distinguir o que se entende por controlo político, identificando dois tipos: o controlo relativamente a outros órgãos (como a apreciação do programa de governo e o voto de moções de censura e de confiança) e o controlo político “relativamente a atos e atividades do Governo e da Administração” (p. 33), sendo nesta segunda dimensão que se centra a análise da obra.

No passo seguinte, recorta-se o critério que permite identificar os instrumentos que cabem nesta função: “os instrumentos parlamentares, orais e escritos, expressa e diretamente dirigidos ao Governo e que exigem a sua participação” (p. 35), assinalando como exemplos os casos das perguntas, requerimentos, interpelações, audições, debates e comissões de inquérito.

No caso das comissões de inquérito, explica-se que o seu estudo foi excluído do âmbito desta obra atendendo a que o seu regime jurídico não foi afetado pela reforma de 2007, o mesmo acontecendo com o acompanhamento dos assuntos europeus e com o orçamento e contas do Estado. Sobre estas exclusões, compreende-se o critério adotado, embora se pense que o autor poderia porventura ter ido um pouco mais longe, nomeadamente dando conta da evolução destas áreas ao longo do período analisado (2000-2014), altura em que viram o seu papel valorizado, reforçando significativamente a capacidade de controlo do executivo. É, por exemplo, o caso das comissões de inquérito (as quais gozam de crescente popularidade, visando o esclarecimento de dúvidas sobre condutas impróprias do executivo) ou do papel da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) no escrutínio das contas do Estado (prestando apoio à comissão com competência em matéria orçamental e financeira). São, pois, instrumentos relevantes deste controlo de rotina sobre o qual se centra a análise do autor.

O capítulo I começa com o enquadramento teórico da “Assembleia”, atestando-se a disseminação da instituição parlamentar pelo mundo e problematizando-se a questão da sua “centralidade ou declínio”. Seguro sumaria as razões que concorrem para a centralidade dos parlamentos: (1) representação como eixo da democracia moderna, legitimada por eleições diretas e competitivas (Meirinho Martins); (2) deter o primado legislativo (Jorge Miranda); (3) assegurar o controlodo poder executivo (Teixeira e Freire); e (4) garantir ligação entre os cidadãos e os governos (Kreppel).

Nota-se que, ao incluir esta última dimensão da ligação entre os cidadãos e os governos, Seguro mostra acompanhar as mais recentes transformações das funções dos parlamentos, relevando uma função que era, até há pouco tempo, largamente negligenciada pelos estudiosos, apesar da sua crescente relevância.

À tese da centralidade do parlamento contrapõe-se a “teoria do declínio”, que assenta um dos seus principais fundamentos na diminuição do peso das assembleias na produção legislativa a favor dos executivos. A este respeito, o autor sublinha, na esteira de Packenhan, que as assembleias não existem meramente para fazer leis, desempenhando uma série de outras funções (como a de legitimação ou recrutamento), não devendo, por isso, limitar-se a análise deste órgão em exclusivo a uma das suas funções, por mais relevante que seja. Como Kreppel, o autor realça que uma assembleia pode ser fraca na função legislativa, mas forte, por exemplo, na função de controlo.

Seguro explora os argumentos em torno desta questão, notando as várias transformações com que tiveram de lidar os parlamentos, que responderam, por sua vez, com outras transformações destinadas a preservar a centralidade do seu papel. Seja no âmbito das suas funções clássicas, seja na assunção de novas funções e o desempenho de novos papéis. Esta atualização do seu papel (na teoria e na prática) parece ser, pois, determinante para lidar com os desafios que se colocam a esta instituição, sendo este o mote para a análise da função de controlo político nesta obra.

Com efeito, a evolução do parlamento português mostra uma crescente relevância da função de controlo na primeira década de democracia, tendo-se tornado uma atividade cada vez mais rotineira, embora, nos primeiros tempos, fortemente condicionada (subalternizada, nas palavras de António Filipe) pelo princípio maioritário.

Em relação à função de controlo político, Seguro distingue, por um lado, os instrumentos consagrados por via constitucional e, por outro, os que são atribuídos por via legislativa/regimental, sugerindo serem estes últimos de menor alcance, por ficarem à mercê da vontade conjuntural das maiorias. Este entendimento faz eco das reflexões de Kreppel, segundo as quais o quadro institucional dos parlamentos que decorre da regulamentação ordinária é mais flexível e pode mudar mais facilmente. Mas o que esta investigação parece acabar por demonstrar é que, no caso português, essa maior flexibilidade tanto pode servir para fortalecer (como sucedeu em 1988) como para temperar o poder da maioria (2007).

De seguida, procede-se à caracterização das alterações e revisões regimentais anteriores a 2007, que vale a pena sumariar para melhor se compreender a dinâmica desta evolução: Até 2002, estas alterações foram frequentes, num processo de maturidade crescente, que teve entre os seus momentos mais relevantes a procedimentalização do trabalho parlamentar (1985 e 1993), a sua racionalização (1988), a regulamentação e valorização das petições (1991) e a ­abertura da Assembleia da República ao exterior ou a redistribuição de funções entre plenário e as comissões, valorizando estas últimas (1993).

Embora a dimensão comparativa seja pouco desenvolvida pelo autor (não sendo este o foco do seu trabalho), vale a pena realçar que o período analisado corresponde a um período de consolidação do parlamento português, que assim se foi aproximando dos seus congéneres europeus de democracias mais longevas. Neste processo, ressalta-se também a evolução dos poderes das comissões parlamentares, cujo trabalho se foi complexificando e orientando para um “parlamento de trabalho” e não tanto de “legitimação” (Liebert e Cotta), como sucedeu nos primeiros anos da democracia.

Esta racionalização da atividade parlamentar foi, assim, criando as condições para o robustecimento da função de controlo. Seguro mostra que, a partir de 2003, ocorre um reforço dos direitos das oposições, “através da criação de novas figuras de controlo do Executivo, nomeadamente o debate mensal com a presença do primeiro-ministro (…), a sessão de perguntas de âmbito setorial ao Governo, em cada quinzena (…), e a atribuição de direitos potestativos aos grupos parlamentares para a realização de debates de urgência” (pp. 75 e 76).

O enquadramento que é feito permite que o leitor se situe no momento anterior à reforma parlamentar de 2007, descrevendo-se, por exemplo, o instituto de perguntas ao Governo, que exigia, à data, o conhecimento prévio (cinco dias) das perguntas a formular pelos deputados ou os requerimentos dos deputados, no âmbito do qual inexistiam prazos para a resposta do Governo.

As principais alterações desta reforma no que toca à função de controlo são apresentadas sob a forma de um útil quadro com os principais instrumentos em vigor antes e depois de 2007. Neste apontam-se as seguintes inovações fundamentais: (1) maior periodicidade de alguns debates (v.g. sessão de perguntas ao primeiro-ministro, que passou de mensal para quinzenal); (2) consagração de alguns instrumentos que antes só podiam ser acionados com o acordo da maioria (audições obrigatórias em comissões dos ministros, audições potestativas em comissão dos membros do governo); (3) introdução de prazos para resposta às perguntas e requerimentos (ainda que sem sanção efetiva masapenas simbólica).

O capítulo 3 debruça-se sobre a dimensão empírica da reforma de 2007 na função de controlo dos atos do governo. Deste modo, mostra-se um aumento muito significativo no número de presenças dos membros do governo em comissão. Não apenas por causa da introdução das presenças obrigatórias e dos potestativos (que não havia antes) mastambém em virtude de outras formas (por deliberação da comissão ou por outro motivo), que constituem, aliás, a principal forma de chamar os membros do Governo às comissões.

Os dados recolhidos por Seguro revelam também que a utilização dos direitos potestativos é maior nos grupos parlamentares da oposição do que nos de apoio ao Governo. Isto não será de estranhar, não apenas porque a oposição está mais vocacionada para o exercício da função de controlo, mas também por os grupos parlamentares que apoiam a maioria, quando interessados em solicitar a presença de membros do Governo, poderem fazê-lo através da deliberação das comissões (onde têm a maioria) e não recorrendo ao direito potestativo (limitado quanto ao número de vezes que pode ser usado), “desperdiçando-o”.

Ao nível do plenário, é de realçar o aumento das presenças obrigatórias do primeiro-ministro, explicado em grande medida pela alteração do figurino das sessões de perguntas, que duplicaram a sua frequência. Em contraste, verifica-se uma diminuição das presenças obrigatórias dos ministros.

Outro dos instrumentos de controlo político onde se verificou um impacto positivo da Reforma foi ao nível das respostas às perguntas e requerimentos. A fixação de um prazo parece ter provocado um aumento significativo das respostas abaixo dos 60 dias. E, embora a taxa de resposta se tivesse mantido, importa notar que depois de 2007 se assiste à duplicação do número de perguntas e requerimentos e, consequentemente, sensivelmente ao dobro das respostas, isto em simultâneo com a diminuição do tempo médio de resposta.

O último capítulo é dedicado às conclusões. E estas não podiam ser mais claras, encontrando facilmente suporte no enquadramento e nos dados apresentados pelo autor. “Com a Reforma, o Parlamento aumentou o controlo político sobre os atos do Governo e da Administração”. Os instrumentos que mais contribuíram para esta variação foram assessões de perguntas quinzenais ao PM (que duplicaram), os debates de atualidade (de agendamento mais ágil) e as audições aos membros do Governo em comissão. Certamente não por acaso, foram também estes os instrumentos que recolheram uma melhor avaliação por parte dos protagonistas parlamentares inquiridos pelo autor, inquérito que revelou também a função de controlo entre as que obtiveram melhor avaliação.

Conforme ficou bem demonstrado pelo autor, este reforço da função de controlo beneficiou do fortalecimento dos direitos das oposições operado pela Reforma. Mais instrumentos, mais fáceis de acionar (por imposição regimental ou por exercício potestativo) e dispensando o acordo da maioria. Indo, assim, ao encontro da asserção explanada pelo autor no início da obra, de que “as oposições são o agente natural do exercício da função de controlo político”. Nesta ­perspetiva, esta obra ­contribui para ­confirmar o papel dos direitos da oposição na garantia de autonomia institucional do parlamento em relação ao executivo, conforme é apontado pela literatura.

Em síntese, esta obra cumpre amplamente os objetivos propostos, constituindo de ora em diante uma referência incontornável para se compreender o papel hodierno da Assembleia da República no sistema político português.

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